quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Homenagem sans titre

A

Quando meu pai chegava em casa, ouvia-se o estalar de seus joelhos ao subir a escada, e sua barba roçava calada o espaço vago dos corredores. Sem dormir, eu fingia. Pesada e atenta, ganhava, de todo o seu cansaço, um carinho móvel – abraço guiado entre estreitos de portas e vãos – até o meu canto, sem notas. Meu pai sabia de cor o nome das capitais, meia dúzia de constelações e certas canções sertanejas de filhos que voltam, bules de café e fogões de lenha. Eu soube sempre esperá-lo sem palavras.

B

Minha mãe me disse que o homem era o culpado pela morte dos dinossauros, tantos anos antes de nós duas no mundo. Sabia que era mentira, mas não queria contrariá-la. Tinha perguntas demais em mim, que não rimavam com seus olhos, os mais graves, nem com a sua atenção sem dono. Nunca descobri a que alegria minha mãe pertenceu por inteiro, sem horários ou normas. Contou-me três histórias de fadas e uma série de fábulas, que reconto até hoje, costurada para sempre a seus provérbios e finais felizes. Minha mãe ensinou-me a honestidade e a gratidão, e mostrou-me o quanto é forte a fraqueza, nos lobos, nas peles e nos cordeiros.

C

Quando rezava a oração do anjo da guarda, dizia, contraditória e sem egoísmos: meu anjo da guarda, minha doce companhia, me proteja e me guarde – eu, minha mãe, meu pai, meu irmão – de noite e de dia, amém. Era como se soubesse que, em mim, carregava os três, inseparáveis, partes do mesmo pronome pessoal. Mais tarde, incluí o Corinthians, meu time do coração, que me fez sofrer muito mais do que todos os meus namorados e amores de papel.

D

Aprendemos a nos proteger juntos, com paredes claras e bom-humor mordaz, das guerrilhas domésticas e do gosto musical malogrado dos nossos vizinhos. Soubemos sempre dividir ao meio chocolates, esperanças e bandas de rock. Dos roedores sorrateiros e das noites sem luz elétrica, salvaram-nos vozes, nossas, com seus cavaleiros e nuvens atados a elas, brilhantes. Dos medos do mundo, de todos e tantos, o meu, mais verdadeiro e triste, é perdê-lo de mim.

E

Antes seriam cinco e teriam nomes estrangeiros. Depois, três; as meninas em maioria, com pliets e elevets. Em seguida, meia década, mais realista, quis um só: Johann, como o compositor alemão, mas, de preferência, sem fugas. Hoje, transito entre um e zero: Heitor, nome pelo qual me apaixonei na dedicatória de um livro bom; ou Zero, como o cachorro fantasma de um tétrico stop motion. Se tiver um filho, quero pedir-lhe para ser do mundo, desde o início, para que não haja dor nem adeus. Só o vento forte das tempestades na tarde seca, arrancando, das flores, perfumes íntimos, seus.
(fev./2009)

domingo, 19 de setembro de 2010

Baby, o porquinho

Deram uma paulada na cabeça do porco que, com as patas amarradas, tentava escapar do inevitável. Era uma tarde de sol, dessas de verão precipitado, numa cidade de médio porte. Quem tirava um cochilo de depois-do-almoço acordou assustado. O grito do porco arranhava o raciocínio, derrubava as paredes, entrava no ouvido como a faca debaixo da pata esquerda, o sangue que saía em jatos. O sangue tinha mesmo que escorrer ou estragava a carne, dizia um entendido. Devia ter cortado a jugular, dizia outro, assustado com o olho aberto do bicho, que ainda se estrangulava num ruído agudo, um guincho, desesperado, insistente. A dor do grito do porco é o mais legítimo som do sofrimento. Um dos homens, o mais assassino de todos, afundava mais fundo o facão, já cego de tanto vermelho, sem saber onde nem como nem quanto. E alguém chegava agora com a água fervendo, que era para escanhoar o animal, tirar o pelo áspero, abrir caminho para a pururuca, pro torresmo. Aos poucos, o bicho foi morrendo, com seu rabo torcido e seu focinho de tomada cor-de-rosa. E o eco do grito do porco deu lugar ao martelar dos prédios em construção, numa cidade de médio porte, tão cheia de fé em si mesma.
(19/09/2010)

sábado, 11 de setembro de 2010

Allons-y, à la plage!

Ir à praia sempre pareceu algo pouco natural para mim: afinal, representaria torcer contra a chuva e ouvir axé sem ficar analisando – e criticando – a letra. Mas não era só isso: a intromissão da areia, o sol, a pele descascando depois, e aquela série de coisas que as pessoas costumam achar “superlegais”, como pular onda (ah, que divertido!) e depois ficar “secando”, estirado sobre a canga colorida, com tantas partes do corpo à mostra, na ânsia de voltar para casa bronzeado, com “marquinha de biquíni”... bem, tudo isso me cansava só de imaginar, e eu escolhia mesmo era perseguir os lugares frios – de preferência, com possibilidade de geada e neve. Mas as coisas mudam, e a gente muda também. Poucos anos atrás, comecei a achar bonito o mar e a gostar do sol – um pouco por influência das “Núpcias”, de Camus, que é um livro belíssimo sobre essa riqueza dos litorais. E a ir à praia em situações inevitavelmente empolgantes, com grupos de pessoas bem entusiasmadas, dessas de quem você precisa fugir, sorrateiramente, e se esconder no banheiro, se quiser ler um livro sem que pensem que você está triste, com princípios de depressão ou algo assim. Com o tempo, a gente aprende a se deixar contagiar. A ver que não há mal nenhum nisso. E passa até a gostar dessas férias solares de si mesmo. Foi o que aconteceu no último feriado, quando fui para Ubatuba com meus amigos de colégio. Nós nos conhecemos há uns dezessete anos, sabemos uma tonelada de coisas uns dos outros, a ponto de podermos prever nossas reações a tais e tais situações, e, mesmo assim, ainda nos gostamos, sentimos saudade, queremos ficar perto. Porque a amizade tem que ser assim, uma piscina de almofadas, sobre a qual você possa se atirar sem medo, podendo dividir suas expectativas, seus segredos e mesmo suas inevitáveis irritações. Choveu todos os dias em que estivemos na praia, e não pude trazer para casa a famigerada “marquinha de biquíni”... Porém, ninguém teve dúvidas de que se divertiu, de que havia, sim, algo de ensolarado nessa viagem entre amigos, que a gente queria fazer há pelo menos dez anos, mas que não podia, porque nossos pais não deixavam antes. Pois é: mais uma prova de que envelhecer faz bem.

(11/09/2010)

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O Ser e o Nada

Um amigo, também leitor de Camus e Baudelaire, e constantemente arrebatado pela náusea sartreana, disse-me uma vez que palavras como “migalha”, “prosaico” e “frugal” haviam sido inventadas por mim. Discordo: quem as criou foi Woody Allen. Depois de assistir a seu mais novo filme, “Tudo pode dar certo” (“Whatever works”), fico ainda mais maravilhada com a maneira pela qual esse diretor norte-americano consegue transformar em cinema de qualidade quilos e quilos de neuras, que renderiam, na melhor das hipóteses, muitos anos de terapia e meia dúzia de antidepressivos ingeridos de oito em oito horas. Porque os filmes de Woody Allen, além de nos garantirem boas gargalhadas e a imensa vontade de pegar o primeiro voo para Nova York, resumem-se, no final das contas, a diálogos mordazes intermináveis, recheados de referências niilistas, políticas, religiosas – que nem sempre a gente consegue acompanhar –, que refletem as neuroses comportamentais mais cotidianas e pessoais do diretor. No caso do último longa, a sensação de prosaísmo se intensifica pela presença, no papel principal, de Larry David. Para quem não sabe, David é o roteirista e produtor de uma das séries de maior sucesso em todos os tempos, "Seinfeld" (1989 – 1998), e, mais do que isso, inspirou-se na própria personalidade para criar o personagem George Costanza (interpretado por Jason Alexander). Costanza é, simplesmente, o cara mais adorável e detestável do mundo dos sitcoms, em toda a sua perturbadora “humanidade” (que, neste caso, nada tem a ver com altruísmo e generosidade; muito pelo contrário), nesse seriado que se define como “uma série sobre o nada”. Parece, então, que não é de hoje essa moda – visível pela proliferação de blogs, twitters, podcasts e outras invencionices do gênero – de se falar sobre o nada. Ou o tudo: o dia-a-dia, o frugal, o prosaico. E faz todo o sentido. Assim como declara o personagem de David no filme de Allen, “pouco importa se os EUA têm agora um presidente negro. Pegar um táxi em Nova York continua sendo impossível.” Ou seja, no fim, o que interessa para cada um de nós – sendo agora um tanto benjaminiana – é a história dos esquecidos, a nossa, a que não sai nos livros de História nem na capa da revista “Caras”.
(03/09/2010)