domingo, 26 de dezembro de 2010

Marialva

Foi por recomendação médica que passou a frequentar a academia de ginástica, a qual visitava pela manhã – parte destinada às donas de casa, como ela, e aos aposentados e funcionários públicos com expediente vespertino. A tarde, como se sabe, era dos adolescentes e das madames, e a noite pertencia aos fortões e às gostosonas, que disputavam espaço entre os espelhos, desviando-se dos seres humanos comuns, trabalhadores de período integral, que teimavam em manter a forma, qualquer que fosse.
No começo, era muito a contragosto que Marialva vestia a camiseta comprida, com a logomarca de uma loja de material para construção, amarrava os cadarços do velho par de tênis, e ia malhar. Passava, entretanto, grande parte do tempo diante da televisão, pedalando lentamente, enquanto folheava revistas de fofoca e aprendia, com a loiríssima apresentadora, receitas novas com ingredientes de que jamais ouvira falar. Assim, enganava-se, embora o colesterol continuasse alto – no que culpava a genética, sem remorso.
Mas um dia Marialva sentiu o peso saboroso de uma mão masculina sobre o ombro. Era o novo instrutor, que se apresentou, quis saber o seu nome – há quanto tempo, meu deus, um homem não perguntava o nome dela! – e explicou-lhe como fazer o exercício do “Graviton” sem forçar demais a lombar. Então ela percebeu que já estava mais do que na hora de trocar a calça surrada de cotton por um desses suplex, que deixa o corpo mais bonito, e cujo material, de tão bom, até brilha, dependendo do ângulo. Aproveitou para comprar blusas coloridas, curtas, de telinha, que era para favorecer a transpiração. E, claro, trocou o velho par de tênis, que aquilo era um atentado à coluna vertebral.
Marialva passou, então, a usar perfume e a pintar os olhos pela manhã, detalhe que o marido não percebeu, mas que ela tinha certeza de que, Rodrigo, o instrutor, notaria. Rodrigo e aquele sorriso e aqueles bíceps e aquela pele bronzeada e o jeito simpático de cumprimentá-la e chamá-la pelo nome todos os dias, assim que entrava na academia. Ela já não sabia se fazia os exercícios corretamente, para ouvir seus elogios, ou se errava de propósito, só para que Rodrigo viesse alertá-la, apoiar as mãos entre seu pescoço e os ombros, puxá-la suavemente para trás, mostrando como trabalhar os músculos escapulares com eficiência no “tríceps corda”.
Ali, diante do espelho, vendo refletida a sua imagem, que começava a ficar bem torneada, junto à de Rodrigo, o instrutor, o pensamento de Marialva dispersava-se: percorria cada músculo perfeitamente distinguível do corpo do rapaz, cuja beleza uma camada leve de suor só intensificava, e bendizia a mágica dos espelhos, que permite que se olhe sem ser imediatamente notado. Marialva, por segundos, perdia-se no calor de seus batimentos cardíacos acelerados, em fantasias que jamais se permitira, ela sempre tão maria e tão alva, tão casada e mãe, tão por baixo em todas as ocasiões. Sentia-se, naqueles poucos instantes, personagem central de um romance de banca de revista, impresso em papel-jornal, dos mais baratos, mais chulos, mais excitantes.
Depois lavava o rosto com água gelada, despedia-se, passava no supermercado, no açougue, na feira livre. E, vez por outra, também diante das construções, onde os operários, com seus comentários e sinceras ereções, estendiam, um pouco mais, o seu prazeroso protagonismo.

(24/12/2010)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Como no título do livro de Charles Dickens

O problema com a expectativa é que todo o mais vira um mero coadjuvante diante daquilo que se espera. A gente não pensa simplesmente “Faltam nove dias.” A gente pensa: “Eu ainda TEREI QUE VIVER nove dias até lá.” Sinto isso desde muito nova, porque, na minha casa, sempre levou-se muito a sério que os presentes só chegavam nas datas especiais – a saber: Páscoa, aniversário, dia das crianças, Natal. (Por sorte, meu aniversário, que é em agosto, equilibrava bem a sequência de dádivas anuais.) Mas era o Natal a data mais esperada, não apenas porque, com o décimo-terceiro salário, o presente tendia a ser bem melhor do que os outros, mas por toda a ritualística: como uma saga, vencíamos a parte chata da missa, esperávamos ansiosos a chegada do Papai Noel, assim como, dias antes, havíamos aguardado a vinda de nossos primos de São Paulo; e então havia toda aquela comilança, e adultos bebendo e rindo alto na casa dos meus avós, enquanto nós corríamos pelo quintal, entre as árvores, exibindo o que tínhamos ganhado horas antes, ainda com perfume de novo. Lembro, porém, do quanto me sentia triste no dia seguinte. Com nitidez, recordo-me de um ano em que me sentei na escada de casa, fiquei olhando para o nada, e pensando, justamente, que ainda teria que viver um ano inteiro até que o próximo Natal chegasse. E isso tinha um peso insuportável à época. Mais tarde, aprendi a saborear a espera mais do que a conquista... porque, como num conto da Clarice Lispector, ficava a pergunta: “E o que é que a gente faz depois que é feliz?” Hoje, não sei, talvez tenha aprendido a agir com equilíbrio diante da questão. O dia está bonito, independente da espera. E garanto que, este ano, não me sentirei triste quando o Natal passar.

*
Ainda falando do tempo (e de “great expectations”)... Demorei meses para compreender o álbum novo do Anathema, “We´re here because we´re here”, o primeiro trabalho de estúdio lançado desde 2003. Demorei, claro, porque esperei encontrar um Anathema que já não existe mais; em contrapartida, deparei-me com canções de uma tocante euforia, tão etéreas que chegam a lembrar os islandenses do Sigur Rós. É possível ver pelas capas dos discos o quanto a banda se modificou ao longo desses vinte anos de estrada: pense no soturno e quase tenebroso “The Crestfallen Ep” (1992), passando pela penumbra de um “The Silent Enigma” (1995), até a claridade panteísta desse novo CD, que, na capa, ilustra um indivíduo apoiado sobre o horizonte, amplamente iluminado entre o céu e o mar. Até a estilização da fonte no nome da banda se alterou, simplificando-se. O som ganhou leveza, melodias suaves, mais teclados e sequências de acordes maiores que sugerem uma abertura, um aparente otimismo por parte do grupo inglês que, após passar por uma fase de penúria, em que precisaram pedir contribuições aos fãs pelo site, consegue, finalmente, lançar outro CD. As letras falam de amor, energia, comunhão, eternidade e soam a autoajuda, em certos momentos (“Only you can heal your life”), o que se compensa com a poesia despretensiosa de outros versos (“Love stills my mind like the sunrise”). Destaques para “Thin Air” (faixa que abre o disco), “A Simple Mistake” e a belíssima "Dreaming Light".

(18/12/2010)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

“Ratos, homens e folhas de relva”

Ainda me lembro de meu primeiro poema de Walt Whitman... entregue na praça, numa noite bonita de primavera, copiado com letra caprichada no verso de uma xérox da foto do poeta. Tornou-se um vício por muito tempo. Por muito tempo, aliás, namorei, da maneira mais terna, a literatura norte-americana, com seus beatniks, lagos e campos de centeio. Depois, porém, escolhi outras trilhas. Mas sempre pensei que, se me garantissem que os EUA têm ainda um quinto da poesia atribuída a eles nos poemas de Whitman, eu me mudaria para lá imediatamente.
Pois bem. Semanas atrás, falaram-me de John Steinbeck. E falaram de novo. E uma terceira vez, então numa livraria, quando percebi que aquilo só podia ser um sinal. O autor, que eu desafortunadamente não conhecia, integra o cânone literário norte-americano, foi Nobel em 1962, e escreveu obras como “A Leste do Éden” e “As vinhas da ira”, que espero ler em breve. Comecei, porém, por “Ratos e homens”, de 1937. Um livro de pouco mais de cem páginas, publicação da L&PM Pocket. Nada de mais, a princípio. Levei cerca de uma semana para concluí-lo, em minha tradicional leitura demorada, de saboreios e vésperas de sono. E, Deus, há muito tempo não chorava como ontem. Não que o choro sirva como medida para a qualidade de um livro, mas este, em particular, merecia... por ser simplesmente magnífico. As lágrimas representavam, mais do que o lamento pela triste trajetória dos personagens, o encanto por ter sido enredada em uma trama tão extraordinariamente construída, com tanta simplicidade, mas com uma maestria que só se revela no final, quando começamos a compreender os detalhes borrifados com discrição ao longo história. Claro, há, em toda adoração, algo de duvidoso. A grandiosidade do livro para mim relaciona-se a outras associações – como minha doce experiência com a literatura norte-americana ou a semelhança dos protagonistas com dois personagens comoventes de Akira Kurosawa, no filme “Dodes´ka-den” (1970), a que assisti recentemente. Mas há, sem dúvida, algo de fascinante em “Ratos e Homens”, de um fascínio tão puro, que só posso querer agora deitar-me sobre as “folhas de relva” e sonhar com o Mississipi.

(13/12/2010)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Desconsiderações futebolísticas

Um time que não dá conta de ganhar da equipe reserva do Goiás simplesmente não merece o título. O Corinthians perdeu o Brasileirão – assim como os demais campeonatos que disputou este ano – por pura incompetência. Salários bilionários a craques do passado, importantes desfalques como a saída de Mano Menezes, fatídicas contusões... podem servir como desculpa, mas a verdade é que jamais apresentamos o futebol à altura de um campeão este ano. A partida de hoje serve como metonímia de nossa desorganização, da fé no acaso, da cega ingenuidade que nos alimentou ao longo do ano todo. O trágico vai ser sair na rua amanhã e ver o desfile azul dos vice – que, no fim, são tão perdedores quanto todos os outros – arrotando a arrogância típica das marias, falsos justiceiros recobrando os chorados três pontos perdidos naquela partida contra o time que, em outro momento, eu chamaria de Timão. Mas não dá para ficar triste. O Corinthians não merece isso hoje.

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Campeonato de segunda categoria, é inegável. Como naquelas gincanas de TV aberta, ao estilo do lendário “Passa ou repassa”, a última prova decidiu tudo, como se valesse mais pontos que as brincadeiras anteriores. Porque, como diria o bom e velho Capitão Nascimento, os times este ano foram um bando de fanfarrões: brincaram de “cai, cai, balão”, de “vou, não vou”, mas, principalmente, brincaram com a cara do torcedor. Até o Botafogo deu um jeito de perder feio para o Grêmio e mandar, provavelmente, mais uma vez, o tricolor gaúcho (carrasco antigo) para a Libertadores de 2011. E o São Paulo, que nada fez o ano inteiro, conseguiu golear o Atlético-MG... uma piada este Brasileirão, uma piada de muito mal gosto.

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Só não foi pior porque deu Fluminense, que não ganhava há vinte e seis anos, e que, coincidentemente, é o time do meu pai. Na minha família – como já disse – ninguém gostava realmente de futebol, mas, por influência minha e do meu irmão, meu pai começou, certa época, a acompanhar os jogos conosco e a ativar o amor pela equipe das Laranjeiras. Na maioria das vezes, ele se deitava no chão e dormia a partida toda, acordando vez por outra com os meus gritos de fúria, alívio ou comemoração. Mas, nesse período, houve um domingo em que eu o vi muito feliz: foi quando o Fluminense ganhou o Campeonato Carioca sobre o Flamengo, com o inesquecível gol de barriga do Renato Gaúcho, em 1995. Então, por outro momento de felicidade do meu pai, talvez eu consiga ver certo sentido no resultado do Campeonato Brasileiro deste ano.

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Apenas mais uma coisa: nos últimos dois jogos, torcendo contra o Fluminense e o Cruzeiro, acabei vivenciando algo que jamais, em toda a minha vida, esperei que acontecesse: eu torci para o Palmeiras. Gritei “Porco!” e tudo, fiz um coraçãozinho com as mãos para o Dinei, quando marcou gol, na última partida. E – pasme! – fiquei emocionada com o vídeo do japinha, lamentando-se por nunca ver o “alviverde imponente” ganhar. Pois é. Sorte que a gente recobra rápido os sentidos e volta a reconhecer um rival como tem que ser. Vou folhear o livro “Piadas para zoar palmeirense” que ganhei, recentemente, de um aluno querido, e rever, com outros olhos, o vídeo do japinha, que é para me divertir um pouquinho: http://www.youtube.com/watch?v=HGWsqAOAElY&NR=1
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Droga, fiquei com dó do menino de novo...

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

One

O que aconteceu comigo ontem,
eu jamais imaginara,
nem nos meus melhores sonhos,
nem naqueles que imitam
a busca do tempo perdido de Proust.
E mesmo que hoje,
como na velha canção,
o mundo tenha voltado
a andar complicado,
com tropeços e amargas surpresas,
vou inverter o conselho,
o provérbio,
e viver o ontem.
Porque ontem eu estava feliz,
tanto quanto
raras vezes me senti.

(01/12/2010)