sábado, 27 de fevereiro de 2010

Saudade, substantivo concreto

Era uma aula de 5ª série (cujo termo politicamente correto agora é “6º ano”) e nós fazíamos oralmente uma revisão para a prova. Substantivos, de todas as espécies, artigos, definidos e indefinidos. Básico dos básicos. Eu perguntava, os alunos respondiam, titubeavam uns, sopravam as respostas outros, e eu anotava no quadro os acertos, separada a turma entre “Chicos” e “Chicas” (assim, com som de xis mesmo, em bom brasileiro). Então, resolvi pedir ao aluno novato, com toda a minha boa intenção de integrá-lo à turma, fazê-lo participar e tal, que me enumerasse três substantivos próprios. Todos olharam em sua direção, os meninos esperançosos por um ponto a mais no placar – que não valeria nada, a não ser o prazer de ganhar – e as meninas torcendo para que ele errasse. E ele não fez nenhum dos dois: ele só começou a chorar. Assim, de verdade, com lágrima e tudo. Eu me aproximei, perguntando-me “que é que eu fui fazer? Por que não deixei o menino quieto no canto dele?” e fui dizendo, tentando acalmá-lo, “tudo bem, é fácil, a gente te ajuda; só nesta sala há umas trinta respostas possíveis...” Ele continuou chorando e, aos soluços, falou: “Não é isso, não. Eu sei responder... eu sei... Vem cá.” Nós nos afastamos dos olhares diretos dos chicos e das chicas, e ele me contou que, contra sua vontade, havia se mudado de cidade por causa do divórcio dos pais, e que, agora, quando eu lhe pedia para dizer três substantivos próprios, ele só conseguia se lembrar dos nomes dos amigos que tinha deixado para trás. E dos quais sentia muita, muita saudade.

(27 de fevereiro de 2010.)

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Sobre o The Gathering e a Agua de Annique: considerações sobre o peso etc.

Não foi, definitivamente, o peso que fez do The Gathering uma das melhores bandas do mundo. Na verdade, enquanto faziam doom metal cavernoso nos Países Baixos, ao estilo de Samael e Morbid Angel, ninguém ligava muito para o par de irmãos bem intencionados René e Hans Rutten. Foi certamente a entrada da vocalista Anneke van Giersbergen, quando da gravação do terceiro álbum, "Mandylion", com sua afinadíssima voz aguda, misto de força e doçura, que desviou o trajeto pantanoso que percorria o grupo, para um caminho, digamos, mais estrelado. O rock do The Gathering ficou mais alternativo, continuou pesado, mas ganhou velocidade e passou a soar mais leve, já que os vocais suavizavam qualquer sequência mais carregada ou distorcida. E os holandeses ganharam ainda um diferencial muito rentável: a imagem; isso não só por se tratar Anneke de uma moça bonita, com feições de musa da segunda geração romântica, mas por fugir ao clichê “dama do rock”, dessas que aparecem flutuando em videoclipes finlandeses, se é que vocês me entendem. Ao contrário: ela estava muito mais para skatista, bermuda e tênis, roqueira sem firula, dessas que chacoalham as madeixas por aí sem o menor pudor. E com um carisma inconfundível. Simplesmente não dá para não gostar da Anneke, querer chamá-la para tomar um café ou uma cerveja, mostrar-lhe a sua coleção de mangás, querer saber como vai o filhinho dela, o pequeno Finn. Experimente assistir a um DVD como “A sound relief” e tente me dizer o contrário! Mas, simpatia à parte... é notável a evolução do The Gathering desde o seu surgimento, em 1989, até os dias de hoje. Por fim, a banda passou a tocar em um estilo denominado trip rock, assim bem viajado mesmo, quase cósmico, com longas sequências instrumentais, e letras sensíveis, algo panteístas em certos momentos, culminando em canções belíssimas, uma atrás da outra, como acontece no excelente “How to measure a planet?”, de 1998. É, mas sabe aquela história de que o que é bom dura pouco? No início de 2007, Anneke anunciou sua saída da banda para montar um projeto solo, o Agua de Annique. Os meninos do The Gathering (e a baixista, Marjolein Kooijman) encontraram outra cantora, Silje Wergerland, para compôr “The West Pole”, trabalho de imensa qualidade, capaz de surpreender os grandes fãs da antiga vocalista, que pensavam que, sem ela, não haveria The Gathering. Quanto ao trabalho solitário – ou nem tanto – de Anneke, eles lançaram, no final do ano passado, seu segundo álbum, “In your room”. Escapa do mosaico sonoro do primeiro disco, heterogêneo demais, mas perde o peso; com um toque retrô, o trabalho é colorido, alegre e extremamente otimista. Não deixa de haver duas faixas tristinhas, bem ao estilo de “Day after yesterday” (do “Air”) ou “Saturnine” (de “If then else”, gravado ainda com o The Gathering). Porém, em geral, o álbum carece de harmonia mais elaborada, viradas surpreendentes de bateria, enquanto sobram sóis e “all right´s”. Há faixas em que você se sente literalmente com pompons nas mãos, liderando uma torcida qualquer. Mas, sinceramente, não encontrei até aqui melhor trilha sonora para começar o dia de bom humor. O que prova que, no rock, como em quase tudo, os chamados defeitos e as ditas qualidades são sempre relativos.

(20 de Fevereiro de 2010.)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Raios partam o ladrão de raios!

Aproveitei o fato de minha viagem de Carnaval ter dado errado para ir ao cinema assistir ao “Ladrão de Raios”. O filme é baseado no romance homônimo de Rick Riordan, livro que veio parar nas minhas mãos nas já comentadas mal-sucedidas férias de janeiro, e, a princípio, ficou relegado à pilha de obras que me emprestaram, sugeriram ou impuseram, mas que eu não tenho a menor vontade de visitar. Parênteses: o fato de todo mundo saber que você gosta de ler gera problemas como esse que, às vezes, resultam em boas surpresas. Foi o caso desse que é o primeiro volume da saga “Percy Jackson e os Olimpianos.” O livro é simplesmente delicioso, com excelentes pitadas de bom humor e ironia, sequências de frases muito bem escritas e um inteligente diálogo com a Mitologia Grega. Em certos momentos, o autor tenta resolver as situações de maneira meio forçada, por exemplo ao atribuir ao protagonista uma dislexia supostamente relacionada a sua facilidade em compreender o grego antigo, ou ao oferecer como endereço do “novo Olimpo” o Empire States Building. Mas, tudo bem, a gente engole, pensa que não conseguiria fazer nada muito melhor mesmo, e pronto. Na época, fiquei tão empolgada com a história, com a maneira como vamos associando as pistas para concluir a que personagem da Mitologia o capítulo se refere, ou o modo como vibramos com a ousadia de um pré-adolescente que envia de presente a cabeça da Medusa aos deuses, mostrando sua insatisfação por integrar uma batalha com a qual nada tem a ver – exceto, é claro, por ser um semideus. Pensei até em escrever ao autor e dar os parabéns. Outro parêntese: leio muita literatura infanto-juvenil, e é preciso reconhecer quando surge algo de qualidade. Foi quando descobri que havia o filme, prestes a estrear no Brasil. Todo mundo sabe que as transcriações (porque vão muito além de adaptações) de literatura para o cinema costumam ser decepcionantes. Claro: não há limite de páginas publicáveis (há somente um bom senso), enquanto o cinema hollywoodiano há muito já encontrou a fórmula numérica de minutos suportáveis das sessões. Assim, de página para minuto, perdem-se detalhes, somem personagens, descarta-se a ironia ou a poesia ou o bom gosto. Pois bem: o filme “O Ladrão de Raios” foi além: ele decepou o enredo. Excluiu algumas das cenas mais interessantes do romance – como quando Poseidon se manifesta, revelando-se pai de Percy; ou quando das aparições hilárias de Ares e seus malcriados rebentos – e, pior, trocou um desfecho ameaçador, em que Cronos, o Titã pai dos seis grandes deuses, é o grande culpado por toda a desordem, apresentando como vilão o filho de Hermes, um ladrãozinho bonito e limpinho, de cabelo loiro penteado para o lado. Ah, isso também: os protagonistas passam de crianças incompreendidas para adolescentes de olhos azuis, com hormônios saltitantes, para fazer saltitar os da platéia também. Típico. Quando o filme acaba, dá vontade de ser Caronte por um dia, e levar para o inferno as almas de certos diretores e produtores de Hollywood...

(16 de fevereiro de 2010.)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quem me dera partir ao meio um relâmpago

Havia um rato dentro de casa.
Ele roubava a liberdade do pé descalço e da escuridão.
Conseguia estar em qualquer parte,
roendo,
rabiscando,
com suas saliências
de unhas e dentes
uma coragem de duas décadas e meia.

Mataram-no.
A miragem do queijo gratuito.
O impacto da ratoeira enferrujada.
A frustração mais dolorida do que a morte.

Depois,
um banquete servido às formigas
na lixeira.

Também você,
às vezes,
uma miragem de dias felizes,
e o impacto das palavras enferrujadas,
o muro do seu não,
o peso do seu talvez.

Depois,
o meu coração:
um banquete
servido às formigas
na lixeira.

(10 de abril de 2009)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

The Get Up Kids

Sabe, eu não tenho uma página no Orkut, Facebook ou afins, não sigo ninguém no Twitter, etc. Mas eu tenho um Flork. Trata-se de um site de relacionamentos famoso na Europa, que poderia ser descrito como um “Orcult”. Com o layout dos mais simples, espaço para apenas uma foto, e total privacidade na troca de mensagens, o espaço é ideal para pessoas que querem discutir música, literatura e cinema. Até hoje, raramente me frustrei com os membros do site. Muito pelo contrário. Outro dia, por exemplo, recebi uma mensagem de um compositor americano, que se dizia fascinado pelo fato de eu ter os Get Up Kids integrando minha lista de favoritos. Isso porque, segundo ele, o grupo lhe havia sido uma grande influência, tendo jamais alcançado o reconhecimento que certamente mereciam. Eu concordo. A banda, que surgiu em 1994, em Kansas City, e cujo som se define como “indie rock”, “lovecore”, ou “emo de primeira fase” (a respeitável!), me acompanha há cerca de dez anos, em formatos que servem de marco para uma série de transformações por que passou a indústria fonográfica nesse período. Pois bem: eu ainda era uma adolescente melancólica no sul de Minas, em Três Corações, quando um amigo gravou uma fita para mim, de cujo conteúdo bruto eu simplesmente não me lembro, mas em que ele, para aproveitar os minutos virgens do lado B, inserira três faixas do álbum “Something to write home about”. As canções eram adoráveis. Depois de ouvi-las repetidamente (sem chegar à exaustão), pedi que ele gravasse um tape exclusivamente com The Get Up Kids para mim. “Vou conseguir com um colega de trabalho”, ele respondeu, “o CD é dele”. Ótimo. Aguardei ansiosa a sua próxima visita, para descobrir que o tal colega, que respondia pela esdrúxula alcunha de “Cebolão”, havia dado um golpe na empresa em que trabalhavam, e fugido, naquela semana. Para compensar, meu amigo trouxe uma fotocópia que havia feito do encarte, para que eu me consolasse com as letras – que eram muito boas, diga-se de passagem. Por sorte – foi o que pensei –, outro amigo começou a namorar a esposa abandonada do fugitivo, uma moça de cabelos vermelhos bem ao estilo “Corra, Lola, corra”, e me prometeu que conseguiria o referido CD. Acontece que, antes de desaparecer totalmente do mapa, o tal Cebolão havia passado em casa e recolhido alguns artigos de sua grande estima, tendo, dentre eles, o álbum dos Get Up Kids. Fazer o quê? Eu teria que me contentar com as três adoráveis canções e a xérox do encarte. Entretanto, meses depois, talvez mais de doze até, comecei a namorar um rapaz de Lavras, fã de Cannibal Corpse, para o qual apresentei a tríade das músicas de lovecore. Então, em uma viagem a São Paulo, hospedado na casa de um primo, ele se deparou com a maravilha das maravilhas: a internet a cabo, “speed” ou algo que o valha. Na época, internet discada era um luxo, especialmente em cidades do interior. Só as metrópoles mesmo podiam gozar da rapidez de uma conexão que não deixasse ocupada a linha telefônica. Ele voltou, disse que tinha uma surpresa e, diante da minha ansiedade esperançosa, enviou os CD´s (eram quatro) por uma amiga lavrense com a qual eu me encontraria em Varginha. Ele não disse do que se tratava, mas escreveu sobre o embrulho pardo-claro: “Suicidal Tendencies”. Eu gostava de Suicidal Tendencies, mas não era exatamente com isso que eu sonhava... Mesmo assim, quando cheguei em casa, numa hora qualquer perto da meia-noite, coloquei o CD para tocar. Dez segundos depois, eu era a pessoa mais feliz do mundo! The Get Up Kids!!! Assim, completo, uma canção melhor do que a outra, mais alegre, mais triste, mais bonitinha, mais visceral, mais Get Up Kids. Perdi a conta de quantas vezes eles foram a trilha sonora dos meus grandes momentos. Mas lembro que, no exato dia em que me mudei para Belo Horizonte, e fui tomar o meu primeiro banho na república nova – casa nova, cidade nova, vida nova –, fiz questão de colocar “Four Minute Mile” para tocar, porque se encaixava com aquele gosto de liberdade que eu começava a descobrir. Depois, com as novidades nem sempre felizes de uma vida independente (cheia de contas e obrigações), deixei de acompanhar a evolução da banda – sem parar de ouvi-los, é claro. Até que, pouco tempo atrás, um aluno me presenteou com um DVD, que condensava a discografia completa do grupo – somada a todos os álbuns de outros queridos afamados, como Galaxie 500 e Elliot Smith. Pois é: das três musiquinhas daquela delicada fita, aos acessíveis vídeos do Youtube, os fáceis downloads de raridades e a troca de opiniões e elogios pelas mensagens do Flork. De fato, “something to write home about.”

(06 de janeiro de 2010)