domingo, 28 de março de 2010

Na ordem usual das coisas

Maicom acordou cedo. Nada para fazer em casa, foi até a rua, sentar-se no primeiro pedaço de meio-fio que encontrasse. O céu tinha um azul ralo e as janelas dos prédios do arredor ainda estavam fechadas. Era domingo. Também poderia, como os outros, dormir até mais tarde. Mas a mãe roncava alto. A irmã menor acordava sempre, aos berros, pedindo algo que tapasse a fome. E o irmão mais velho, que escancarara a madrugada com tropeços trôpegos e garrafas pela metade, sacolejantes, xingava a menina com palavrões que ele não podia repetir na escola. Mas repetia mesmo assim, escondido.
Não tinha espaço para brincar dentro de casa e, aos domingos, não havia desenho animado nos canais abertos de sua televisão de poucas polegadas. Então ficou ali, sentado, esperando alguém chegar, assim como – descobriria anos mais tarde – fazemos durante boa parte de nossas vidas.
O pai não chegaria. Há algum tempo conhecera uma moça que trabalhava à noite, na rua Guaicurus: salto plataforma, tinta verde no cabelo, batom violeta. Nunca havia visto coisa parecida; não voltou mais desde então. O pai, sujeitinho ordinário, como no verbete do pequeno Aurélio:
ordinário adj. 1. Que está na ordem usual das coisas; habitual, comum. 2. Regular, frequente. 3. De má qualidade; inferior. 4. De baixa condição; baixo, grosseiro. 5. Bras. Sem caráter; reles, ruim. 6. O que é habitual.
O pai tinha uma sociedade com o filho mais velho, algo como “Jorge & filho LTDA”. Negócio bem localizado, na Praça Sete, Avenida Afonso Pena. Ele, banguela e magrelo, vestia o colete amarelo berrante: “Compra-se ouro”. O cliente se aproximava, mostrava a corrente, o anel, a aliança de um amor desalmado. Ele avaliava, ar de especialista, oferecia um preço reles. O freguês praguejava e partia. Então o filho mais velho, Elvis, surgia correndo, arisco, como se não surgisse, passadas de guepardo, e levava o ouro por um preço menor ainda. 0800. Depois vendiam para a matriz. Trabalhavam com franquia. Mas os negócios iam bem. Quanta gente ingênua no mundo, Meu Deus!
Um tempo depois, quem sabe, Maicom também entraria para a equipe.
Por enquanto, olhava as pessoas que caminhavam em torno do córrego fétido e raso.
Quanta gente ingênua, Meu Deus!
Dona Nair, secretária de dentista, uma vez quis vender um colar de ouro, herança de tia-avó, para ajudar o caçula a comprar um carro de segunda mão. Foi freguesa de “Jorge & filho LTDA”. Nem viu o menino chegar nem partir. Só viu o arranhão de sua unha preta, felina, depois. Teve nojo. Mas não disse isso a ninguém. Apenas repetia, trêmula, fingindo calma, “vai-se o colar, fica-se o pescoço.” Ficou triste, mas ninguém percebeu.
Dona Nair também caminhava em torno do córrego fétido. Não era gorda, mas o culote a incomodava. E alguns pneuzinhos que a blusa de malha, larga, disfarçava. Ela caminhava, taciturna. Também um senhor de camisa pólo, e mais dois, com ares juvenis, óculos escuros, poucos fios de cabelo, calvície bem resolvida.
Maicom não era bom com esportes. Tão pequeno, tão mirrado, acabava sendo sempre o último a ser escolhido para o time. Nem para goleiro servia. Desgostou de jogar bola, só jogava se fosse de gude. Não via a hora em que fosse grande e pudesse tomar cachaça no botequim. Um dia tentara, com o boné fazendo sombra nos olhos de menino ansioso. O homem do bar riu, deu um guaraná. Ele ficou com raiva. Se estava pagando, tinha que ser atendido. Bebeu o refrigerante mesmo assim, jogando, antes, um pouco para o santo, como o avô falecido lhe ensinara.
Tinha só 12 anos, mas já lhe eram suficientes.
O azul do céu era ralo. O ralo de seu banheiro estava entupido com biras de cigarro e cabelo. A casa era um quarto e uma privada, um chuveiro com fios à mostra, e todas aquelas pessoas. Nomes de artista. E ele tão pequeno que nem para jogar bola servia. E tão ruim em matemática que dava o troco errado quando vendia bala no sinal. Saía no prejuízo. Queria comer pão com manteiga e tomar pingado de boteco. Queria ser grande. Queria poder um pouco mais.
Tinha só 12 anos, mas suas vontades já lhe eram suficientes.
Os senhores corriam em torno do córrego. Só Dona Nair é que não. Nem dava conta, coitada. Só andava, lenta. Trazia um porta-moedas. Depois iria à padaria, trazer uma rosca-rainha para o filho e dois reais de pão-de-queijo.
Sua vontade cresceu, cresceu o olho para cima do porta-moedas, visão de raio X.
Fome de pão com manteiga, preguiça de esperar, preguiça de descobrir que não tinha nada para comer de novo, preguiça de esperar ser grande para ser gente.
Maicom pegou uma pedra.
Era pequeno, mas uma pedra grande o agigantava.
Nada para fazer, a mãe roncava, o pai com a mulher da rua Guaicurus.
Era apenas uma pedra, porém não era tão apenas assim: tinha sido a primeira arma do mundo, a de Caim e Abel.
─ Me dá o dinheiro! – ele gritou, com a voz aguda e desafinada de um menino com medo.
─ Não. – Dona Nair desacreditou da força do moleque magricela mal vestido.
─ Dá sim! Agora! – e ele mostrou a pedra, ameaçador.
O senhor de camisa pólo correu mais depressa. Queria ser herói no domingo de manhã, contar a história para os colegas, enquanto comesse o tropeiro do Mineirão mais tarde.
─ Para com isso, menino! – gritou.
Maicom atirou a pedra. Errou. Não tinha mira, não tinha força. Só tinha vontades.
O homem deu-lhe um tapa na nuca. E gritou, como se grita com um cachorro, como se grita com suas pulgas e sarnas:
─ Vai embora! Anda! Vai embora, moleque filho da puta!
Era o herói da semana.
Dona Nair estava aliviada. Ainda existiam homens como antigamente.
A mãe de Maicom não queria ter outro bandido em casa, por isso ele ia ao colégio. E o bolsa-escola era sempre uma ajuda muito bem vinda.
Mas o pai já contava com o auxílio dele para ampliar os negócios.
E Maicom só tinha vontades.
Foi para casa, rabo entre as pernas, moroso, pequeno, mirrado, fracote.
Tinha que crescer antes da hora, tornar-se um homem, deixar de ser só vontades, correr atrás, realizar. Na semana seguinte – prometeu-se – levaria um canivete.
(03/06/2007)

domingo, 21 de março de 2010

Sobre o Anathema e a chuva de domingo

Faz tempo que quero escrever sobre o Anathema. É quase como um tributo a uma das top five da minha lista de the bests. E hoje eu quase desisti de novo, porque saí para caminhar – uma dessas manhãs de domingo, ruas vazias, o mundo quase exclusivamente seu – e choveu. A chuva aumenta aquela sensação de monopólio do mundo, porque todos somem por detrás das paredes de concreto quando chove. Eu estava ouvindo Faith no More, depois Metallica... e, sim, foi muito bom correr sob a chuva ao som de “From whom the bells tolls”. Então, por isso, eu quase mudei o tema do texto. Mas, não, vamos falar de Anathema. Ou talvez nem tanto: você pode procurar informações mais precisas se entrar no site oficial deles: www.anathema.ws
Enfim. Eu ouço Anathema há mais de dez anos, e foi sempre aquela banda que trazia sentido a tudo. Foi por isso que quase enlouqueci quando eles vieram ao Brasil, cerca de quatro anos atrás, para duas únicas apresentações: uma em Brasília, outra em São Paulo. Era uma fase complicada, de muito trabalho e estudo intenso para a prova de Mestrado, e eu estava tentando economizar para fazer uma viagem maior... mas nada disso era desculpa. O Anathema viria ao Brasil! Só faltava arrumar alguém que gostasse deles tanto quanto eu... ou alguém que ao menos conhecesse a banda, o que já era bem difícil. Porém, como há gente demais no mundo, havia também um amigo querido que estava disposto a ir ao show comigo. (Só para constar: esse amigo é uma das pessoas mais cultas da face da Terra, só escuta música erudita, mas ele abre exceção para o Anathema – isso lhe diz alguma coisa sobre a qualidade do grupo?) E, para melhorar, esse meu amigo querido é ninguém menos que o tecladista do Tuatha de Dannan (se você ainda não conhece, não perca tempo: www.tuathadedanann.com.br), o que gerava uma certa esperança de que acabasse acontecendo uma jam session, uma pizza depois do show ou algo assim, quando eu teria a mágica oportunidade de ouvir de perto o sotaque desesperadoramente bonito do Vincent Cavanagh. Nos dias que antecederam o show, eu só pensava em inglês, falava inglês, fazia xixi em inglês. E assistia a vídeos do Anathema, ouvia Anathema, sorria Anathema. Reorganizei minha vida toda, consegui substitutos no trabalho, consegui a grana de que precisava e estava entusiasmadíssima. O show ao qual eu iria aconteceria no sábado. Eu viajaria para o interior, encontraria o pessoal do Tuatha, e nós partiríamos para São Paulo. Tudo assim, no futuro do pretérito mesmo: na sexta, o meu amigo querido telefonou, dizendo que não mais iria, porque o pai estava no hospital, muito doente, internado em uma dessas siglas como CTI ou UTI, não sei ao certo. Felizmente ele se recuperou – e passa bem, obrigada –, mas não a tempo de eu viajar para São Paulo. Lembro-me daquela noite de sábado, daquele vazio, olhando para a parede e me perguntando como é que teria sido estar lá, o que eles deveriam estar tocando naquele momento, e pensando na sorte triste que eu tinha. Então, na segunda-feira, meu amigo querido me enviou um e-mail: “você viu o que aconteceu no show do Anathema?” e seguia um linkizinho azul, como os que espalhei por este texto (que, entretanto, não ficaram azuis), pelo qual soube que o concerto simplesmente não acontecera. A casa de show onde eles tocariam não possuía alvará de funcionamento. Assim, enquanto a banda de abertura se apresentava, o organizador subiu ao palco, transtornado, dizendo que o Anathema tentaria tocar antes que a polícia chegasse. Mas a polícia chegou no início da primeira música e o concerto foi encerrado. Claro, ninguém devolveu o dinheiro e nem reparou a frustração dos fãs que ali estavam – e eu poderia estar entre eles. É claro, frustrada eu já estava, mas ao menos estava dentro de casa... Minha sorte, afinal, não era tão triste assim.
No meio do ano passado, o Anathema voltou à América Latina, e se apresentou em vários países vizinhos, menos, obviamente, no Brasil. O interessante foi que, às vésperas do show em Buenos Aires – ao qual cheguei a cogitar estar presente – conheci um cara (amigo de um amigo) que, nos primeiros trinta segundos de conversa, revelou adorar Anathema. Eu não acreditei. “Anathema!? Você gosta de Anathema? Eu amo essa banda!”, respondi. Ele me olhou assustado e disse: “Não. Você não gosta. Ninguém gosta de Anathema, ninguém conhece Anathema. Só eu.” “Pois então, gigante Polifemo, eu sou Ninguém...” O resultado foi uma madrugada inteira rodando a cidade à procura de um bar legal – o que era, na verdade, desnecessário, porque ele tinha a discografia completa do Anathema dentro do carro, as caixas de som eram potentes, e nossos amigos tiveram que nos aguentar cantando bem alto todas as músicas do “Alternative 4”, o meu favorito. Por fim, vale dizer que, para ser ainda mais apaixonante, o Anathema ainda gravou uma balada linda, lindíssima, com o meu nome no título: http://www.youtube.com/watch?v=2RG_n8v_fz8&feature=related

sábado, 13 de março de 2010

As consolações do rock-farofa

Alain de Botton, um filósofo pop, autor dos livros “Como Proust pode mudar sua vida” e “As consolações da filosofia” (que virou série da BBC, anos atrás) escreveu, certa vez, que, quando estava triste, costumava ir a aeroportos e ficar lá, sentado, olhando as pessoas que chegavam e partiam. Para ele, a prática garantia o alívio de pensar num mundo cuja vastidão nós desconhecemos quando ensimesmados em nossas dores e frustrações. Imaginar, portanto, que o lugar presente é apenas um dos tantos destinos imagináveis, e que nossa alma-gêmea pode estar esperando por nós, sorridente, em uma cidadezinha no interior da Noruega, a qual não tivemos a sorte de visitar ainda, era o suficiente para trazer-lhe uma dose de satisfação e esperança no dia seguinte, no voo vindouro. Gosto do raciocínio de Botton, mas tenho um outro método para minhas consolações: eu vou a concertos de rock. É claro que os shows não possuem a estaticidade dos aeroportos, que permanecem lá, parados, com suas lanchonetes caríssimas, embora decolem os aviões e as bagagens. É preciso esperar que os produtores tragam grandes bandas e aceitem pagar o cachê exorbitante de cada uma delas e se submeter às exigências escandalosas de seus integrantes. Porém, como a gente sempre tem um motivo para estar triste mesmo, vem a calhar um bom show de rock a qualquer hora, em qualquer mês do ano. Além disso, na pior das hipóteses, há sempre uma banda local se apresentando no porão da Obra Bar Dançante, agora com ar condicionado. Enfim, propagandas à parte... Quarta passada, foi a vez de o Guns n´ Roses me fazer extravasar uma fase ruim em cada refrão de seus hits pegajosos, enquanto, no palco, explodiam luzes e imagens em alta definição. Sinceramente: o Guns está longe de ser um dos expoentes mais significativos da história da música; eles ficam ali no limbo entre o pop e o rock, e foi-se o tempo em que o Axl supria essa carência musical com seu shortinho de ciclista e sua bandana sexy. O sex appeal foi transferido para o guitarrista tatuado sem camisa, mas o buraco na qualidade musical, que é o que interessa, só se alargou, com a saída de Slash e companhia, e a perda de alcance vocal de Axl Rose, proporcional ao acúmulo de peso na região de seu abdômen. O show foi aquilo mesmo: um espetáculo pirotécnico, com canhões que cuspiam fogo a cada clímax sonoro, e com direito a chuva de papel vermelho em “Paradise City”. Mas houve a banda de abertura, ou o Sebastian Bach, que, diferentemente de Axl, passou os últimos anos em plena “atividade” – mesmo que essa palavra resuma sua participação em séries de TV como Gilmore Girls, reality shows e, louvável!, “Jesus Christ Superstar” na Brodway. Mas ele ainda tem vigor, e isso é inegável. Berrou, pulou, correu do começo ao fim, e falou português o tempo todo – uma simpatia! Resumindo: fui ao show para me sentir feliz, e valeu a pena. Afinal, ninguém resiste a baladas cafonas e adoráveis como “I remember you” e “Sweet child o´mine” ao vivo, no meio da multidão alucinada. Impossível ficar triste, apesar de todas as brutalidades dessa vida.

(13 de março de 2010.)

domingo, 7 de março de 2010

Flúvio

DESCULPEM, SEI QUE O TEXTO É GIGANTE E INADEQUADO AO FORMATO DE BLOG... MAS HOJE NÃO CONSEGUIRIA POSTAR ALGO DIFERENTE.

Flúvio é um garoto muito esperto, que tem agora seus sete anos, um nariz arrebitado e uma imensa capacidade de deixar extenuadas todas as pessoas que se oferecem para brincar com ele. Não sei de onde vem esse nome, nem a procedência do dono do nome, a cidade em que ele nasceu, ou vila ou município, e acredito que nem a mãe dele saiba de verdade a origem do espermatozóide que fez metade do trabalho de criação. Ou um terço: porque a Mãe Natureza tem lá sua contribuição.
Enfim, um dia ele surgiu, como esses bebês que vêm num cesto, com um bilhete dizendo “Cuide dele”, e um ursinho velho e malcheiroso. Minha família se afeiçoou do seu jeitinho de bicho do mato e de um dente seu que já nasceu torto. Aos poucos, fomos ensinando a ele o nome das cores e as letras do alfabeto e a olhar para os lados antes de atravessar a rua. E agora ele vive correndo de um lado para o outro no asfalto que separa a minha casa da dele. Ele chega lá, acorda meu irmão, pulando violentamente sobre o coitado, e pede que grave um CD para ele – do Slipknot, da Xuxa ou de algum funkeiro qualquer.
Por dedicar a meu irmão essa preferência descarada, sempre pensei que não gostasse de mim. Sempre, até o dia em que, uns três anos atrás, ele pediu à sua avó (minha tia) que comprasse um presente para mim. Ela comprou: um par de brincos cor-de-rosa, em forma de flor. Florzinhas. Ele foi lá me entregar e me foi muito feliz receber aquele presente dele. Tanto que eu, embora tenha perdido um dos brincos (descuidada!), ainda guardo o outro como lembrança do dia em que descobri que ele me amava – apesar de não me acordar com um pulo todas as manhãs.
Também foi há uns três anos que o vi ter sua primeira cãibra. Ou talvez tenha sido um simples adormecimento do pé, mas, enfim. Ele tentou se levantar e não conseguiu e notou que algo estava errado. Contorcia-se e olhava para o teto e para mim, dizendo “meu corpo! Meu corpo!” Eu o toquei nos ombros e ri de nervoso e falei que logo iria passar, que ficaria tudo bem, como, de fato, ficou. Mas o desespero dele foi meu também, porque descobri que não conseguia explicar a dor a uma criança, e muito menos fazê-la parar de doer. E achei também muito estranha, um misto de caricata e abominável, a sua constatação de seu corpo, de seu pequeno e raquítico corpinho, que ainda lhe produziria muitas coisas. Inclusive dores. Inclusive prazeres.
Um dia, meu pai me apresentou as amoras. Estávamos passeando perto da casa de meu avô paterno e então ele avistou uma amoreira. Apanhou um dos frutos e me disse: “isso é uma amora”. E eu a pus na boca e pensei, enquanto o suco escorria pela minha língua: “olha só! Isso é uma amora”. Foi uma das únicas apresentações formais que tive das coisas do mundo. Porque, em geral, elas nos atropelam, nos derrubam, nos carregam, e mal conseguimos distinguir o tempo de localizá-las ou chamá-las pelo nome.
Depois vi um filme em que as amoras salvavam a vida de um homem (ironia: o filme se chama “Gosto de cereja” e o super-herói da história é a amora! Idiossincrasias da tradução...). E li também um livro, o “Zorba”, em que o protagonista, também o Zorba, empanturra-se de amoras para começar a detestá-las. E aconselha que façamos o mesmo com tudo na vida, para que nada tenha efeito devastador sobre nós.
(Ingenuidade.)
Mas acabei precisando mudar de cidade e deixar o Flúvio lá. Mesmo assim, às vezes o visito. E tenho a oportunidade de vê-lo enfrentando cachorros, empinando a bicicleta, saltando largos buracos, e me dizendo, orgulhoso, “olha, eu não tenho medo de nada!”.
(Quem dera, Flúvio, pudéssemos todos dizer o mesmo!)
Além disso, sempre recebo notícias dele. Dele e das outras crianças que vieram, por obra da cegonha e não do cesto, engordar a família. Diz meu irmão que, dia desses, o menino teve um sangramento nasal. Disse que ficou sossegado depois, pedindo à minha prima que ele chama de mãe que se deitasse com ele. Imagino a surpresa que sentiu ao, de repente, ver o sangue escorrendo pelo nariz. É claro, ele já é bem crescidinho, e já caiu da bicicleta muitas e muitas vezes, e sabe conceituar o sangue. Mas, acredito, entendia que sangue saía de joelho esfolado, de cotovelo, de ferida aberta de carrapato. Não de nariz.
Dias atrás, uma amiga minha me deu amoras de presente. Fiquei bastante alegre com a lembrança, mas não consegui me empanturrar delas, como o Zorba. Porque eram, sim, doces e suculentas, mas não eram a amora da minha recordação. Não se empanturra de mundo inteligível no mundo sensível.
E, às vezes, tenho vontade de dizer isso ao Flúvio. Pedir que seja um menino-rio, que escorra pela vida, que toque, que molhe e prove as coisas todas. Mas que não se demore, que não se demore o tempo de um longo abraço sem retorno. Que não deixe que nada o prenda. Que ele seja sempre o mesmo, mesmo na ausência de qualquer coisa.
(Ingenuidade das ingenuidades!)
A verdade é que sei que ele vai crescer. Vai aprender a trocar lâmpada e colar na prova de geografia. E vai descer no ponto errado do ônibus e caminhar muitos quarteirões de volta. Ou terá um pneu furado numa estrada solitária ou um tombo da motocicleta. Talvez leve uma surra dos colegas do colégio. Talvez bata neles e se sinta “o foda”, e depois não entenda por quê. Pode ser que se candidate a vereador. E perca. Talvez, não. Pode ser que seja craque de time de várzea. Ou advogado. Ou mecânico. Ou dentista. Ele vai crescer e vai se apaixonar. E ela será o eixo de toda a sua vida por semanas, meses ou anos. Até que um dia ela diga que ele é uma pessoa legal, mas que ela precisa ir. É, talvez ele se apaixone e nunca ouça a frase preferida dos amantes sequer uma vez. E ele vai querer morrer, mas aí vai encontrar também uma pessoa legal. E eles se casarão e terão filhos legais. Ou não: talvez não se casem; talvez não tenham filhos; talvez os tenham, mas eles não sejam legais.
Enfim, como as memórias que envelhecem, os sabores que se destoam, confundidos por novas realidades mais palpáveis, também Flúvio vai crescer. E talvez leia um livro que a professora mandou. Talvez me dê presentes outra vez. Talvez perca o emprego. Talvez o seu time perca o campeonato, caia para a segunda divisão. E ele descobrirá que o enredo dos episódios de Scooby Doo é o mesmo, que só se mudam o nome dos fantasmas e os locais de investigação. E Flúvio perceberá que, sim, há coisas das quais ele tem medo. Muito medo.
E haverá um dia. Daqui a muito tempo, eu espero. Quando ele já tiver experimentado todos os tipos de sensações, toda a sorte de sinapses e alterações cardíacas. E estiver morando sozinho, ou em uma república, ou quando sua esposa legal tiver viajado. Um dia em que, quando sentir fome, ele irá até a cozinha para preparar o seu Nissin Miojo Lamen. E, depois, Flúvio irá comê-lo em frente à TV, assistindo a algum programa de esportes. E quando der a quarta garfada, ou pode ser a quinta, ele olhará para o teto e perceberá que a vida está bem distante da salvação pelas amoras. A vida é um grande prato de Nissin Miojo Lamen: por mais que você incremente, mude o tempero ou tempo de cozedura do macarrão, ela continua insossa, prosaica, previsível.
Ele se perguntará por que ainda olha para os lados antes de atravessar a rua – quem foi que ensinou isso a ele, Meu Deus? E dará a sexta garfada no macarrão instantâneo.

(01/11/04.)