domingo, 20 de junho de 2010

Para Augusto dos Anjos

Um dia acordou e havia envelhecido. Não mais trabalhava como antes, com a força necessária para empurrar carrinhos de cimento e subir paredes de tijolos. Procurou no jornal os classificados. Jamais pensara que seus braços teriam sido feitos com essa finalidade, a de enterrar os mortos. Mas não era assim mesmo? Não era assim que fazíamos todos os dias, com tudo aquilo que precisava ser esquecido, deixado para trás? Foi ser coveiro. Havia algo de romântico naquela profissão: a mise-en-scène do velório, da roupa preta, as viúvas e as condolências, as flores, a bandeira do time do coração estendida sobre o féretro. Era bom: no cotidiano, a solidão, o silêncio e o céu, que era de inverno eternamente, enquanto varria as folhas secas e as pétalas, por entre túmulos sujos de velas que se apagaram. E, pela noite, o vento gelado, os jovens de sobretudo e vinho barato, que pulavam os muros para tocar violão, violando a lei e evocando sugestivos sobrenaturais. Mas havia também a exumação. Anos depois do espetáculo melancólico do enterro, os ossos enegrecidos, a madeira carcomida, o fedor e o abandono de um corpo que nem os vermes desejam mais. Então pensava, com tristeza, que não havia parado de envelhecer, que não tinha jeito mesmo, que isso só piorava. Atravessava a rua e tomava uma cachaça ou duas no botequim da esquina.

(20/06/2010)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Z

Um amigo, fã de Rage against the machine e “O dia em que a Terra parou”, tinha duas frases inseparáveis. A primeira: torça pelo melhor, mas espere sempre o pior. A segunda: tenha sempre um plano de fuga em mente. Eu era adolescente e não internalizava esses alertas, entretida que estava entre todas as trocentas possibilidades dos meus anos vindouros, mas jamais as esqueci. Meia década depois, um outro amigo, compositor contemporâneo, afeito a filosofias e ao horóscopo chinês, estranhou quando eu disse que, ao abrir os olhos pela manhã, não listava a quantidade de desastres que poderiam me acometer naquele dia. “Se eu fizer isso, eu não levanto da cama!”, respondi, tanto quanto fortalecida por uma certa crença no positivo.
Acontece que, com o tempo, a gente aprende sim a tentar antecipar o pior. Aprende a não divulgar esperanças, só certezas; a respeitar a natureza dos segredos, que é a de serem secretos; a aceitar que as coisas ruins podem nos acometer, embora escovemos os dentes após as refeições e cortemos os cabelos na lua certa.
Porém, na semana passada, eu não resisti: divulguei neste blog um show que ainda iria acontecer, uma viagem que eu ainda faria... e, pior, prometi contar os detalhes depois. Quase morri de pavor, em seguida. Lei de Murphy, lei de Murphy, eu pensava, para tudo. Foram dias de intensa felicidade, mesclados a lapsos de temor: eu achava que sofreria um acidente, um assalto, que a reserva do hotel teria sido sinistramente cancelada, que nos atrasaríamos para o show, que nossos ingressos seriam considerados falsos, que a polícia apareceria e fecharia a casa de espetáculos (como, você sabe, já aconteceu antes), que os músicos teriam algum colapso nervoso e não subiriam ao palco... enfim. E, pasme: foi tudo perfeito. É raríssimo poder empregar essa palavra sem soar um entusiasta sem causa, mas não posso definir de outra forma a viagem a São Paulo, os passeios pelos museus, as aquisições fantásticas na Galeria do Rock, o show da Anneke e do Danny Cavanagh, a palheta dele que conseguimos, como souvenir... e, óbvio, os segundos em que conseguimos trocar “dois dedos de prosa” com nossos ídolos (ah, aquele sotaque inglês!..) e tirar algumas belas fotos ao lado deles. Claro: voltar para o hotel foi outro suplício. Cheguei a dizer que, naquela noite, poderiam levar a minha roupa, mas não levariam aquela câmera. Porém, nenhum meliante se aproximou, nem houve qualquer acidente na estrada... nem o Corinthians perdeu aquele final de semana (arrancou um empate aos quarenta e sete do segundo tempo!). E as fotos foram salvas no computador, enviadas por e-mail (é sempre bom garantir), e algumas enfeitam o porta-retratos da sala. É, de vez em quando – torcendo pelo melhor e esperando o pior - a gente consegue ser perfeitamente feliz.

(14/06/2010)

sexta-feira, 4 de junho de 2010

In Parallel

Se você está em dúvida entre casar e comprar uma bicicleta, ignore as duas possibilidades e vá a um show de rock. Não precisa ser de heavy metal, em que, eu admito, o público costuma ser menos perfumado, menos simpático e mais, digamos, entusiasmado do que o de apresentações de british rock e afins. Mas, se você não se importar em levar uma cotovelada ou outra, valem os shows de heavy metal também. A questão é: vá. Nada limpa mais a alma, descarrega as energias negativas e rejuvenesce! A gente verdadeiramente – perdoe-me o clichê – nasce de novo. E eu sei do que estou falando. À espera do quarto grande show do ano – após Metallica, Guns e Placebo -, sou a prova viva de que nada pode transformar tão bem a perspectiva nublada de uma noite de inverno em um estado de genuína felicidade antecipada. Eu simplesmente não consigo parar de sorrir! Só de pensar que irei rever a Anneke e, finalmente, conhecer o Danny Cavanagh... Sim, eu me refiro à ex-vocalista do The Gathering (“a banda da minha tatuagem”) e o guitarrista do Anathema (do show a que quase fui e que quase aconteceu, anos atrás). Ou seja: partes essenciais das minhas duas bandas favoritas se uniram e irão fazer um show no Brasil em minha homenagem! – e ainda escolheram, para isso, um feriado, para que eu possa estar presente sem transtornos no trabalho...rs! Agora, falando sério: eles estão divulgando o CD que gravaram juntos, chamado “In Parallel”, que reúne canções de cada uma das bandas, algumas do novo grupo da Anneke, o também já comentado “Agua de Annique”, além de uns covers inusitados, como “The Blowers´s Daughter”, do Damien Rice (aquela música que a Ana Carolina e o Seu Jorge nos ensinaram a detestar com sua risível versão intitulada “É isso aí”). Serão quatro shows no Brasil: Campinas, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo (ao qual estarei presente). Não posso, infelizmente, convidá-lo a me acompanhar, leitor, porque os ingressos estão esgotados, mas prometo contar direitinho como foi! Ah, e, para retornar ao paralelo de abertura deste texto: shows de rock valem mais do que casamentos ou bicicletas, porque, embora exijam certos gastos e incluam expectativas e preparativos, mantém o romantismo da eterna recordação, não se tornando, com o tempo, parte integrante do cenário – como pode vir a acontecer com os bens materiais adquiridos e os nossos tão estimados cônjuges.

(03/06/2010)