quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Enterros

Enterro

De repente era o barro e a chuva. E um barulho – antes. Ou seria ao mesmo tempo? A avalanche e o estrondo. E uma coisa esquisita, doída, que a gente não sabe dizer se é sensação, pensamento, aviso de Deus: corre! Obedeci. A terra caindo junto com o teto, tudo indo de uma vez só. E eu fiquei. Preso entre a porta e o desastre. Minha casa, que eu levei tanto tempo para construir, que me fazia sentir tanto orgulho de voltar para ela, era o que me separava da fuga. Doía tudo, perna, braço e o pescoço que eu não conseguia virar. Mas eu ainda respirava e isso era o que eu tinha. E a voz, que usei para gritar muitas vezes a palavra que a gente vê no cinema, e pensa que nunca vai precisar: socorro! Estavam todos ocupados com suas próprias catástrofes, correndo, chorando, contando seus mortos. Eu sabia que, do lado de fora, tudo podia estar ainda mais escuro e enlameado. Mesmo assim, tentei lutar, mover, erguer um pedaço da parte de tudo que pesava sobre as minhas costas. Ofegante, desmaiei. Acordei pensando nos meus filhos, que a minha mulher tinha levado embora antes, graças a Deus. Foi aí que ouvi vozes. Eram os bombeiros. Trabalhavam no resgate, e eu era um dos procurados: vivo ou morto. Havia mais gente. Uma pequena multidão, talvez. Eu gritei. Senti a terra ceder um pouco mais sobre a minha cabeça. Estavam todos muito próximos. Gritei de novo. Uma palpitação, uma esperança. E, ao mesmo tempo, a fraqueza. Não conseguia fazer mais nada, e era surdo o espaço entre o meu buraco e o ar. Então escutei aplausos, uma comoção. Os bombeiros tinham conseguido, haviam habilidosamente resgatado uma mulher que, felizmente, ainda respirava sob o barracão vizinho ao meu. Tentei gritar novamente. Não me ouviram. Era surdo o espaço entre o meu desastre e aquela comemoração. Percebi, com horror, que “soterrado” e “enterrado” eram palavras muito, mas muito parecidas.

(18 de janeiro de 2011.)


Enterro – II

Quando o André falou que a gente ia ter uma casa, eu juro que não acreditei. Fiquei olhando pra ele, ele rindo e eu com aquela cara de “me diz aí qual é a piada.” Mas ele tava falando sério. A vida inteira eu tinha sonhado com isso. De menina, era só um colchão magrelo, que eu dividia com uma tia velha. O quarto era de todo mundo, aquele mundaréu de irmão e parente e cachorro que a gente ficava com dó de deixar na rua. Depois que eu conheci o André, a gente mudou pr´uma casinha de fundo, alugada, mas tava bom, eu nunca fui de reclamar. Aí vieram os menino, foi tudo ficando apertado de novo, e os cachorro que os menino trazia pra dentro... mas a gente dava um jeito. Eu engolia essa vontade de ter um lugarzinho só nosso, porque a gente trabalhava pra diabo e não dava, não tinha jeito, o dinheiro era a conta... e todo mundo ali tinha saúde, tava bom. Só que o André tava fazendo uma reserva, pra me fazer uma surpresa, pensa bem. Aí, igual ele me contou depois, apareceu uma “oportunidade”. É, ele usou essa palavra mesmo. Um conhecido ia mudar pra São Paulo, ofereceu o barracão a preço de banana. O André não tinha o dinheiro todo, mas a gente deu um jeito: pagou metade, depois eu arrumei um pouco emprestado, ele fez uns biscate e a gente acertou tudo. Nem acreditava. Não era grande, não, mas era nosso. Era meu. Caraca!, eu nunca tinha nada pra dizer que era “meu”. E a gente foi feliz ali, ô se foi! O problema é que o barraco ficava no pé do morro e, quando chovia forte, a gente ficava com medo. Era um barro só, uma lama, e aquela ventania, as coisa tremia dentro de casa. Eu abraçava os menino e a gente esperava, esperava, até passar. Aí eu fui cansando de ficar com tanto medo, peguei os menino e enfiei tudo no quartinho de empregada na casa da minha patroa. Gente boa ela, disse que a gente podia ficar lá até acabar a época da chuvarada brava. Só que não tinha lugar pro André. Ele falou que ia pra casa d´um primo. Eu falei “então vai hoje”. “Amanhã eu vou. Juro.” E eu acreditei, sei que ele ia cumprir, homem bom que só ele, que nem conseguia dizer mentira. Eu sei que ele ia cumprir. Só que não deu tempo.

(19 de janeiro de 2011.)


Enterro – III
Sobe para 712 o número de mortos no maior desastre natural já ocorrido no Brasil

O número de vítimas das chuvas no estado do Rio de Janeiro subiu para 712, nesta madrugada. Porém, não foram diretamente os deslizamentos os responsáveis pelo 712º falecimento contabilizado. De acordo com a Polícia Militar, o feirante Welington Ferreira de Freitas, 34, encontrado morto com diversos ferimentos pelo corpo e na cabeça, no bairro da Ribeirinha, teria sido espancado até a morte por moradores de Nova Friburgo, ao ser pego, em flagrante, tentando sequestrar um caminhão de mantimentos destinados aos prejudicados pela chuva. “É um absurdo! Como alguém ainda quer tirar vantagem numa situação dessas?”, manifestou-se um dos moradores, que não quis se identificar. Segundo a PM, casos como esses podem se repetir: “Está tudo mundo muito nervoso, desesperado... E a polícia está ocupada tentando resgatar pessoas com vida, sob os escombros. Não dá para controlar os saques que têm acontecido às residências, então a população acaba fazendo justiça com as próprias mãos.”, declarou o sargento Ricardo de Oliveira Silva, do 49º DP. Os familiares do feirante, procurados por esta reportagem, não quiseram se manifestar.
(19 de janeiro de 2011)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Antes do beijo na Dilma...

Quando minha avó ficou doente, nós passamos uma temporada cuidando dela, num bairro sem asfalto chamado Canto do Rio. Era 1989, e Lula concorria à presidência pela primeira vez. Meus pais eram petistas, mas meu pai era fanático. Cresci em meio a comícios, comitês e passeatas. Então, minha avó faleceu, no mesmo período em que Lula fazia campanha pelo sul de Minas, especificamente em Varginha. Não sei ao certo o que se passava ali, entre os adultos, mas lembro-me de que estavam todos muito nervosos com a recente perda na família, e minha mãe preferiu não deixar sozinhos meu avô e meu irmão menor para ir ao comício. Íamos, então, meu pai e eu. Era uma oportunidade única, inadiável, imperdível. Na véspera, fui brincar na rua. Havia muitas crianças no Canto do Rio. Mamãe disse para não ir, que eu ia me machucar – mas, vez por outra, é preciso desafiar essas previsões pessimistas, “não entre na água, que você afoga”, “não suba na árvore, que você cai”. Fui. Eu tinha uns cinco anos e as crianças maiores só me aceitaram no pique-pega na condição de café-com-leite. Minutos depois, confirmou-se a premonição materna: eu me ferrei: caí de cara no chão, sobre uma pedra; fiquei com o rosto transfigurado. Pior daquela noite era olhar no espelho, aos prantos, minha mãe lamentando ao fundo: “agora você não pode mais ver o Lula...” Eu estava horrorosa, sem eufemismos; era possível que o pobre metalúrgico realmente se assustasse diante daquela assombrosa aparição. Mas eu queria muito, muito ir. No dia seguinte, lá estávamos nós. Em pouco tempo, eu já me divertia com outras crianças, sob aquele sol escaldante, e quase esquecia o quanto eu estava feia. Havia muita gente ali e, mesmo com os esforços do meu pai para me erguer acima da multidão, eu quase não conseguia, de fato, ver o Lula. Então o comício acabou. Foi tudo muito rápido. Aplausos, vozes, um tumulto e, de repente, abriu-se um corredor para a passagem do candidato do PT. Meu pai me pegou no colo e disse: “estenda a mão para ele”. Eu obedeci. Lula passou rapidamente por todo mundo, escoltado, visivelmente fatigado. Então ele parou. De repente. Diante de mim. Pegou minha mão e a beijou. Depois foi embora, sem olhar para os lados. Lembro-me ainda do rosto dele, do suor, do cansaço. Olhei para meu pai, maravilhada: “O Lula beijou a minha mão, Papai!” Fiquei famosa na cidade por algum tempo – nas cidades do interior, como na televisão, as pessoas ficam famosas por razões um tanto estranhas. Passei uma época acreditando que nada na minha vida poderia dar errado, já que o Lula – o futuro presidente da República – havia beijado a minha mão, e a de mais ninguém aquele dia, e isso tinha que significar alguma coisa. Depois percebi, na prática, que era uma só ideia estúpida.
Mas o beijo ficou.

(14/01/2011)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Texto de Ano Novo

Duas cenas: 1) No salão de beleza, à espera da tortura bimensal da depilação, ouço gargalhadas em série, dessas de alegria genuína. Olho pela janela, que dá para um quintal, e lá está uma menina, de uns cinco anos, que se diverte sozinha com um banho de mangueira num dia de sol quente. 2) Chegando ao colégio, dois meninos jogam futebol, sendo que um deles se posiciona diante de uma rampa. Resultado: a bola, a todo momento, escorrega para o pátio e o garoto precisa correr até lá para buscá-la e, então, dar continuidade ao jogo. Assim que o vejo, penso:“Que injustiça! Ele está sendo prejudicado... devia pedir que revezassem o lado do gol.” Mas olho para o menino e vejo que ele sobe e desce a rampa com olhos que estalam de euforia, totalmente alheio a isso que, a meu ver, é um inconveniente. Porque, para ele, tudo faz parte da brincadeira. Quantas vezes a gente, com medo de ser enganado, de fazer papel de bobo, irrita-se por pouca coisa, e acaba perdendo o melhor da festa... A gente leva tudo a sério de mais, e se esquece de pensar no que pode simplesmente fazer parte da brincadeira. Porque ser feliz é tão fácil: basta um banho de mangueira, uma fanta uva com doritos no banco da praça, um livro bom. Tão mais perto do que sugere aquela palavra difícil, que a gente só usa nos cartões de final de ano: “Um PRÓSPERO ano novo!” Tão mais simples... que me faz pensar em outra cena: 3) O aluno, na aula particular, refestela-se na cadeira, entediado. A professora diz: “Senta direito, menino!” Ele a olha bem nos olhos, com intensidade, e responde num suspiro: “Ah, fessora... Vocês, adultos, são todos iguais.” Sad, but true?
(09/01/2011)