sábado, 29 de maio de 2010

ETC.

A verdade é que o “livre arbítrio” acaba sendo só mais uma expressão bonita que a gente aprende na vida. Ninguém escolhe nascer, pra começo de conversa. E a gente já nasce sendo metade do pai metade da mãe, com tendência pra ter varizes ou cabelo branco na adolescência, conforme a condenação da porra dos genes. E têm ainda os traumas de cada um dos nossos pais, e o fato d´a gente ser o irmão mais velho que todo mundo cobra, o mais novo que é um mimadinho, ou o do meio, que se sente um zero à esquerda, sem identidade... essas coisas. Ou ser o filho único, que é geralmente um egoísta e não sabe dividir nada etc. E depois, na medida em que a gente cresce, vem a política dos resultados, do tirar nota boa para passar de ano, ser aprovado no vestibular pra chegar na faculdade, estágio, aí ser efetivado, promovido... ou, pra quem leva jeito pra traça, fazer mestrado, doutorado, pós... Fora a matemática das conquistas amorosas, de ser 39% cafajeste, 21% sensível etc. No fim, a gente tá sempre amarrado a uma corda, uma queda de braço, um cabo de guerra, que te derruba por ser alguma coisa de mais ou de menos, por ainda não ser x ou por já ser y... e sobra, de fato, muito pouca escolha de verdade nessa vida.
Mas há a pelada de terça à noite. Quando a gente se reúne com meia dúzia de amigo e faz uma vaquinha pra pagar a quadra. Joga, depois vai pr´um boteco, tomar uma, ou faz um churrasquinho na casa de alguém, e fala de futebol e de mulher. E fica tudo bem.
E fica melhor ainda quando a gente sabe jogar. E é o meu caso. Eu sempre fui daqueles que decidem a partida, que não têm frescura e quebram o zagueiro que vem encher o saco, e que chutam de fora da área no ângulo, que humilham o goleiro, que dão paradinha na hora de bater o pênalti. Eu sempre fui o cara que todo mundo quer ter no time. E um adversário chato pra caralho também.
Aí, na última partida, era uma terça-feira como as outras. Eu tinha dado um duro danado na empresa, mas tinha fechado um negócio com um cliente pica grossa e tava me achando. Fui pra pelada ainda mais confiante do que de costume. E, de cara, marquei um golaço, de peixinho. O lançamento veio direto na cabeça do papai aqui... aí foi só correr pro abraço. Uns dez minutos depois, a mesma coisa: o lançamento perfeito da esquerda – o Clóvis anda batendo um bolão também, acertou duas vezes seguidas – e eu só matei no peito e chutei com a direita, a boa. Pá! Forte, no fundo da rede. “Indefensável”, como dizem os locutores de rádio – ou os de TV, que gostam mais de falar difícil. Mas aí o mané do Luiz Otávio – Luiz Otário! – veio correndo pro meu lado, cuspindo na minha cara, dizendo que eu tava impedido. Impedido o caralho! Eu ri, empurrei ele, a turma do deixa-disso veio separar a gente... Babaquice. Na pelada a gente não tem tira-teima. A bola entrou, tava dois a zero pra nós e pronto. Bichice brigar por causa disso... viadagem. O cara não joga nada e vem encher o raio do saco.
Bom, o babaca falou que não ia jogar mais. Descalçou a chuteira, falou que tava cansado, que meu time era sempre favorecido. Conversa fiada de cruzeirense. A partida recomeçou e eu já fui buscar a bola no meio de campo. Dei uma de ladrão, tirei do lateral direito, driblei o Toninho, que até que não é ruim de bola, não... E eu já tava quase na grande área... A gente nem ia pensar no viado do Luiz Otário – ninguém tava dando falta dele –, se ele não invadisse o campo, fazendo cara de macho... Mas todo mundo continuou jogando, lance de perigo, quem ia ligar pr´aquele cara? Eu chutei, a bola tirou tinta da trave. O goleiro foi buscar pra bater o tiro de meta. E aí, nesse meio tempo de bola parada, o Luiz Otário chegou perto de mim, enfiou a mão dentro do calção, tirou o revólver, e me deu dois tiros no peito, “a queima-roupa”, como eles dizem no jornal.
E foi assim que eu morri.
Sem livre arbítrio.

(28 de julho de 2009.)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Nada é mais triste do que um corintiano triste – ou não

Ninguém entendeu por que eu fui parar no meio da torcida do São Paulo, na última quarta-feira, no Mineirão. “Fazer parte de um grupo vencedor”, eu respondi, meio brincando, meio falando sério. A verdade é que foi divertido estar ali, perto da bateria, ajudando a estender o bandeirão que a gente vê na TV e acha o máximo, olhando pro campo dali de baixo, naquele espaço esquisito reservado aos torcedores visitantes. E, de fato, ter decorado, na pré-adolescência, todos os hinos dos grandes clubes (com exceção do Palmeiras, a que me recusei) ajuda a me camuflar entre as principais torcidas. Não foi a primeira nem terá sido a última vez. Mas, na realidade, a minha presença ali se justifica pelo fato de ser o meu irmão um são-paulino. Ele era uma criança ainda, devia ter uns quatro anos, quando, vendo o Jornal Nacional, pediu ao meu pai que programasse o despertador para que ele assistisse à final do Mundial, que aconteceria de madrugada, no Japão. Na manhã seguinte, ele anunciou: “eu sou são-paulino”. Morar no sul de Minas, onde ninguém se sente pressionado entre a bipolaridade Cruzeiro X Galo, a TV influencia muito mais do que a certidão de nascimento, e ainda por cima integrar uma família em que ninguém gostava de futebol, tinha dessas vantagens: a gente podia escolher o time que quisesse. Eu demorei ainda uns anos a me decidir pelo meu – e é uma longa história o porquê de ter sido justamente o Corinthians – mas, confesso, vez por outra me pergunto por que não fui escolher uma equipe que trouxesse menos sofrimento e piada pronta. Porque havia essa desvantagem também: não tínhamos quem nos prevenisse dos apelidos maldosos, que se separam entre alcunhas homofóbicas ou as relacionadas ao preconceito social (ou são “bibas” ou marginais os torcedores de qualquer time do país, segundo a teoria), ou nos alertasse sobre o quanto é difícil gostar de verdade de uma coisa tão abstrata quanto um clube de futebol a ponto de ficar perplexo diante de uma derrota – o que é, estatisticamente, uma coisa tão óbvia. Depois do jogo, e do Mineirão calado, descer a Av. Abrahão Caram, com aquele bando de cruzeirense desanimado em volta, foi quase um “dejá vu” em relação à semana anterior e a eliminação do Timão da Libertadores. Mas foi, também, uma experiência redentora: porque é impressionante como tudo, no fundo, é tão parecido: os hinos com seus “salves” e epítetos sem sentido, os gritos de guerra com as declarações de amor clichê, os insultos, as paródias, os salários milionários a jogadores de qualidade duvidosa e, claro, o torcedor... que, depois do jogo, esperava para tomar a lotação para algum bairro distante, à meia-noite de uma quarta-feira, para dar o maior duro no dia seguinte e ganhar um salário e meio no fim do mês. Ou que ia de carro ou a pé ou... tanto faz. Se olhados de perto, todos são, na realidade, muito parecidos; e, na aridez da busca do pão nosso de cada dia, o circo do estádio não pode durar muito tempo.


(17 de maio de 2010.)

domingo, 9 de maio de 2010

Condicionadores

Quando dou aula sobre anúncio publicitário, sempre comento que a propaganda acaba nos vencendo por alguma de nossas sete fraquezas capitais. A minha, eu confesso, é a vaidade: não posso ver comercial de condicionador! Aquele fio de cabelo danificado que, de repente, é coberto por uma camada brilhante de restauração, seguido da imagem da modelo chacoalhando as madeixas iluminadas, simplesmente me conquistam. Eu tenho total consciência de que é uma ilusão das grandes pensar que meus caros cabelos longos ficarão assim deslumbrantes como os da moça da TV. Mas não consigo resistir e acabo, digamos, arriscando.
Esta semana se encerrava o primeiro módulo do curso de empreendedorismo em que eu estava trabalhando. Então, lá fui eu para o último dia de aula, munida de câmera para registrar os rostos bonitos dos meus alunos, chocolates para me despedir dos meus colegas, e aquela tristezazinha que a gente disfarça dizendo que vai ficar feliz em ter umas tardes livres na semana cheia. Estava, então, compenetrada, somando as notas em uma das turmas – a que se autoapelidou de “Classe A” – quando, subitamente, ouvi um barulho abafado sobre a mesa. Olhei para a frente e lá estava um condicionador de cabelo, trazido por algum dos alunos. No segundo seguinte, então, todos os outros foram se levantando, sincronizados, e depositando sobre a minha mesa o presente que haviam trazido para mim. Quando acordei do susto, havia cerca de vinte condicionadores em cima da mesa, o sorriso de todos aqueles adolescentes tão queridos para mim, e seus aplausos efusivos. Fiquei totalmente comovida. Só não desabei a chorar porque alguém teve a ideia de gritar “abraço coletivo!!” e aí só deu foi para rir mesmo.
Mais tarde, num dia que parecia ser um dos mais legais da minha vida – por uma série de razões –, o meu time do coração foi eliminado da Libertadores e eu fiquei profundamente decepcionada. Mas, ao mesmo tempo, os condicionadores de cabelo amaciaram a frustração. E certamente amaciarão outras e outras vezes... porque uma lembrança dessas a gente carrega consigo para sempre. Mesmo que me cortem os cabelos ou que eu vença a minha vaidosa obsessão.


(09 de maio de 2010.)