domingo, 18 de dezembro de 2011

Praga

Me pergunto
que rua estará você atravessando
em que idioma canta o vento em seus ouvidos.
Quem dera eu fosse
uma página de Gustav Meyrink
para merecer suas carícias
e seus olhos
agora.

(17 de abril de 2011.)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Para o amigo Wanderson, com nossas lágrimas

O Atlético-MG deu a meu amigo Wanderson sua tristeza derradeira nesse final de semana. Isso porque, na madrugada de domingo para segunda, quando esperava o ônibus para ir ao trabalho, Wandão foi baleado com cinco tiros na cabeça e morreu imediatamente. Ao que tudo indica, os assassinos o teriam confundido com outra pessoa que, para eles, merecia morrer. Ele tinha 40 anos, uma esposa amorosa, uma filha por quem era simplesmente apaixonado, um emprego em que era um herói. Vinte anos atrás começara a trabalhar como faxineiro no Colégio, depois passara a vigia noturno e fora confirmando sua competência e sua honestidade até chegar à função de porteiro/disciplinário/braço-direito de todo mundo que dele precisasse ou quisesse por perto. Essa história ele contava orgulhoso quase todas as vezes em que saíamos em grupo para uma cerveja, um churrasco, uma companhia até o ponto de ônibus. Ele também gostava de narrar casos dos alunos e se lembrava do nome e das manias de todos eles e não maldizia ninguém nem se queixava nem. E todos o elogiávamos sempre: a paciência, a sabedoria, a prontidão, a alegria. Em meus quase seis anos de Colégio, não houve um dia sequer em que ele tenha sido desrespeitoso, comigo ou com qualquer pessoa que conheça, e era um conforto receber aquele abraço todas as manhãs, mesmo quando, às 6h40, com um dia inteiro de trabalho pela frente, o mundo parecia tão errado. Mal sabia eu que tudo estava, até então, muito certo, porque nós o tínhamos no mundo, para falar do Galo que ele tanto amava, do Corinthians, de que ele aprendeu a gostar por minha causa, para rir das “meninas” (como ele se referia aos cruzeirenses, com sua língua presa), para ensinar a tantos alunos a importância da bondade, dessa grandeza que não é o cargo que define, mas o ser. Por isso o velório, hoje, na Santa Casa, foi uma gigantesca reunião de pessoas de todas as classes, de todas as idades, de alunos e ex-alunos, colegas e ex-colegas, professores, coordenadores, diretores, familiares, vizinhos, amigos. Todos queriam prestar sua última homenagem, escrever-lhe um bilhete, admirar seu sorriso nos cartazes espalhados pelo recinto. Ninguém consegue sorrir agora, ainda que seja isso que, em breve, tenhamos que fazer, porque é isso que ele gostaria que fizéssemos, que seguíssemos em frente, que aceitássemos, como fazia ele, a vida em suas circunstâncias. Agora, porém, só há espaço para essa perplexidade, esse torpor de pesadelo, de simplesmente não acreditar nessa violência brutal, nesse julgamento de um ser humano que, por trás de uma arma, pensa que pode escolher quem é digno de viver ou não. Poucas pessoas viveram com tanta dignidade quanto meu amigo Wanwan. E o mundo fica muito, muito errado com a falta que ele nos faz aqui.

06 de dezembro de 11.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Amanhã é amanhã

Vou escrever sobre isso hoje, porque amanhã não quero dizer nada a respeito. O Corinthians joga neste domingo contra o Palmeiras, valendo o título de Campeão Brasileiro de 2011, nesse campeonato em que, diferentemente do ano anterior, não faltaram fortes emoções – como gostam de dizer os locutores. Basta lembrar a 37ª rodada, quando, aos 47 do segundo tempo, um gol do Vasco calou o grito de vitória da torcida paulistana. Ou o empate do Cruzeiro com o Ceará, que deu aos atleticanos a chance de secar por mais uma semana as marias-à-beira-do-abismo. Houve ainda a goleada do mesmo Atlético-MG sobre o Botafogo, antigo algoz – porque, sim, até o Botafogo tem o seu freguês –, e a bela virada corintiana, um domingo antes, com o gol do “Adriano Imperador”, que ficou tão feliz que até tirou a camisa, sem constranger-se pelos vários quilinhos a mais. (Qualquer semelhança com o passado recente da equipe de São Jorge não é mera coincidência). Mas amanhã é amanhã. E vale lembrar que jogamos contra o Porco, que nada fez em todo o campeonato, assim como em toda a década, mas que, justamente por isso, tem um motivo e tanto para se esforçar nessa partida e garantir ao menos um sorriso para o torcedor palmeirense. O Flamengo tem também suas razões, mas algo me leva a crer que não se empenhará tanto amanhã, como não faz desde a goleada sobre o Cruzeiro. Quanto ao Vasco, já seria impossível torcer por eles, porque me recuso a querer imaginar feliz uma massa carioca (vide posts anteriores); porém, verdade seja dita, eles souberam galgar posições nesse segundo turno e foi estranhamente bonito o gol que rendeu ao campeonato mais uma semana de fôlego. O Corinthians, porém, joga pelo empate; fez um primeiro turno impecável e, ainda que eu discorde de certas contratações marketeiras e de manobras políticas relativas à construção do Itaquerão e à confiança dedicada ao Ronaldo Empresário, merece, por mérito, ser campeão este ano. A defesa menos vazada, um ataque competente – com destaque, é claro, para Liedson –, um esquema tático eficiente, ainda que retranqueiro (quanto 1X0, meu Deus!) e nenhum lance gritantemente polêmico em campo, nada semelhante àquele do ano passado, contra o Cruzeiro, para que ninguém conteste essa possível vitória. Fora, é claro, a torcida, que é nosso mérito maior. Talvez por ser tão odiada, tão rechaçada, tão chacoteada, ela tenha se entrincheirado de tal maneira que não admite pactos com “torcidas amigas”. Porque a torcida corintiana só tem um time, só tem um nome, que é também adjetivo: fiel. E sobre ela não é preciso dizer mais nada. Amanhã é amanhã, e pode ser que a gente perca, e aí vou culpar meia dúzia de deuses gregos, para, no fim, admitir, talvez – porque sou corintiana, mas sou sensata – que deveríamos ter empatado menos, entregado menos gols a times facilmente defectíveis, jogado com mais raça semanas atrás. Sim, porque o campeonato se decide amanhã, mas foi construído ao longo de muitos meses, com a soma de tantos resultados, e é preciso entender que o conforto torpe do “se” que se volta ao passado não muda nada na prática. Mas pode ser que a gente ganhe. Aí, meu amigo, não tem sensatez, não tem lógica, não tem “se” ou “porque” ou “quase”... aí, nossa!, só vai ter o Corinthians.

03/12/2011.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Sobre por que eu chorei ao ouvir “Nutshell”

Quando estávamos na oitava série, minha amiga Lívia, que sempre fora, e ainda é, uma excelente musicista, foi convidada a tocar em um show de rock cover que algumas bandas da cidade estavam organizando. Deram a ela, então, uma fita cassete com as músicas das quais ela participaria. Nós duas, a essa época, dividíamos nosso carinho pela Legião Urbana e pelos Engenheiros do Hawaii, mas pouco sabíamos além disso sobre rock. Foi, portanto, um “évenement”, um acontecimento irreversível, o dia em que ela me emprestou aquele tape. A primeira das canções era “Nutshell”, do Alice in Chains, seguida de “Black”, do Pearl Jam, “Welcome Home”, do Metallica, “Afraid to shoot strangers” e “Wasting Love”, do Iron, “Angels Cry”, do Angra, e talvez algo mais de que não me recorde. Não havia, no entanto, o nome das músicas ou dos intérpretes na fita. Lembro-me, então, daquele recreio que passei percorrendo o pátio do colégio, com meu walkman em mãos – sim, um “walkman”, man! –, em busca de roqueiros que pudessem colocar aqueles fones nos ouvidos e me contar “de que bandas eu gostava”. Porque foi assim que me interessei por esses grupos: ouvindo-os. Não sabia se eram famosos ou não, se queriam vender imagens a que não correspondiam, se dispunham de vocalistas bonitinhos, ou guitarristas ou whatever. Porque, assim como acredito acontecer com o futebol, é também o rock quem escolhe seus seguidores, não o contrário. Depois vieram, é claro, outras bandas e mais das mesmas, outros tapes, outros vídeos, outros empréstimos e tantos novos amigos. Ao acústico mórbido do Alice in Chains, eu assisti muitas vezes mais do que ao tétrico do Nirvana (com aquelas velas e flores parecendo um funeral, como sempre definem os especiais da MTV...).
Foi por isso que eu me desfiz em lágrimas quando, na última segunda-feira, em Paulínia, tive a honra de assistir a essa adorável, ainda que menos aclamada, banda de Seattle, no SWU. Faltava alguma coisa ali, logicamente, que era o vocalista da formação original, o Laney Staley, que morreu de uma das maneiras mais tristes – irremediavelmente sozinho –, em 2002, quando eu me preparava para deixar minha cidadezinha de interior e me mudar para a capital da província. E Jerry Cantrell fez questão de anunciar “Nutshell” dizendo: “não podemos esquecer de onde viemos”. Eu tinha exatamente a metade da idade que tenho hoje quando ouvi essa canção pela primeira vez, e escutá-la ao vivo, tantas experiências depois, foi como um flashback, uma retrospectiva de tudo o que fui, não fui e deixei de ser nesses anos todos.
(NOTA DE RODAPÉ NO MEIO DO TEXTO: Importante acrescentar que o novo vocalista, William Duvall, reativou a postura combativa do grupo, encontrada em álbuns como o “Facelift” e o “Dirt”, e agrada, sim, e muito, especialmente nas canções do mais novo trabalho, o “Black gives way to Blue”.)
Além do Alice in Chains, também se apresentaram de maneira gloriosa o dissonante Sonic Youth – provavelmente em uma de suas últimas aparições –, o Stone Temple Pilots, com uma seleção de hits indefectível, e o Faith no More, com toda a teatralidade e o inegável charme de Mike Patton tentando falar português. Assim, nem o “tempo do merda”, nem a lama, nem as capas de plástico ordinário que grudavam na pele e pouco protegiam da chuva, nem o cansaço... nada impediu esse dia de ocupar um excelente lugar no hanking dos dias mais fantásticos da minha vida.

(18 de novembro de 2011)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Pérolas aos...

No Rio, ficamos hospedados na casa de uma amiga muito querida, que fez de tudo para que nossa estadia fosse o país das maravilhas. E o Rio de Janeiro, clichê dos clichês!, continua lindo. Coisa mais bonita o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a Lagoa Rodrigo de Freitas, onde morreu afogado o João Gostoso do Bandeira. Delicioso também percorrer as ruas boêmias da Lapa, subir a escadaria de ladrilhos do Santa Tereza, visitar o Museu de Arte Moderna, sentir-se o tempo todo dentro de uma canção do Tom Jobim copiada no verso de um cartão postal do Brasil. Só é uma pena que sobrem por ali os cariocas, que são de fato belamente bronzeados, mas cujo ego os impede de entender que gentileza não é burrice nem fraqueza. O carioca traz dentro de si um Romário em miniatura, veste a fantasia de pavão e acha que é, em tempo integral, o protagonista de uma novela do Manoel Carlos. O carioca dá informação errada por receio de “dar mole”. Porque não pode titubear, dizer “não sei” ou “me desculpe”: há de se tirar sempre vantagem dos outros, ser mais esperto, desmerecer todas as outras origens, que se dividem, para eles, entre gringos ingênuos e apalermados capiais. Não é por acaso que carioca torce para time do Rio: eles se merecem, em todas as suas falcatruas e tantos todos sinônimos para malandragem. Que me perdoem as exceções, é claro.

Mas a gente estava lá é para ver o Pearl Jam, a que já havíamos assistido, no Pacaembu, num show que mudou definitivamente a nossa vida, em 2005. E, Meu Deus!, seis anos depois, ainda impressiona a energia dos caras, a conexão entre público e banda, os coros, as garrafas de vinho e os pandeiros quebrados do Eddie Vedder. Foram quase três horas de show, trinta músicas, num repertório que misturou canções do novo bom trabalho a clássicos do “Ten” e a agradáveis surpresas, como a bela “Indifference”. A gente saiu de lá destruído, mas insuportavelmente feliz. Para fazer vontade – e uma dupla homenagem –, deixo a lindíssima “Just breath”, na voz da Anneke: http://www.youtube.com/watch?v=un5oY6NGxn8.

(11/11/11)

sábado, 29 de outubro de 2011

http://www.youtube.com/watch?v=GYHkk53WlZ0&feature=related

Esta semana me fez pensar em trens. E na Europa. Porque, quando estive lá, andei de trem, claro. Mas, mais do que isso, porque os trens eram o espaço em que eu me afastava dos museus e dos alegres desconhecidos que me acolhiam, e voltava a estar sozinha, a ouvir meus pensamentos, a sentir aquele medo estranho do “e se tivesse dado errado?”, tão nonsense. A verdade, no entanto, é que tudo deu certo naquela viagem absurda, amadora. E era isso o que me preocupava nos meus momentos de deslocamento: por que estaria eu indo a outra cidade, a outro país, se, no lugar anterior – Paris, Berlim, Besançon – tudo havia sido tão bom? Bizarro desejo de mobilidade. Interessante, porém, é que nem nos trens o desamparo se estendia. Em um TGV, conheci uma francesa que lia os “Tristes Trópicos”. Ela estudava antropologia, começava a aprender português e viria em breve ao Brasil. Conversamos por todo o trajeto, trocamos contato e nos falamos por algum tempo depois. Na Alemanha, em Frankfurt, a caminho de Rostock, a parte mais tensa: o país mais estrangeiro, aquele de que não se compreende o idioma. Sentei-me ao lado de uma senhora de cabelos curtos. “Do you speak English?” Não. Pouca gente fala inglês no norte alemão. “Parlez-vous Français?” Nada. “Habla español?” Menos ainda. Mostrei meu bilhete. Ela entendeu o que eu queria. Disse na língua dela algo que entendi como se fosse na minha: “eu te mostro”. Depois gesticulei dizendo que “O Perfume” que ela lia era um livro muito bom (assim como veio a ser o filme). Um funcionário passou servindo café. Ela se fez entender novamente, mostrando como devíamos ser rápidos, antes que os jovens – que, barulhentos, jogavam baralho – acabassem com todos os copos. Indicou-me a estação. Eu agradeci com uma das únicas palavras que sei em alemão. Desci. E houve também aquele menino. Era meu movimento mais triste, porque eu deixava Paris sem vontade alguma de partir. Cansavam-me as malas pesadas de inverno. Sentei-me ao lado de um senhor que lia jornal. Então entrou aquela mãe com dois filhos. Um deles, um menino com jeito de judeu, de pijama listrado, de imigrante, olhou para mim. Devia ter uns quatro anos. Sorrimos. Foi o suficiente. Ele se afastou, voltou, trouxe dois carrinhos minúsculos de fórmula 1. E começou a jogá-los perto de mim, no intuito evidente de que brincasse com ele. Esbocei alguns movimentos, algumas palavras. Brincamos em inexplicável e imediata apatia. Mas o senhor ao meu lado irritou-se. Xingou. “Où est ta mère?”, gritava. Logo a mãe apareceu, pegando o menino, afastando-o de mim; eu, outra imigrante com balbucios. Desceram pouco depois. Da janela, ele sorriu, meu cúmplice. Um dos minúsculos carrinhos ficara comigo, azul-claro. Eu o guardei para sempre.
(29 de outubro de 2011)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Vitória vai ser nossa Marienbad

Não sei dizer qual foi a melhor parte de Vitória, cidade que também merecia a perífrase de maravilhosa, e de que a gente, injustamente, muito pouco ouve falar. Talvez a espera e a descoberta de que existe almoço grátis nos restaurantes caros do aeroporto. A cena hitchcockiana do voo rasante dos quero-queros, após o grito de guerra de “vamos roubar um filhotinho disso pr´a gente!”. Talvez só a praia com a chuva. Ou as noites em Mud Street, que começavam cedo e só acabavam no dia seguinte, às vezes longe demais até. A perseguição clandestina aos bebedouros na fábrica da Garoto. A família que nos recebeu como uma família. Cada uma das refeições, um prato mais divino que o outro, e as mantas que nos cobriam silenciosas na madrugada. A família que nos tornamos, em cuidados e fotografias. Os cross-hairing, os making off, os pentes de madeira. As conchinhas que tombavam da sacola no meio das comunicações de congresso, entregando toda a nossa minerês. Nós todos juntos e separados, o que se falou pelas entrelinhas, nos goles do “eu nunca”, ao pé dos ouvidos. Talvez o que eu não ouvi nem soube. Ou só o fato de ver o mar pela janela antes do café-da-manhã. Não sei dizer qual foi a melhor parte de Vitória. Porque talvez não haja, talvez ela seja como Marienbad: um tempo e um espaço em que fomos felizes, nada além. Um tempo, um espaço que só existiu na lembrança.

(10 de outubro de 2011.)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

I was happy in the haze of a drunken hour...

O que já seria risível nas mulheres, nele, disparou para além do patético. Era ainda a época do Orkut, e ele, assim como todos os seus colegas, vizinhos e amigos, entregara-se à melancólica tarefa de expor sua vida a quem deveria, como bem disse o Morrissey, just “kick in the eye”. Mas a sede pela lente, pelo “testimonial”, pelos álbuns inverossímeis repletos de pessoas felizes – que, num perfeito duplo das campanhas publicitárias, estão sempre maquiadas, bem vestidas e, se possível, devidamente “fotoshopadas” – falou mais alto. No princípio, era só um site a mais a deixar aberto no computador do trabalho, quando os assuntos do escritório não eram tão interessantes e os relatórios podiam ser entregues no dia seguinte. Depois, entretanto, a sede foi se tornando mais e mais tantálica, e novas ferramentas e novas possibilidades foram se abrindo. A desculpa era nobre: ter notícias dos amigos de colégio, com quem não se comunicava há muito tempo (e com quem, na maioria das vezes, não tinha mais nada em comum além do fato de terem estudado no mesmo lugar). Depois, notícias foram se transformando em fofocas, especulações, invasões de privacidade, curiosidade mórbida. E ele já não conseguia fechar aquela maldita janela. O vício, ao menos, rendera-lhe um encontro, que aconteceu graças à comunidade “Eu odeio acordar cedo”. Marcela e ele efetuaram, então, os devidos procedimentos de quem faz parte de uma rede social: anunciaram no site, antes mesmo de estarem seguros disso na vida real, que estavam namorando. E encheram as respectivas páginas de fotos, declarações, depoimentos fofos. O relacionamento durou o tempo que tinha que durar, acabou por morte natural, incompatibilidade de gênios, nada de mais. Bem, não seria nada de mais se Marcela não tirasse as fotos do casal de sua página assim tão prontamente, logo após a discussão derradeira. Aquilo partiu o coração do rapaz. “Ela tirou as fotos do Orkut! Ela tirou as fotos do Orkut! Nem esperou para saber se era pra valer...”, lamentava-se ele. Ninguém imaginava, entretanto, que, naquela mesma tarde, fosse tomar a direção contrária de uma rodovia de mão única e chocar-se contra um caminhão. Durante algum tempo, seus amigos, colegas e vizinhos enviaram-lhe mensagens póstumas pelo Orkut fantasma. Mesmo Marcela chegou a postar que estava arrependida, que voltaria atrás se pudesse. Como ninguém tem a senha, vaga no eterno limbo virtual a página de um jovem sorridente, sarado, que, do cenário paradisíaco de uma praia nordestina, faz um “joia” para a câmera. Até hoje. Só que agora ninguém mais vê porque, você sabe, agora a onda é o Facebook.

(21 de setembro de 2011.)

domingo, 11 de setembro de 2011

No terrero, sob a lua

Em seus “Diários de Viagem”, o Camus descreve sua visita ao Brasil – onde era “tão conhecido quanto Proust” – e a noite em que fora levado a um terreno de macumba, que o impressionara consideravelmente. Desde que li esse livro, na minha adolescência, despertou-se em mim a curiosidade por viver uma experiência semelhante. E isso aumentou depois que assisti a “Coração Satânico”, com o Michey Rourke, nos tempos em que ele ainda era galã. E eis que ontem, um sábado à noite, a possibilidade se me apresenta. Ou quase. Fui, com mais três mulheres, a uma apresentação de candombe, no alto da Serra do Cipó. Dirigimos por quase duas horas, jogamos nossas delicadas sandálias na poeira e na escuridão... mas eu achava que valia à pena, pois, finalmente, veria um pai-de-santo e participaria de um ritual que manifestasse o tão conhecido sincretismo brasileiro. Eu estava ansiosa até mesmo para sentir medo. Tentava afastar-me de qualquer etnocentrismo e combinava comigo mesma não julgar o que visse naquela noite que, eu pensava, seria simplesmente inesquecível, como são para mim certas palavras do Camus. Mas, não. Era só o candombe, mesmo. O que significa muita coisa, na verdade: essa apresentação, em específico, naquele vilarejo no meio do nada, acontece apenas uma vez por ano, e o ritmo é de fato muito bonito, e é bonito estar ali, entre os tambores. Os músicos tocam por cerca de doze horas, praticamente ininterruptas, e as pessoas vêm de diversas localidades só para vê-los. Havia ontem um par de ônibus da USP – provavelmente de antropólogos – só para essa apresentação. Além disso, havia os nativos, que abriam suas casas a desconhecidos, oferecendo-lhes bolo de fubá e biscoitos. Havia crianças por toda a parte, que inclusive cantavam junto aos tambores, e suas avós e avôs que dançavam como se fossem netos. E, claro, onde há muita gente, há barracas que vendem cervejas e pastéis, há câmeras de alta resolução e cidadãos mal intencionados, que acham que o mundo é uma grande micareta. Foi uma noite agradável, de lua muito clara e clima doce de quase primavera. Mas ficou longe das páginas do livro que li.

(11 de setembro de 2011.)

domingo, 4 de setembro de 2011

A uma semana do aniversário da queda das Torres Gêmeas

O “Home” é o último trabalho de estúdio da Anneke no The Gathering, de que havia me esquecido por muito tempo. Hoje o resgatei e me senti extasiada com a quantidade de trechos musicais magistralmente elaborados para despertar suspiros e encantados olhares para o mundo. Hoje, aliás, é o aniversário do meu namorado, e é uma história bonita essa a nossa, um casal meio Capuleto e Montéquio, se levarmos em conta a rivalidade futebolística dos nossos países de origem. Ele tem até mesmo o nome do Inimigo – aquele, o da “mão-de-Deus”. E ontem, enquanto eu o olhava – nesse jeito pós-moderno de olhar – ficava pensando na sorte que é existir alguém cujo simples sorriso nos mata aos poucos, devagar. Assim, elegi o “Home” para escutar hoje, sob o sol, não por acaso.

(04/09/2011)

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Ruínas de Antônio Carlos

No ônibus, de volta para a casa, Antônio Carlos não poderia imaginar que eu, por trás dos fones de ouvido, escutava Antimatter e desvendava seus pensamentos. Estava tão cansado que tudo o que pôde fazer foi escolher um assento perto da janela e pender a cabeça contra o vidro, entregue. Os solavancos, a curva e a grande velocidade na metade da madrugada não pareciam incomodá-lo, nem afugentavam o sono que pesava sobre suas sobrancelhas. Entretanto, outro peso o impedia de dormir: o dos dias. Sabia que dobrar turno como garçom de uma churrascaria não era vida para ninguém. Dia após dia, entre as mesas dos glutões, que esperavam dele sempre outro corte, mais bem passado ou mais sangrento, mas suculento sempre. O som do teclado, as crianças que interrompiam seu percurso apressado, o barulho dos talheres, dos copos que se quebravam, as risadas, os dedos erguidos que o solicitavam, que se queixavam, que rabiscavam no ar o cheque que ninguém mais assina. E o mais patético era que, apesar de tudo isso, a esposa se queixava: não da demora, não da falta de tempo para a família, mas da hierarquia. Porque o que pouca gente sabe é que, entre os garçons dos rodízios, há uma organização muito clara das funções. Ninguém queria servir coração de galinha, aquele amargor miserável, nem trazer as guarnições. O sonho de todo garçom de churrascaria é chegar à picanha, à gordurinha tentadora por que param de bater tantos corações. E já fazia quase dez anos que Antônio Carlos trabalhava naquele restaurante. Passara pela asa de frango, a linguiça, o lombo, a maminha e agora chegara ao cupim. Mas faltava à sua vida o glamour da picanha, que representava também um acréscimo percentual no salário. Antônio Carlos sabia, entretanto, que a picanha era metafórica. Talvez não usasse essa palavra, mas conhecia bem o seu sentido. Enquanto atravessava a Avenida em obras, pouco se importando com os pedreiros em seus natalinos uniformes, as casas demolidas, os novos viadutos já pichados, e toda aquela terra, os tratores e grandes caminhões trabalhando, barulhentos, entre a Abrahão Caram e a Noraldino Lima, Antônio Carlos sabia muito bem que a vida não é um rodízio democrático, em que se escolhem os cortes de carne mais apetitosos. São as carnes que escolhem os dentes, os garçons e os estômagos.

(31 de agosto de 2011.)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Agosto

Agosto é o mês do meu aniversário. E, apesar das piadinhas rimadas com esse mês, teoricamente o do desgosto, sempre tive orgulho de ter nascido no fim do inverno, quando os ipês florescem e salpicam de amarelo a paisagem insossa do cerrado. Junto a isso o fato de ter desejado ser budista algum tempo atrás. E um dos preceitos que eu mais admirava nessa religião oriental era o da contemplação. Porque isso eu achava que fazia bem. Achava, porque, nas minhas andanças, passei alguns dias em Córdoba, na Argentina. E fiquei admirada com a habilidade dos “cordobeses” (?) de, com aquele jeito engraçado de falar que eles têm, simplesmente parar no tempo. Em torno do ritual do mate, os grupos se reúnem, as famílias, os casais, e ficam nas praças, nos parques, sentados na grama, compartilhando o mate ao cair da tarde, conversando, desfrutando do frio, que, àqueles dias, era bonito sem ser dolorido. É verdade que a adoração pelo mate não é exclusividade daquele lugar – no Uruguai, as pessoas são tão fanáticas, que tomam mate andando de bicicleta! –, mas foi ali que eu presenciei essa situação de rara calmaria. E eu fiquei contemplando: a tranquilidade, o dia, os parques, os cães e as crianças, assim, inspirando e expirando, como se pudesse parar o tempo e estar eternamente naquele banco de cimento, entre as árvores, em companhia das melhores carícias. Depois, na semana passada, senti algo parecido em Natal: quando a lancha parou em alto mar, e em volta havia o céu em seu azul mais absurdo, e os golfinhos que surgiam sem dizer nada, eu abandonei a câmera e desisti de tentar fotografar o instante. Fiquei em silêncio, sentindo o movimento das ondas, levemente sob a embarcação. Perguntaram se eu estava passando mal e eu disse: “não, estou só contemplando.” Ainda assim, admiro mais as pessoas de Córboda, que se dão tempo no espaço da própria cidade. Engano bobo pensar que a gente precisa gastar fortunas com viagens ao litoral para desfrutar das estações e dos dias que passam. Voltando para casa, no caminho desde o aeroporto, pela janela: os ipês de agosto salpicavam de amarelo a paisagem insossa do cerrado.

23 de agosto de 11.

domingo, 14 de agosto de 2011

Homenagem

Texto bonito de um grande amigo: http://oalbergue.blogspot.com/2011/07/balanco-ensaio-sobre-um-motivo.html

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Olê, olê, olê, olê, olê, olê, olá… Olê, olê, olê, cada día te quiero más…

Uns dias antes de viajar, eu acordava no meio da noite e pensava: “por que é que eu falei que eu ia?”, puxava o edredom sobre a cabeça e me sentia ainda mais invejavelmente confortável – invejável para mim mesma, que já projetava dias de frio intenso num futuro próximo. Mas que bom que eu vim. Ainda faltam, felizmente, alguns felizes dias para que esta viagem de quase um mês chegue ao seu final. Contudo, há acontecimentos que já a colocam entre as primeiras no ranking de melhores viagens de todos os tempos, quiçá da humanidade! Porque há, pelo caminho, sempre dissabores, muitas vezes corporificados em seres humanos, que impedem a perfeição das coisas. Ao mesmo tempo, porém, frequentemente são os mesmos seres humanos que enfeitam certos momentos ou que solucionam certas ameaças de desastre. Tudo muito ao acaso, que é um dos maiores prazeres de viajar: tropeçar na circunstância seguinte. Desta vez, por exemplo, houve a encantadora coincidência de estar em Montevidéu justamente no dia da conquista da Copa América pelo Uruguai. Foi delicioso asistir à partida com os uruguaios, gritar “¡Uruguai, no más!” e sair caminhando junto à multidão pela La Rambla, com um litro de “Patrícia” na mão, até o fatídico estádio Centenário, esperar pela chegada dos jogadores vitoriosos. Ventava tanto e fazia tanto, tanto frio, que a gente torcia para que alguém tivesse a brilhante ideia de começar uma ola, só para se movimentar um pouquinho. Foram mais de quatro horas de espera, em que eu simplesmente não acreditava na minha sorte, no precioso fato de estar ali, exatamente ali, exatamente naquele dia. Indescritível a minha tristeza quando, às duas da manhã, o grupo com que eu estava resolveu desistir e ir para casa, pobres mortais que teriam que trabalhar na manhã seguinte. Eu ainda cogitei ficar por lá sozinha, mas o instinto de sobrevivência falou mais alto. Os jogadores chegaram só duas horas depois, e isso nós ouvimos pelo rádio do carro de uma moça de coração bom que nos buscara na rodoviária, onde dormíamos, depois de andar por quase uma hora, já que a cidade era o puro caos naquela madrugada gelada, quando não havia táxi ou ônibus para voltar para casa. Haveria ainda muita aventura pela frente, é claro, encontros inacreditáveis e um presente que eu me dei e que guardei em segredo, com um medo enormemente justificado de que não se concretizasse: eu fui a Buenos Aires só e somente para ver o show do Anathema. Os detalhes eu contarei repetidas vezes nos próximos dias, mas vale adiantar que, chegando ao teatro às duas da tarde, conheci um grupo de roqueiros adoráveis, que me avisaram da iminente chegada da Anneke, que abriría o show dos ingleses, e com quem tive novamente a oportunidade de conversar e tirar fotos. A Anneke, vocês sabem, faz com que a gente queira ser uma pessoa melhor. Depois houve uma tarde inteira na fila, um telefonema emocionado de quem não acredita que a felicidade possa ser tão real, e a desastrosa descoberta de que eu só conseguiria assistir ao concerto se atravessasse metade da cidade atrás do bilhete, que eu havia comprado pela internet, mas que não resgataria na bilheteria onde estava. Sabe como é: eu não tenho livre arbitrio, a vida é que sempre escolhe por mim a modalidade “com emoção”, que é, de fato, a mais emocionante. Bem, mas deu certo, outra pessoa de bom coração e minutos contados no relógio do táxi depois, lá estava eu, na primeira, primeiríssima fila, em uma plateia que parecia uma torcida organizada, assistindo ao Anathema, ao Anathema… banda que quase havia visto no Brasil um par de vezes, que me arremessa a uma série de memórias, de paisagens, de pessoas e trajetos. Foi lindo: estar tão perto do palco que o guitarrista me sorria, talvez admirado com o tamanho da minha alegría. Ao final do concerto, eu estava “re feliz” e sentia pena dos dias que se seguiriam àquele… pobres dias, pensava eu, que nunca seriam tão bonitos. Mas – que sorte, ¡mirá vos! – eu estava enganada. (03/08/2011)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

The boy done wrong again

Tenho um piano. Grande, marrom, como um elefante. Foi fabricado em 1810 e devo conseguir um bom dinheiro por ele se algum dia tentar vendê-lo a um antiquário – ou o antiquário o conseguirá, depois de inventar uma boa história sobre seu país de origem e seu primeiro dono. Enfim, tenho um piano, mas ele está a quilômetros de distância de mim, na casa onde passei minha infância e onde, durante a adolescência, arrisquei algumas Invenções de Bach e uma sonata de Mozart – aquela em Dó Maior. Há anos não toco sequer uma escala com as duas mãos. A vida vai se afunilando e, um belo dia, somos especialistas em especialidades especialíssimas nas quais apenas outros especialistas especiais e específicos estão interessados. E fica no álbum fotográfico o arco-íris que a gente chegou a ser um dia.

Mesmo assim, tenho ciúmes do meu piano. Sempre que o visito (por tabela), tiro o pó da madeira, das teclas e dos porta-retratos que minha mãe colocou sobre ele. E digo aos meus priminhos curiosos que o piano está trancado, embora nunca tenha tido uma chave. As pequenas e delicadas mãos deles se transformam em dolorosos martelos quando tocam meu piano. E os convenço a procurarem peixinhos no aquário vazio da sala de jantar. Um dia nós tivemos lindos peixes, diversos, de várias cores e com nomes de pessoas famosas. Hoje o aquário vive a saudade de seus velhos tempos, enquanto serve de suporte para begônias e violetas.

O piano, então, ficou mudo. Se ninguém o toca, ele nada fala, nada canta, nada declama. O piano enfeita a sala de visitas, com a imponência de quem pertenceu a Napoleão Bonaparte, e o silêncio de quem perdeu, por causa do imenso funil das especializações, as mãos brancas que o acarinhavam, assim, sem jeito.

Mudas também ficariam as folhas, se o vento não as movimentasse. E a cascas de semente de sibipiruna, se não pisássemos nelas para ouvir sua voz onomatopaica, no meio do outono. E os livros, se os mantivéssemos fechados. Madame Bovary ainda estaria viva, mas Werther nunca me teria feito chorar.

Meu piano é uma caixa de madeira que guarda as mais belas canções. E nunca irei ouvi-las dele se não atravessar os tantos quilômetros que nos separam e desamassar as partituras certas. Assim também são as pessoas. Algumas delas seriam as melhores convidadas para as festas das quais não foram avisadas. As melhores mães, cujos ventres não foram fecundados. Os melhores escritores que ainda assinam o nome com a impressão digital borrada do polegar. Os melhores amantes que não receberam o telefonema no dia esperado. Porque às vezes há, do lado de dentro, tanta cor e tantas fragrâncias à espera apenas de um olhar mais corajoso, dos dedos certos no teclado, uma seqüência adequada de números, notas organizadas com cuidado em um par de versos brancos.

Vezes em que somos como meu piano: esperando que arranquem de nós a canção mais triste para que possamos assim nos sentir um pouco menos miseráveis, desperdiçados, mudos.

PS.: ESTE RELATO É DE QUASE CINCO ANOS ATRÁS, MAS, DIA DESSES, MOSTREI A UM AMIGO QUERIDO, QUE ME INCENTIVOU A GOSTAR DESSE TEXTO DE NOVO... http://oalbergue.blogspot.com/

terça-feira, 5 de julho de 2011

Melhor deixar para envelhecer mais tarde...

Quando assisti a “Alta Fidelidade”, fiquei com mania de listas. E lembro que, naquela época, na lista de “melhores profissões do mundo”, escrevi: vocalista do The Gathering. Na verdade, eu queria era ser a Anneke van Giesberg, mas, como isso não era profissão... Pois bem: algum tempo depois, meu irmão me recebeu em casa com o seguinte comentário: “Lembra daquela sua lista de profissões? Você terá a chance de realizar o seu sonho.” Era um eufemismo bem-humorado para me dizer que a minha querida, adorada vocalista deixaria a minha querida, adorada banda favorita. Já escrevi sobre isso antes, e não há razão para me estender sobre o assunto agora. O que acontece de novo nesse cenário é que, nesse final de semana, fomos a São Paulo, assistir, pela primeira vez no Brasil, à apresentação do The Gathering com os novos vocais: Silje Wergeland. Mas, antes: São Paulo, que vale por si só, pelo cinza, pela Avenida Paulista, pelo MASP com uma vídeo-exposição belíssima de Yann Arthus-Bertrand, além do acervo “Romantismo”, que é mesmo apaixonante. E, antes ainda, meu irmão, que também vale por si só, espécime raro de inteligência e bom gosto. A gente se perde de tal maneira nas nossas conversas que, apesar de termos chegado com uma hora de antecedência à rodoviária na noite de sábado, só não perdemos o ônibus, que partia apressado às 23h45 em ponto, porque eu corri e gritei, fazendo com que alguém o parasse. Tudo isso porque nós estávamos comentando um filme de Walter Salles... Bem, mas vamos ao show, que é o tema deste post. Foi bonito, viu? Uma casa de eventos pequena, duas centenas de pessoas, talvez, e muita devoção. Foi tocante a maneira como tanto o grupo holandês quanto o público brasileiro pareceram acolher a nova vocalista, que carrega o peso gigantesco de substituir uma vocalista, que é simplesmente o símbolo vivo do carisma. Ainda não deu para entender o que a moça espera, com o cabelo e as roupas idênticas à de Anneke no DVD “A sound relief”. Os trejeitos, os movimentos, também, em muitos momentos, remetiam à antiga cantora. Porém, mais delicada, com a voz mais suave e sua beleza particular, a moça bem que poderia deixar de vez a tentativa de ser o “cover” que sempre soa a frustração. Porque, quando consegue se desamarrar das imitações, Silje mostra que tem talento e luz própria. O show, com duas canções inéditas, três do último álbum – “The West Pole” e uma porção das antigas e mais pesadas do grupo – como “Eleanor” e “Shot to pieces” – agradou à maioria e terminou com a inacreditavelmente bela “Travel”, que, ao vivo, é mesmo de chorar. Bem, terminou, terminou não. Porque, aparentemente, a saída de Anneke fez com a banda se motivasse a ser mais extrovertida e se rendesse às atenções do público após o concerto. Muito marmanjo saiu de lá encantado com a baixista, Marjorlein Bastin, que desceu do palco para tirar fotos, distribuir autógrafos e até discutir a qualidade da cerveja brasileira com os fãs. Eu me fantasiei, sem o menor pudor, de tiete, e consegui o autógrafo de todos – todos! – os integrantes da banda, além de várias fotos, alguma conversa fiada e a palheta, que o guitarrista, René Rutten, entregou diretamente na minha mão. Ele, muito simpático, mostrou-se lisonjeado ao saber que havíamos passado quase dez horas viajando de ônibus, madrugada gelada afora, só para vê-los – e, pior, que não era a primeira vez que fazíamos isso. E precisa dizer que eu faria tudo de novo amanhã mesmo se fosse possível?!

(05 de julho de 2011)

domingo, 26 de junho de 2011

Roça n´Roll – (porque não pode haver título melhor)

Dez anos me separam do meu primeiro Roça n´Roll, quando dancei alucinada e inesquecivelmente ao som da então promissora Tuatha de Dannan. Naquela noite, choveu. Houve lama, vento gelado e microfones que davam choque. E houve também longas conversas num balanço de criança e o amanhecer mais bonito que já vi: com o voo ininterrupto de centenas de garças, brotando sabe-se lá de onde, em direção ao sol. Talvez por isso – mais pela poesia do que pelo amadorismo –, tenha criado coragem para retornar ao evento este ano, trazendo, a tiracolo, um amigo belo-horizontino que não gosta muito de metal, e meu irmão, tradicional companheiro de aventuras. Viajamos ao som de canções de poucas notas e muitas sutilezas; depois experimentamos os pontos turísticos de Três Corações, que se resumem a prazeres alimentícios com o nome de seus criadores – como “X-tudo do Valdir” e o “açaí do Igor” – e nos deslocamos até Varginha. Ou quase. Porque os shows aconteceram numa fazenda no meio do trajeto, com placas que não indicavam a direção, mas que surgiam apenas quando você já estava, por dedução, no caminho certo. No entanto, era já possível adivinhar o percurso, devido aos mata-burros, à poeira, ao céu estrelado e, à medida que nos aproximávamos, ao som pesado, claro. A primeira coisa em que a gente pensa quando chega, num inverno absolutamente gelado, a um lugar no meio do nada, cheio de metaleiros juvenis que passaram o dia inteiro bebendo e que agora estão capotando sobre a grama, é: o que é que estou fazendo aqui? A pergunta que vem em seguida seria o que pensam os pobres nativos ao assistirem àquele bizarro desfile de tachinhas e roupas pretas? De minha parte, porém, é rápido o período de transição entre a perplexidade e a euforia. Primeiro, porque começam a aparecer os velhos conhecidos, com seus sobretudos e cabelos compridos; segundo, porque as bandas de black metal são muito engraçadas, e não dá tempo de pensar em mais nada. Além disso, poucas queixas se podem fazer ao evento este ano, que se organizou bem ao formato de um SWU ou afins, com tendas variadas, dois palcos grandes – entres os quais, as atrações se revezavam – e a tentativa de conscientizar o público acerca da proteção do meio ambiente – a começar, por exemplo, pela esdrúxula marca de cerveja à venda, a Ecobier. E, dentre as grandes atrações, tocou o Genocídio, banda brasileira das antigas, com apenas um integrante da formação original. A Tuatha fez um show melancólico, ao estilo de quem “morreu e se esqueceu de deitar”, mas ainda cheio de fãs, de certa forma esperançosos... Foi empolgante a apresentação de André Matos, com canções de seu novo projeto, além de hits do Viper e do Angra (sim, ainda é emocionante cantar “Carry on”, mesmo que a letra nem faça mais tanto sentido). O grande momento da noite, pelo qual a maioria de nós estava lá, no entanto, foi o doom metal dos ingleses do Cathedral. Primeira e última apresentação no Brasil – não apenas porque o público, àquela hora da madrugada, era formado por um bando de zumbis –, mas também porque o grupo encerra sua carreira este ano, depois de uma dezena de excelentes discos de estúdio, com capas ao estilo de Hieronymus Bosch. A performance psicodélica, o som extremamente alto, a potência lenta da bateria... simplesmente perfeitas quando se espera que um show mude as coisas de lugar dentro d´a gente. Depois veio o som belíssimo da guitarra de Eduardo Ardanuy, do Dr. Sin. Mas aí nossos pés já estavam congelando, e a gente veio para a casa. O evento, que completou este ano sua 13ª edição, começa a entrar para a História dos festivais do rock na América Latina. E, cada vez menos artesanal, compensou a poeira e os poucos graus de temperatura no meio do nada.
(26 de junho de 2011)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O ser e o nada

Há coisas que só acontecem comigo. Um amigo disse que eu nasci errada. Maldade. Talvez “gauche”; errada, não. Mas isso que vou narrar aconteceu há muito tempo, quando eu tinha 13 anos e tendências suicidas – como muitos que, àquela época, sentiam ainda o peso da morte recente do vocalista do Nirvana. Eu estudava em um colégio público, pela manhã; e me intrigava pensar que “a minha carteira” seria, à tarde, ocupada por outra pessoa e, à noite, ainda por uma terceira. Foi então que, um dia, apareceram aquelas frases melancólicas rabiscadas ali, na tal carteira, a lápis. Depois, vieram os desenhos tétricos. Fiquei empolgada. Comecei a interagir com o indivíduo, fosse quem fosse, a comentar as frases, desenhar também minhas caveiras com serpentes e espadas – sim, bem ao estilo tatuagem de presidiário. A pessoa, que compartilhava da minha insanidade, gostou da ideia, e começamos a escrever ali bilhetes diários, a discutir bandas de rock – ele gostava de Pink Floyd – e a compartilhar teorias pessimistas. Durou pouco tempo aquilo, mas como era excitante acordar e saber que, no colégio, além das aulas, haveria a carteira e o que ela tinha a me dizer. Aconteceu que o indivíduo – que vou chamar aqui de A., no intuito de respeitar privacidades – passou a estudar pela manhã, na mesma sala que eu. Resultado: nos tornamos amigos. Não sei dizer quando nem como nos apresentamos. Sei que foi assim, simples, natural. E quantas aulas nós passamos conversando. (Sim, porque, em uma escola pública no interior, passar a aula batendo papo é absolutamente inofensivo para o seu desempenho escolar.) Eu puxava uma cadeira e ia me sentar ao lado dele, no fundo da sala. E nós falávamos de rock, literatura, filosofia, nossas famílias e relacionamentos e amigos em comum. Tínhamos, diga-se de passagem, o mesmo guru intelectual, que nos emprestou nossos primeiros romances existencialistas e gravou para nós as canções dos Smiths e do Velvet Underground. Mas A. gostava era de Prodigy, Radiohead e R.E.M. E de camisas xadrez, mesmo sem pensar no grunge. Foi assim por anos: essa amizade cheia de afinidades e boas discussões, em que eu ficava ali admirando a crueza do olhar dele para as coisas e o jeito dele de dizer “Sartrê”. Só isso, mais nada. Depois nós crescemos – ele, mais do que eu. E nos tornamos pessoas diferentes das que éramos. Então, dias atrás, ele colocou no MSN: “Nada mais será tão simples.” E eu pensei num monte de coisas, e nessa amizade também. E, durante esta semana, suspirei muitas vezes ouvindo o eco desse vaticínio: “nada mais será tão simples.”

(16 de junho de 2011.)

terça-feira, 7 de junho de 2011

A fine day to exit

Na semana passada, deixei o Colégio onde trabalhei por mais de cinco anos. O motivo foi justo: poder acordar depois do sol, caminhar sob ele nas manhãs suaves de outono e, sobretudo, estudar. Eu sou uma nerd disfarçada de metaleira; não dá mais para esconder esse fato. E eu sabia que seria difícil dizer adeus aos meus meninos. Passei os dias anteriores admirando-os em silêncio, levando-os gratuitamente para passear no pátio, vendo-os correr e se orgulhar das próprias produções de texto, achando bonito o jeito deles de apagar com paciência os erros gramaticais no caderno. Eu os fui deixando aos poucos, convencendo-me de que seria o melhor, de que suportaria a falta, de que logo eles me esqueceriam. Mas jamais imaginei que não me deixariam sair assim, impune. Primeiro foi um abraço, de uma colega-amiga, choroso e longo. Então ela me pegou pelo braço e disse: “Eu te levo.” Já dava para ouvir os barulhos, como um viveiro cheio de pássaros silvestres. E ela foi me conduzindo escada abaixo. E pude vê-los aos pouquinhos, dezenas, centenas de todos aqueles meninos por tanto tempo tão meus. Sinceramente, cá entre nós: eu me senti uma popstar. Eram câmeras e gritos e aplausos e o meu nome, repetidas vezes o meu nome. Depois, claro, veio o hino do Corinthians, sagrado. Foi uma alegria tão forte que eu não soube chorar. A cada passo, era um presente, um abraço, um apelo. Uma menina ruiva, como a do Charlie Brown, disse: “Você não vê? Todas essas pessoas te adoram! E você vai trocá-las pelo quê? O que pode ser mais importante do que isso?” Sem palavras, eu só sorri. Depois comi uma fatia de um dos cinco bolos confeitados, acreditei na sorte e declarei amor. Ainda houve um vaso de flores, que está perfumando a casa até hoje, um bilhete bonito na agenda, que o aluno – oh, só! – esfregou no coração antes de me entregar, um jantar maravilhoso com os professores, tão carinhosos... e houve, claro, aquele caderno. Passei toda a tarde de terça chorando sobre ele: ali estavam bilhetes de todos os meus alunos e colegas. E eu nunca li palavras tão lindas... sobre lutas e méritos, sobre “desalgemar” os espíritos para a beleza da literatura, sobre não poder reter para sempre as pessoas que amamos. Há dias na vida que, definitivamente, fazem valer a pena todos os outros.
(07/06/2011)

domingo, 22 de maio de 2011

Lutadores com poder astral...

Meu irmão chegava correndo da escola e me perguntava o que havia acontecido com eles. Eu descrevia, às pressas, na hora do almoço. Lamentávamos, comemorávamos, entre nacos de carne e porções desagradáveis de salada. Corria para o colégio. Meus amigos me esperavam – em sua grande maioria, meninos – no fundo da sala, onde repetíamos a trajetória vivida por nossos heróis naquela manhã. Um dos colegas, o Pablo, desenhava o meu favorito, em várias versões, o do “Pó de Diamante” e do “Trovão Aurora”. E depois da aula: o replay. Melhor que qualquer gol. No fim da tarde, na saudosa rede Manchete.
Na realidade, a princípio, eu não entendia o que hipnotizava meu irmão e meus amigos. Eles começaram a falar nomes estranhos, a imitar esdrúxulas coreografias, a parecer mais taciturnos vez em quando. Mas, certa manhã, em um feriado... foi que descobri. O meu primeiro episódio de “Cavaleiros do Zodíaco” já me fez chorar sem censuras. Justamente aquele em que o Camus de Aquário (que camusiano!) aprisionava o do Gelo, o Hyoga, o do complexo de Édipo (ou sei lá), em um esquife, porque era fraco de mais para continuar pelas temidas doze casas do Zodíaco.
Depois vieram as outras sagas, os outros dilemas, e também os caros bonecos (e suas falsificações), novas armaduras, histórias cada vez mais freudianas, a trilha sonora, o sétimo sentido, cegueiras, cachoeiras que corriam para o lado contrário, mestres. Em seguida, surgiram novos animes. Ainda deu para gostar do Naruto, do Evangelion, do Escaflowne e, claro, dos longas do Miyazaki. Mas nada, nunca mais – nunca mais! – foi como os Cavaleiros do Zodíaco.
Dias atrás, recebi esse link: http://tirinhasdozodiaco.blogspot.com. Não é para menores de dezoito anos, mas satiriza questionáveis heroísmos, e ironiza muitas das questões que, àquela época, já nos fazíamos acerca desses ímpares guardiões do universo.

*

E o Anathema quase veio outra vez. Publicou na página oficial há meses. Logo começaram a chegar as mensagens, porque, você sabe, meu amor por eles não é segredo. Corremos, compramos os ingressos (o primeiro lote acabou em dois dias!), pagamos a excursão, faltavam só duas semanas... e eu saí pela casa, beijando paredes e entoando: "eu amo a minha vida, eu amo a minha vida." Mas algo me dizia que não era de bom agouro falar no assunto. Dito e feito: na semana passada, na minha maior crise existencial de todos os tempos, uma briga entre produtores gerou o novo cancelamento do show deles no Brasil. Tudo porque os empresários argentinos descobriram que os brasileiros não tiveram que pagar as passagens de avião dos músicos, como eles haviam feito. Só por isso. E a gente ficou sem o Anathema outra vez. É, de fato, uma maldição. E depois ainda dizem que preciso ser mais positiva com a vida... jajaja! ;-)
(22/05/2011)

domingo, 8 de maio de 2011

Gradiva

“Gradiva” é um nome que, recentemente, em razão de um filme, voltou a fazer parte da minha vida, mas que me apareceu, pela primeira vez, após um elogio inusitado. Cerca de cinco anos atrás, um professor de Teoria da Literatura me disse: “Sei que isso vai parecer estranho, e me perdoe se soar desrespeitoso, mas... estive observando os seus pés. E preciso dizer: você tem simplesmente os pés mais bonitos que eu já vi. Você deveria ser dublê de pé, modelo de propaganda de sandália!” Falou-me, então, de um livro, um romance de Jensen, do início do século passado, sobre o qual – depois vim a saber – também Freud escreveu, e que se tratava justamente de um homem que se apaixona por uma mulher por causa da beleza de seus pés. E acrescentou: "Uma mulher com os seus pés precisa ler Jensen!" Pois bem: na semana passada, fui eu a uma loja de sapatos. Pedi um calçado que fosse, ao mesmo tempo, bonito e confortável – o que parece ser uma combinação paradoxal. O vendedor me olhou incrédulo e passou em revista toda a loja, desesperançoso. Depois de algum tempo, porém, arriscou: “Há calçados que são feios fora do pé, mas, se você calçar, quem sabe...” Pus-me, então, a experimentar as sandálias, sapatos, sapatilhas que ele me apresentava. E, acredite: todos eles, de alguma forma, pareciam transformar-se. Uma senhora sentou-se ao meu lado e passou a observar meu exercício de experimentação. Qualquer par que eu colocasse no pé, e ela dizia: “Que bonito!”, perguntando, em seguida, inquisitiva: “Você vai levar? É que eu gostei tanto...” Eu tirava o calçado do pé e lhe entregava – em respeito aos mais velhos. Ela experimentava e os devolvia ao vendedor, correndo novamente para, com todo o respeito, “urubuzar” o calçado que eu estivesse testando no momento. Houve um instante em que ela chegou ao cúmulo de se interessar por um par que o vendedor acabara de tirar das mãos, ou dos pés, dela: “Que lindo! Onde você achou? Será que tem o meu número?” Eu começava a ficar irritada: “Mas a senhora acabou de experimentá-los! E não quis!” Acabei me afastando da pobre senhora e indo sentar-me junto a duas outras mulheres, que, adivinhe, queriam saber onde eu tinha encontrado aquele par ali, que estava justamente nos meus pés... Enfim. Saí da loja feliz e saltitante, com quatro pares novos de calçados – o que faz a alegria de qualquer mulher – e desconfiada de que o elogio do meu professor tinha lá o seu fundo de verdade.

(08/05/2011)

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Marido de Aluguel

Poucas décadas atrás, com a liberação sexual, a valorização da mulher no mercado de trabalho e a crise da moral e dos bons costumes, veio à tona uma espécie até então encoberta pelos grupos sociais mais ortodoxos: as mães solteiras. No princípio, eram rechaçadas, provocavam a vergonha da família e vaticinavam a impossibilidade de casamento a todas as fêmeas de mesmo sobrenome. Entretanto, com o gigantesco aumento de incidência desses casos, as mães solteiras passaram a ser aceitas nas reuniões, nas igrejas, nos almoços de domingo. Com isso, algumas foram sofrendo mutações que deram origem a espécies similares, como as divorciadas convictas e as mães de proveta. Embora alguns detalhes as diferenciem – como o modo de concepção da prole e o nível de convicção quanto à ausência de um macho – todas têm em comum o dever de:
1) criar e educar os filhos, tornando-os cidadãos honestos e bem empregados no futuro;
2) atualizar-se constantemente – lendo jornais, revistas, bestsellers, participando de workshops, especializações e cursos de idioma – a fim de não perder o posto arduamente conquistado no trabalho;
3) cuidar da casa, o que pode ser feito com as próprias mãos, ou – caso o dinheiro sobre para pagar todos os encargos sociais – com a contratação de uma empregada;
4) cuidar de si mesmas, o que inclui frequentar a academia, evitar frituras, álcool e sobremesas, fazer os exames preventivos anualmente, lavar o rosto com sabonete neutro e esfoliante, passar o protetor solar, usar óculos escuros, vestir-se bem (inclusive quanto aos sapatos e à lingerie), hidratar o cabelo e aparar as pontas mensalmente, fazer as unhas semanalmente etc.
Graças a essas conquistas, pelas quais lutou-se tanto no passado, as mulheres são agora seres humanos completos, não mais objetos sexuais, escravas exploradas por seus maridos, ou nulidades intelectuais. Ótimo. Acontece que, apesar das maravilhas dessa independência toda, às vezes faz falta um indivíduo do sexo oposto – se é que você me entende. Aqueles dias em que a mulher não consegue se virar sozinha, e precisa de alguém que troque a lâmpada, pendure o varal na área de serviços, coloque aquele quadro na parede, conserte a torneira do banheiro, lave a caixa d´água. Para resolver tais problemas, surgiu aquilo que começa a abalar a estrutura das grandes cidades: as agências de Maridos de Aluguel, onde se contratam, como o próprio nome já diz, maridos.
Tudo acontece no já conhecido esquema de entrega em domicílio – vulgo delivery: a mulher telefona, explica o problema a ser resolvido, quando gostaria de receber a visita do tal Marido de Aluguel e, na hora indicada, lá está ele, com a chave de fenda em riste, pronto para satisfazer todos os seus desejos domésticos. Bem, mais ou menos. Em se tratando de um marido, ele vai atrasar uma horinha e meia, à qual culpará o trânsito, a hora-extra, o patrão. A mulher vai fingir que não sente o cheiro da cerveja-com-os-amigos quando ele lhe der um beijo no rosto e disser “Oi, querida.” Depois, ele se lembra a que veio e pergunta, com um sorriso malicioso: “Foi daqui que pediram um Marido de Aluguel?” e, ao que a mulher consente, ele rasga violentamente a camisa, expondo seu peitoral bem definido, e a atira no sofá, agora sim pronto para satisfazer todos os seus desejos. Bem, a parte de tirar a camisa pode até acontecer, mas, visto se tratar de um marido tradicional, quem vai se atirar no sofá é ele, acompanhado de sua barriga redonda de chope e do seu adorável controle remoto.
Após trocar de canal indefinidas vezes, por insustentáveis longos minutos, ele acaba se decidindo por uma partida de futebol da série C do Campeonato Paulista. A essa altura, está só de cuecas; meias, sapatos e calças estão espalhados pela sala, esperando silenciosamente serem apanhados pela mulher. Mas ela está ocupada preparando o jantar e tirando a cerveja do congelador para o Marido. Então, ao entregar a latinha para ele no conforto de seu sofá, a mulher aproveita e menciona o problema da torneira do banheiro e do varal da área de serviços. Ele diz, sem se virar, que vai resolver o problema já, já, e grita um palavrão para o centroavante que perde um “gol feito” do outro lado da TV.
É o momento crucial. Ela tem duas opções. Na primeira, decide dar credibilidade à agência de Maridos de Aluguel, e insiste em contratar o mesmo funcionário para, durante dias, talvez semanas ou meses, frequentar o seu sofá, até que, finalmente, resolva realizar as tarefas que lhe foram inicialmente designadas. Ou, na segunda opção, ela enxota o Marido, com a elegância das mulheres independentes, e, no dia seguinte, contrata os serviços do concorrente, os Amantes de Aluguel – apostando, é claro, na verossimilhança das nomenclaturas em relação a suas funções, em nossa sociedade aprazivelmente moderna.
(22/12/2007)

sábado, 23 de abril de 2011

Páscoas atrás

Cresci numa família católica e sempre tive cara – e nome – de santa. Isso fazia com que eu sempre fosse convidada a participar das encenações da igreja. E Maria era o meu papel. Em um Natal, à meia-noite, colocaram-me uma barriga falsa que, no momento exato, seria puxada, quando me poriam nos braços um bebê de verdade – uma menina, mas de verdade. A barriga ficou pendurada sob o vestido, balançando, entre as pernas, e me entregaram a criança. Foi, no mínimo, curioso, tentar disfarçar o falso feto e erguer o nenê real, para os aplausos dos fiéis. A sequência de encenações, orações, comparações foi se tornando cada vez mais frequente, a ponto de eu, pré-adolescente sem juízo, começar a acreditar que, se Jesus fosse nascer de novo, nasceria de mim, que eu seria a Maria do novo milênio. Megalomanias à parte, foi uma época em que eu tinha fé, principalmente em Cristo. Não me importava se existia um deus: o fato de um homem ter imaginado que, morrendo, salvaria a humanidade, já me bastava para admirá-lo. Lembro-me de uma Sexta-feira da Paixão, quando desceram a imagem de um Cristo macérrimo, machucado, morto, e colocaram nos meus braços. Até o padre chorou comigo aquele dia, como certamente não fazia há muitos sermões. Bem, mas veio a idade, a lógica, a filosofia, o panteísmo, o ateísmo, o agnosticismo... até eu me tornar o que sou hoje. Nesse meio-tempo, porém, lembro-me de uma Páscoa em que levei o Flúvio (vide muitos “posts” atrás) para assistir à queima do Judas – que é uma farra interiorana, em que um boneco de pano é brutamente incendiado, na tentativa de punir anualmente Judas Iscariotes pela sua terrível traição. Na volta, de mãos dadas, Flúvio, que tinha à época uns quatro, cinco anos, não parava de me perguntar, inconformado: “Cadê a mãe do Judas? Coitada dela! Como é que ela tá? Cadê a mãe dele, Gelly?” E ele estava certo: a Maria entoam-se hinos, preces, esculpem-se imagens sacras. Mas ninguém pensa na mãe do Judas, que é muito menos virgem, muito menos santa, muito mais real. Nunca mais presenciei uma queima de Judas, nem penso em fazê-lo de novo, principalmente com uma criança a tiracolo.

*

Porque, todos sabem, eu gosto de crianças. Gosto de sorrir para elas nas ruas, porque elas sempre retribuem, sem nem entender o porquê. Essa gratuidade me encanta. Hoje sorri para um menino, tão bonito em sua morenice. Ele se preparava para vender velas na procissão. É um negócio rentável a essa época do ano. Isso me fez lembrar da história de um ex-amigo – e espero que ele não se incomode de eu reproduzi-la aqui, sem citar a fonte – que, quando moleque, também vendia velas na Semana Santa. Contou-me ele que, certo ano, fez uma pequena fortuna, que resolveu gastar junto aos amigos – vendedores ambulantes como ele – com um bom e suculento X-tudo. Acontece que era Sexta-feira da Paixão, dia de sacrifício e de silêncio, dia de não comer carne, e o dono do estabelecimento simplesmente negou-se a preparar-lhes um sanduíche com bacon, presunto e bife de hambúrguer. Eles, então, revoltaram-se: estavam pagando, não queriam um X-tudo vegetariano! Porém, o vendedor mostrou-se irredutível. Comeram mesmo o X-quase-tudo, mas, como vingança, meu ex-amigo bolou um plano: quando visse, do terraço do restaurante, o ônibus que os levaria para casa, avisaria, e todos sairiam correndo, sem pagar. Dito e feito. Posso, até hoje, imaginar a gritaria eufórica dos moleques, fugindo do religioso vendedor. Mas que fique registrado: mais tarde, com a idade, a lógica e, nesse caso, a fé, acredito que meu ex-amigo tenha retornado ao local e ressarcido o comerciante pelo calote sofrido Páscoas atrás.
(23/04/2011)

domingo, 10 de abril de 2011

Como sobreviver em um show de rock de grande ou média proporção

Ontem fui ao show do Ozzy, no Mineirinho. Antes, porém, fui surpreendida por dois ex-alunos – minha primeira quinta série!, agora no Ensino Médio –, que me perseguiram pelas escadas do colégio para dizer: “Você vai ao Ozzy, Fessora? Então é nóis!” Foi comovente. Pensei neles ao longo do show... deveria ter dado uns conselhos. Depois de dez anos indo a concertos de rock, a gente aprende alguns macetes, que podem ser úteis aos roqueiros iniciantes.
1) Não beba. Cerveja, nem pensar. Água e afins, só com mais de uma hora de antecedência. Dá o maior trabalho conseguir um bom lugar no meio da multidão, e você não vai querer perdê-lo tendo que sair para fazer xixi.
2) Alimente-se, mas com moderação. Se for um festival, esteja munido com barrinhas de cereal, que são leves, de fácil ingestão e digestão.
3) Vista-se de modo confortável. Não é uma micareta, então ninguém vai ficar olhando para você – se olhar, é porque não está no lugar certo, não sabe respeitar os rituais do rock, e não merece ser correspondido. Portanto, nada de botas de salto agulha!: tênis, camisa – de preferência, sem mangas – e jeans, com muitos bolsos, para você guardar o ingresso, o celular e o dinheiro. Só isso. Quanto menos você tiver a perder, mais você consegue se divertir.
4) Não chegue com grande antecedência ao local. Não serve para nada, além de deixá-lo cansado, com fome e com sede. As filas andam muito mais rápido quando o show está prestes a começar.
5) Se você é mulher, não vá com o seu namorado, principalmente se ele for um amor. Explico: tais namorados têm o hábito de apoiar as mãos na sua cintura, impedindo qualquer movimento empolgado durante as melhores músicas. É um gesto carinhoso, de proteção, mas totalmente inapropriado para o contexto.
6) Aí vem a parte mais difícil: escolher um lugar para ficar. Na pista, claro – porque não tem a menor graça ficar na arquibancada! Vamos às dicas:
a) Evite homens sem camisa, mesmo se – ou principalmente se – forem fortes. Esses caras não são metaleiros de verdade. Metaleiro que é metaleiro não vai à academia; fica em casa, escrevendo poema, tocando guitarra ou lendo a Rock Brigade. Os fortões estão ali para zoar. Bebem de mais, fazem uso de drogas ilícitas e estão decididamente propensos a agitar os braços com amplidão e a se agarrar uns aos outros, de modo duvidoso, ao longo do show.
b) Afaste-se de roqueiros histéricos, aqueles que se entreolham e gritam, incrédulos: “É o Ozzy! É o Ozzy!” Eles vão abrir o “mosh” quando tocarem certos hits, espirrando cotoveladas para tudo quanto é lado; e vão chorar nas baladas. Constrangedor.
c) Não fique perto de mulheres altas. Elas sobem nas costas dos companheiros, atrapalhando a visão de meia plateia que está atrás. E, pior: apoiam-se no seu ombro para isso.
d) Pessoas com câmeras profissionais são uma faca de dois gumes. É bom, porque o cidadão não vai pular além da conta, no intuito de proteger seu mais precioso bem material. Ao mesmo tempo, vai ficar com o braço estendido, fotografando o show o tempo todo, e, se você estiver atrás, vai assistir ao concerto pela lente da câmera dele.
e) Evite cabeludos e cabeludas de cabelos soltos. Nada mais insuportável do que uma cabeleira suada, cheirando a cigarro, invadindo suas narinas a cada pulinho.
f) Prefira homens que acompanham suas namoradas e são um amor. Eles não vão se mexer a não ser para olhar para elas e perguntar se está tudo bem. Você tem espaço e oxigênio de sobra ao lado de um casal comportado.
g) Aproxime-se também de roqueiros vestidos de qualquer outra cor que não seja preto. Ao contrário do que possa parecer, isso indica que o indivíduo entende e gosta tanto de rock, que já superou o clichê de ir a shows como se fosse a um velório. Ele vai saber aproveitar e deixar você aproveitar o concerto, sem problemas.
7) Seja gentil. Ontem, apesar de chegar atrasada a um ginásio absolutamente lotado, acabei conseguindo ocupar a primeira fila da pista comum, encostada na grade, porque alguém sempre me dava o seu lugar. Um rapaz chegou a insistir para que eu subisse nas costas dele para ver melhor. Foi engraçado. Eu dizia: “Não, obrigada, isso atrapalha as outras pessoas.” E ele me cutucava a cada hit, a cada balada: “Nem nessa música? Pensa bem! É ´Paranoid!´”
8) Não tenha complexo de inferioridade. Por mais que você goste de uma banda, há sempre alguém que vai gostar mais do que você e cantar todas, todas as músicas melhor do que você. Isso não quer dizer que você não seja um fã, só significa que você tem um emprego.
9) Depois, sente-se num bar, rouco, e coma e beba e fale do show. Aliás, fale do show por vários dias. É um prazer que merece se estender por bem mais do que duas horas.
E viva o rock e o “Príncipe das Trevas”, em sua versão sexagenária!

(10 de abril de 2011)

sábado, 2 de abril de 2011

O Roubo: Pseudopeça em dois atos

ATO 1

Invadiu a casa, revirou gavetas e roubou uma caixa – pesada, repleta de fotografias. Não deixou lembranças.

ATO 2

Passou a noite folheando a vida alheia. Adormeceu sobre glacê e brigadeiros, na festa do filho que não teve.

(02 de abril de 11.)

domingo, 27 de março de 2011

Anúncio publicitário sem fins lucrativos

Certas letras de música falam por nós. E, às vezes, descobrimos que nossos sentimentos são os mais populares, os mais churrasqueiros e – por que não? – os mais pagodeiros. E eu cresci na época em que Raça Negra, Katinguelê, Exaltasamba alegravam as tardes de domingo, com playbacks e coreografias limitadas, nos programas de auditório. Era o tempo da lua que vai, iluminar os pensamentos dela... Em que a gente nadava e morria, na beira da praia, porque, se não tiver você, o coração chora... e assim por diante. Não precisava inventar um poema para a data de aniversário da pessoa querida! Era só cantar: “Feliz aniversário, meu amor, espero que você esteja muito feliz...” Não, eu não gostava de pagode e, ao contrário, manifestava por ele abertamente todo o meu menosprezo. Mas acontece que o tempo vai passando, e a gente percebe que há catástrofes musicais bem mais contundentes. E vê que o pagode tinha, ao menos, a sua porção respeitável de bom humor ao musicar experiências prosaicas, sem a pretensão de uma canção sertaneja romântica ou a autoajuda de uma letra de axé. Mas por que eu estou escrevendo sobre isso hoje, com tanta coisa mais importante no mundo? Visite o blog www.wwsuicide.blogspot.com e descubra!

terça-feira, 22 de março de 2011

Eu queria passar a manhã fazendo haikais...

Eu queria passar a manhã fazendo haikais...
sobre as estações do ano e as de trem
sobre a suavidade do vento no princípio do outono
sobre Vivaldi e você, na distância.

Eu queria passar a manhã fazendo haikais.
Mas tenho uma prova pra elaborar.
(22/03/2011)

domingo, 13 de março de 2011

Se um taxista numa noite de verão...

Foi um trajeto curto, do Lourdes à Savassi, de um aniversário a uma despedida. O taxista disse: “Oi, menina!” E daí não parou. Além do endereço ao qual me dirigia, o que falei foram só frases fáticas, procurando incentivá-lo a continuar o solilóquio. “Agora que o Carnaval acabou, está quente... porque aquela chuva ninguém aguenta! E o pior é o que aconteceu no Japão... antigamente a gente lamentava três, quatro mortes. Agora, mais de mil. Mas, também, com a violência em que esse mundo anda, é melhor acabar tudo mesmo. E vai acabar, porque há tanta bomba atômica por aí. O Iraque mesmo tem três bombas apontadas para o Brasil. Agora, eu fico imaginando, o que não pode acontecer é a Dilma, que é terrorista, namorar um cara desses... Pensa bem: eles constroem um balão, destroem o mundo, e passam meses lá em cima, no céu, namorando. Porque, você vai ver, a Dilma será a pior presidente que esse país já teve. Porque o Lula a deixou numa caixa de marimbondos! Só tem PMDB em volta dela. E uma hora dessas ela fica doente aí, e não melhora mais... porque o Michel Temer é capaz de mandar matar ela! Ela que não abra o olho... O mundo está muito violento.” Eu aproveitei dele a pausa para tomar ar, e brinquei: “É, igual novela do Gilberto Braga! Só maldade.” Porém, ele gostava era de Manoel Carlos: “Eu não vejo mais novela... Antes eu trabalhava de manhã e via aquela “Viver a vida”, com a Taís Araújo, que na época eu tinha uma namorada que parecia com ela. Pensa bem, que cara-de-pau! Eu ficava vendo a novela com a patroa, pensando na Pollyana... a gente tinha um código: ela ligava, eu a chamava de Paulo. Mas era uma mulher perigosa. Esses dias, a gente marcou de encontrar. E, pensa bem, eu sou uma pessoa que acredita muito em horóscopo. E eu tinha lido que aquele dia seria de muitos contratempos. E foi mesmo. A mãe dela ficou doente, precisou ir ao hospital e deu tudo errado. Mas a gente tem é que fazer isso, menina: viver a vida. Porque, se não,” – e aludiu ao título de outra novela, essa da Glória Perez, “o coração explode.”

(13/03/2011)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Hai-kai sem forma para Erik Satie

Vira-lata se contorce no asfalto.
Pulgas:
a união faz a força.

(de muito tempo atrás)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

PARADOXO

um show de jazz
alguns dias atrás.

mojitos después
quase em casa
no pátio do prédio
um cachorro seguiu-me
branco,
um fantasma,
lambendo-me
abanando-se inteiro
em saltos:
a entrega
a um dono
há muito perdido.
falei:
“não.
não posso brincar
com você agora.”
ele insistiu
como surdo
e eu fechei
diante dele
a porta de vidro
(aproveitando-lhe a pausa
para coçar-se das pulgas)
ainda agachei-me
com explicações:
“eu queria.
mas não posso
brincar com você
agora.”
uma lágrima.
na manhã seguinte
olhos abertos
constato a inocência
da véspera
e o cãozinho me vem
em abanos.
certamente pensou
pobrezinho:
“que bêbada!
como se eu
entendesse
o que fala comigo...
cachorros não ouvem
por trás
das portas
de vidro.”
(12 de fevereiro de 2011)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Enterros

Enterro

De repente era o barro e a chuva. E um barulho – antes. Ou seria ao mesmo tempo? A avalanche e o estrondo. E uma coisa esquisita, doída, que a gente não sabe dizer se é sensação, pensamento, aviso de Deus: corre! Obedeci. A terra caindo junto com o teto, tudo indo de uma vez só. E eu fiquei. Preso entre a porta e o desastre. Minha casa, que eu levei tanto tempo para construir, que me fazia sentir tanto orgulho de voltar para ela, era o que me separava da fuga. Doía tudo, perna, braço e o pescoço que eu não conseguia virar. Mas eu ainda respirava e isso era o que eu tinha. E a voz, que usei para gritar muitas vezes a palavra que a gente vê no cinema, e pensa que nunca vai precisar: socorro! Estavam todos ocupados com suas próprias catástrofes, correndo, chorando, contando seus mortos. Eu sabia que, do lado de fora, tudo podia estar ainda mais escuro e enlameado. Mesmo assim, tentei lutar, mover, erguer um pedaço da parte de tudo que pesava sobre as minhas costas. Ofegante, desmaiei. Acordei pensando nos meus filhos, que a minha mulher tinha levado embora antes, graças a Deus. Foi aí que ouvi vozes. Eram os bombeiros. Trabalhavam no resgate, e eu era um dos procurados: vivo ou morto. Havia mais gente. Uma pequena multidão, talvez. Eu gritei. Senti a terra ceder um pouco mais sobre a minha cabeça. Estavam todos muito próximos. Gritei de novo. Uma palpitação, uma esperança. E, ao mesmo tempo, a fraqueza. Não conseguia fazer mais nada, e era surdo o espaço entre o meu buraco e o ar. Então escutei aplausos, uma comoção. Os bombeiros tinham conseguido, haviam habilidosamente resgatado uma mulher que, felizmente, ainda respirava sob o barracão vizinho ao meu. Tentei gritar novamente. Não me ouviram. Era surdo o espaço entre o meu desastre e aquela comemoração. Percebi, com horror, que “soterrado” e “enterrado” eram palavras muito, mas muito parecidas.

(18 de janeiro de 2011.)


Enterro – II

Quando o André falou que a gente ia ter uma casa, eu juro que não acreditei. Fiquei olhando pra ele, ele rindo e eu com aquela cara de “me diz aí qual é a piada.” Mas ele tava falando sério. A vida inteira eu tinha sonhado com isso. De menina, era só um colchão magrelo, que eu dividia com uma tia velha. O quarto era de todo mundo, aquele mundaréu de irmão e parente e cachorro que a gente ficava com dó de deixar na rua. Depois que eu conheci o André, a gente mudou pr´uma casinha de fundo, alugada, mas tava bom, eu nunca fui de reclamar. Aí vieram os menino, foi tudo ficando apertado de novo, e os cachorro que os menino trazia pra dentro... mas a gente dava um jeito. Eu engolia essa vontade de ter um lugarzinho só nosso, porque a gente trabalhava pra diabo e não dava, não tinha jeito, o dinheiro era a conta... e todo mundo ali tinha saúde, tava bom. Só que o André tava fazendo uma reserva, pra me fazer uma surpresa, pensa bem. Aí, igual ele me contou depois, apareceu uma “oportunidade”. É, ele usou essa palavra mesmo. Um conhecido ia mudar pra São Paulo, ofereceu o barracão a preço de banana. O André não tinha o dinheiro todo, mas a gente deu um jeito: pagou metade, depois eu arrumei um pouco emprestado, ele fez uns biscate e a gente acertou tudo. Nem acreditava. Não era grande, não, mas era nosso. Era meu. Caraca!, eu nunca tinha nada pra dizer que era “meu”. E a gente foi feliz ali, ô se foi! O problema é que o barraco ficava no pé do morro e, quando chovia forte, a gente ficava com medo. Era um barro só, uma lama, e aquela ventania, as coisa tremia dentro de casa. Eu abraçava os menino e a gente esperava, esperava, até passar. Aí eu fui cansando de ficar com tanto medo, peguei os menino e enfiei tudo no quartinho de empregada na casa da minha patroa. Gente boa ela, disse que a gente podia ficar lá até acabar a época da chuvarada brava. Só que não tinha lugar pro André. Ele falou que ia pra casa d´um primo. Eu falei “então vai hoje”. “Amanhã eu vou. Juro.” E eu acreditei, sei que ele ia cumprir, homem bom que só ele, que nem conseguia dizer mentira. Eu sei que ele ia cumprir. Só que não deu tempo.

(19 de janeiro de 2011.)


Enterro – III
Sobe para 712 o número de mortos no maior desastre natural já ocorrido no Brasil

O número de vítimas das chuvas no estado do Rio de Janeiro subiu para 712, nesta madrugada. Porém, não foram diretamente os deslizamentos os responsáveis pelo 712º falecimento contabilizado. De acordo com a Polícia Militar, o feirante Welington Ferreira de Freitas, 34, encontrado morto com diversos ferimentos pelo corpo e na cabeça, no bairro da Ribeirinha, teria sido espancado até a morte por moradores de Nova Friburgo, ao ser pego, em flagrante, tentando sequestrar um caminhão de mantimentos destinados aos prejudicados pela chuva. “É um absurdo! Como alguém ainda quer tirar vantagem numa situação dessas?”, manifestou-se um dos moradores, que não quis se identificar. Segundo a PM, casos como esses podem se repetir: “Está tudo mundo muito nervoso, desesperado... E a polícia está ocupada tentando resgatar pessoas com vida, sob os escombros. Não dá para controlar os saques que têm acontecido às residências, então a população acaba fazendo justiça com as próprias mãos.”, declarou o sargento Ricardo de Oliveira Silva, do 49º DP. Os familiares do feirante, procurados por esta reportagem, não quiseram se manifestar.
(19 de janeiro de 2011)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Antes do beijo na Dilma...

Quando minha avó ficou doente, nós passamos uma temporada cuidando dela, num bairro sem asfalto chamado Canto do Rio. Era 1989, e Lula concorria à presidência pela primeira vez. Meus pais eram petistas, mas meu pai era fanático. Cresci em meio a comícios, comitês e passeatas. Então, minha avó faleceu, no mesmo período em que Lula fazia campanha pelo sul de Minas, especificamente em Varginha. Não sei ao certo o que se passava ali, entre os adultos, mas lembro-me de que estavam todos muito nervosos com a recente perda na família, e minha mãe preferiu não deixar sozinhos meu avô e meu irmão menor para ir ao comício. Íamos, então, meu pai e eu. Era uma oportunidade única, inadiável, imperdível. Na véspera, fui brincar na rua. Havia muitas crianças no Canto do Rio. Mamãe disse para não ir, que eu ia me machucar – mas, vez por outra, é preciso desafiar essas previsões pessimistas, “não entre na água, que você afoga”, “não suba na árvore, que você cai”. Fui. Eu tinha uns cinco anos e as crianças maiores só me aceitaram no pique-pega na condição de café-com-leite. Minutos depois, confirmou-se a premonição materna: eu me ferrei: caí de cara no chão, sobre uma pedra; fiquei com o rosto transfigurado. Pior daquela noite era olhar no espelho, aos prantos, minha mãe lamentando ao fundo: “agora você não pode mais ver o Lula...” Eu estava horrorosa, sem eufemismos; era possível que o pobre metalúrgico realmente se assustasse diante daquela assombrosa aparição. Mas eu queria muito, muito ir. No dia seguinte, lá estávamos nós. Em pouco tempo, eu já me divertia com outras crianças, sob aquele sol escaldante, e quase esquecia o quanto eu estava feia. Havia muita gente ali e, mesmo com os esforços do meu pai para me erguer acima da multidão, eu quase não conseguia, de fato, ver o Lula. Então o comício acabou. Foi tudo muito rápido. Aplausos, vozes, um tumulto e, de repente, abriu-se um corredor para a passagem do candidato do PT. Meu pai me pegou no colo e disse: “estenda a mão para ele”. Eu obedeci. Lula passou rapidamente por todo mundo, escoltado, visivelmente fatigado. Então ele parou. De repente. Diante de mim. Pegou minha mão e a beijou. Depois foi embora, sem olhar para os lados. Lembro-me ainda do rosto dele, do suor, do cansaço. Olhei para meu pai, maravilhada: “O Lula beijou a minha mão, Papai!” Fiquei famosa na cidade por algum tempo – nas cidades do interior, como na televisão, as pessoas ficam famosas por razões um tanto estranhas. Passei uma época acreditando que nada na minha vida poderia dar errado, já que o Lula – o futuro presidente da República – havia beijado a minha mão, e a de mais ninguém aquele dia, e isso tinha que significar alguma coisa. Depois percebi, na prática, que era uma só ideia estúpida.
Mas o beijo ficou.

(14/01/2011)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Texto de Ano Novo

Duas cenas: 1) No salão de beleza, à espera da tortura bimensal da depilação, ouço gargalhadas em série, dessas de alegria genuína. Olho pela janela, que dá para um quintal, e lá está uma menina, de uns cinco anos, que se diverte sozinha com um banho de mangueira num dia de sol quente. 2) Chegando ao colégio, dois meninos jogam futebol, sendo que um deles se posiciona diante de uma rampa. Resultado: a bola, a todo momento, escorrega para o pátio e o garoto precisa correr até lá para buscá-la e, então, dar continuidade ao jogo. Assim que o vejo, penso:“Que injustiça! Ele está sendo prejudicado... devia pedir que revezassem o lado do gol.” Mas olho para o menino e vejo que ele sobe e desce a rampa com olhos que estalam de euforia, totalmente alheio a isso que, a meu ver, é um inconveniente. Porque, para ele, tudo faz parte da brincadeira. Quantas vezes a gente, com medo de ser enganado, de fazer papel de bobo, irrita-se por pouca coisa, e acaba perdendo o melhor da festa... A gente leva tudo a sério de mais, e se esquece de pensar no que pode simplesmente fazer parte da brincadeira. Porque ser feliz é tão fácil: basta um banho de mangueira, uma fanta uva com doritos no banco da praça, um livro bom. Tão mais perto do que sugere aquela palavra difícil, que a gente só usa nos cartões de final de ano: “Um PRÓSPERO ano novo!” Tão mais simples... que me faz pensar em outra cena: 3) O aluno, na aula particular, refestela-se na cadeira, entediado. A professora diz: “Senta direito, menino!” Ele a olha bem nos olhos, com intensidade, e responde num suspiro: “Ah, fessora... Vocês, adultos, são todos iguais.” Sad, but true?
(09/01/2011)