terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Felicity

Definitivamente, eu não gostaria de escrever uma redação com o título “Minas férias” no início das aulas este ano. Foi o janeiro mais hospitalar da minha vida, contando duas intervenções cirúrgicas, muitas agulhadas, anestesias, sedativos, três dúzias de exames, uma vesícula a menos, incontáveis medicamentos e restrições alimentares. Simplesmente inacreditável, principalmente se pensarmos que pratiquei atividades físicas regularmente no ano anterior – no mínimo três vezes por semana –, não exagerei na bebida nem nas calorias, ingeri equilibradamente as quantias de potássio e cálcio de que necessita o organismo, e tomei copos e copos de água todas as manhãs, tardes e noites. Mas também não vou apelar para uma conclusão fatalista ao estilo “ser saudável mata”. Nem tanto. O que mata é pensar de mais. Isso sim. No último sábado, quando tive que esperar nada menos que seis horas para a minha cirurgia, totalmente vestida para ela, estirada sobre a maca, com a devida touca no cabelo e o “pró-pé’, destituída de lentes de contato ou brincos ou mp4´s, com aquele avental indecente, que poderia ser sexy se não fosse humilhante... eu não tive outra escolha a não ser pensar. Porque, com toda aquela demora, a operação que era simples começou a se agigantar em importância e horror, e eu passei a temer que o pior estivesse destinado a acontecer, e que aquelas horas me tivessem sido dadas a fim de que eu passasse minha vida a limpo, refletisse sobre a balança de conquistas e fracassos, reavaliasse o meu caráter etc. E, quer saber?, que preguiça! Tudo o que eu fiz foi organizar mentalmente uma lista dos filmes do Almodóvar, do Hitchcock e do Woody Allen a que eu já assisti, cantar em silêncio trechos de canções do The Gathering, lembrar do sabor do risoto de açafrão que eu havia experimentado duas noites antes, e pensar na Felicity.
Para quem não se lembra, Felicity é a protagonista de um seriado homônimo que alcançou certo sucesso da década de 1990, e que ainda vai ao ar na TV a cabo. O enredo é, na realidade, muito simples: uma jovem de cabelos crespos que se muda para Nova York, onde inicia a faculdade e vive uma série de impasses: Medicina ou Belas Artes?, em quais disciplinas se matricular?, namorar o imprevisível Ben ou o bonzinho Noel? Enfim, são quatro temporadas de indecisões para um final feito às pressas, que a deixa feliz e realizada ao lado daquele com quem a gente esperou que ela ficasse desde o início. Simples. Ou assim seria, se não fosse tão verossímil, tão próximo daquilo que os nossos dias acabam sendo na maioria das vezes: enxerto, pilhas de dúvidas, obrigações que se cumprem sem querer. Porque a gente vive sérias catástrofes e inexplicáveis explosões de euforia vez em quando, mas, em suma, a vida é feita de dias de indecisão e marasmo, com uma trilha sonora insossa e um penteado bem parecido com o da mocinha da série, assim sem escova ou chapinha, ao natural.
Mas, então. Fui operada aquele dia, tiraram a vesícula com uma pedra dentro dela, e depois passei mal por dois dias ininterruptamente, sem forças para absolutamente nada... Agora, que o meu organismo começa a se habituar à sua nova configuração, sinto o prazer aparentemente imbecil de poder me mover pela casa, tomar banho sozinha, e conseguir que algum alimento pare dentro do meu estômago por algum tempo. Pois é: os nossos dias de enxerto, de suspiros e indecisões podem não ser tão ruins assim – daí, talvez, o curioso nome dessa série tão aparentemente sem graça.

(26 de janeiro de 2010)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Poema ternário nº1

Pelos olhos do filhote,
o jantar dos urubus
– sombrio reflexo.

(12/01/09)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Cefadroxil

A cor do jaleco não deixava dúvidas: era, sim, um médico; uma dessas pessoas que a gente chama de doutor, e na frente das quais se sente constrangido ao pronunciar nomes de antibióticos e procedimentos cirúrgicos. Era, porém, um médico de atestado médico. Desses que atendem em uma sobreloja da rua Paraná e que não se importam com os encardidos deixados sobre o tecido branco. Desses que mal perguntam o seu nome, apenas medem a sua pressão, manipulam com desleixo o estetoscópio, depois anotam com descaso, marcando um X aqui outro acolá, o histórico de doenças da sua família. Exames do Detran, demissionais, admissionais... Ah, e esse último... simplesmente o matava: indivíduos recém-contratados, com sua enervante alegria por terem conseguido um emprego novo, que vai quitar as dívidas, financiar a moto, aumentar o status social. E ele ali: na mesma. Estetoscópio, inspira e expira, diabetes na família?, bebe?, fuma?. Um saco. A felicidade imbecil do resultado do vestibular, tantos anos de cursinho antes, tantos anos de faculdade depois, o preço exorbitante daqueles livros pesados, e tanto corte e tanta cobaia e tanto nome de osso, tanto sangue e tripa na merda da residência no pronto socorro... pra quê? Estetoscópio, inspira, expira, diabetes na família?, bebe?, fuma?. Merda. Não podia haver emprego pior do que o dele.
Mas então ele pensava no rapaz do laboratório de análises clínicas. E pedia – sorrindo, disfarçado – um exame de fezes, só por garantia.

(20 de janeiro de 2010.)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Novembro, mês onze

I

No dia que a injustiça estendeu
sobre o meu desejo mais casto
seu arsenal de quarenta tentáculos,
coloquei em ordem todas as gavetas
dobrando de novo as camisas
doando as saias que não me servem mais
organizando por cores,
da ausência à profusão,
todos aqueles vestidos.

No dia seguinte,
quando acordei,
com a ressaca de um
afiado desapontamento,
puxei as gavetas
uma a uma
para sentir que o dia anterior
não havia sido perdido
nem os meses
nem a vida.
Haveria de haver,
afinal,
uma ordem
– mesmo que em desacordo.




II


Tudo o que quero
agora
nesse charco
de preguiçosa desesperança
é uma manhã para mim.

Uma manhã para,
enquanto o sol é bom,
rasgar papéis agora inúteis
tirar a poeira tagarela dos móveis
repensar o diálogo entre os livros
na estante de madeira.


Porque
à tarde
quando faz calor
eu me desanimo de tudo
despersonifico-me
e consigo pensar apenas
em jogar o meu corpo dentro d´água
no fundo, bem no fundo
depois dissolver
len-ta-men-te
sentindo os pedaços de mim se afastaram
cada vez para
mais longe
mais despedaçados
torcendo para que eles
nunca mais voltem
nunca mais voltem a ser
essa coisa só
que eu sou.

(29 de novembro de 2009)