Cresci numa família católica e sempre tive cara – e nome – de santa. Isso fazia com que eu sempre fosse convidada a participar das encenações da igreja. E Maria era o meu papel. Em um Natal, à meia-noite, colocaram-me uma barriga falsa que, no momento exato, seria puxada, quando me poriam nos braços um bebê de verdade – uma menina, mas de verdade. A barriga ficou pendurada sob o vestido, balançando, entre as pernas, e me entregaram a criança. Foi, no mínimo, curioso, tentar disfarçar o falso feto e erguer o nenê real, para os aplausos dos fiéis. A sequência de encenações, orações, comparações foi se tornando cada vez mais frequente, a ponto de eu, pré-adolescente sem juízo, começar a acreditar que, se Jesus fosse nascer de novo, nasceria de mim, que eu seria a Maria do novo milênio. Megalomanias à parte, foi uma época em que eu tinha fé, principalmente em Cristo. Não me importava se existia um deus: o fato de um homem ter imaginado que, morrendo, salvaria a humanidade, já me bastava para admirá-lo. Lembro-me de uma Sexta-feira da Paixão, quando desceram a imagem de um Cristo macérrimo, machucado, morto, e colocaram nos meus braços. Até o padre chorou comigo aquele dia, como certamente não fazia há muitos sermões. Bem, mas veio a idade, a lógica, a filosofia, o panteísmo, o ateísmo, o agnosticismo... até eu me tornar o que sou hoje. Nesse meio-tempo, porém, lembro-me de uma Páscoa em que levei o Flúvio (vide muitos “posts” atrás) para assistir à queima do Judas – que é uma farra interiorana, em que um boneco de pano é brutamente incendiado, na tentativa de punir anualmente Judas Iscariotes pela sua terrível traição. Na volta, de mãos dadas, Flúvio, que tinha à época uns quatro, cinco anos, não parava de me perguntar, inconformado: “Cadê a mãe do Judas? Coitada dela! Como é que ela tá? Cadê a mãe dele, Gelly?” E ele estava certo: a Maria entoam-se hinos, preces, esculpem-se imagens sacras. Mas ninguém pensa na mãe do Judas, que é muito menos virgem, muito menos santa, muito mais real. Nunca mais presenciei uma queima de Judas, nem penso em fazê-lo de novo, principalmente com uma criança a tiracolo.
*
Porque, todos sabem, eu gosto de crianças. Gosto de sorrir para elas nas ruas, porque elas sempre retribuem, sem nem entender o porquê. Essa gratuidade me encanta. Hoje sorri para um menino, tão bonito em sua morenice. Ele se preparava para vender velas na procissão. É um negócio rentável a essa época do ano. Isso me fez lembrar da história de um ex-amigo – e espero que ele não se incomode de eu reproduzi-la aqui, sem citar a fonte – que, quando moleque, também vendia velas na Semana Santa. Contou-me ele que, certo ano, fez uma pequena fortuna, que resolveu gastar junto aos amigos – vendedores ambulantes como ele – com um bom e suculento X-tudo. Acontece que era Sexta-feira da Paixão, dia de sacrifício e de silêncio, dia de não comer carne, e o dono do estabelecimento simplesmente negou-se a preparar-lhes um sanduíche com bacon, presunto e bife de hambúrguer. Eles, então, revoltaram-se: estavam pagando, não queriam um X-tudo vegetariano! Porém, o vendedor mostrou-se irredutível. Comeram mesmo o X-quase-tudo, mas, como vingança, meu ex-amigo bolou um plano: quando visse, do terraço do restaurante, o ônibus que os levaria para casa, avisaria, e todos sairiam correndo, sem pagar. Dito e feito. Posso, até hoje, imaginar a gritaria eufórica dos moleques, fugindo do religioso vendedor. Mas que fique registrado: mais tarde, com a idade, a lógica e, nesse caso, a fé, acredito que meu ex-amigo tenha retornado ao local e ressarcido o comerciante pelo calote sofrido Páscoas atrás.
(23/04/2011)
sábado, 23 de abril de 2011
domingo, 10 de abril de 2011
Como sobreviver em um show de rock de grande ou média proporção
Ontem fui ao show do Ozzy, no Mineirinho. Antes, porém, fui surpreendida por dois ex-alunos – minha primeira quinta série!, agora no Ensino Médio –, que me perseguiram pelas escadas do colégio para dizer: “Você vai ao Ozzy, Fessora? Então é nóis!” Foi comovente. Pensei neles ao longo do show... deveria ter dado uns conselhos. Depois de dez anos indo a concertos de rock, a gente aprende alguns macetes, que podem ser úteis aos roqueiros iniciantes.
1) Não beba. Cerveja, nem pensar. Água e afins, só com mais de uma hora de antecedência. Dá o maior trabalho conseguir um bom lugar no meio da multidão, e você não vai querer perdê-lo tendo que sair para fazer xixi.
2) Alimente-se, mas com moderação. Se for um festival, esteja munido com barrinhas de cereal, que são leves, de fácil ingestão e digestão.
3) Vista-se de modo confortável. Não é uma micareta, então ninguém vai ficar olhando para você – se olhar, é porque não está no lugar certo, não sabe respeitar os rituais do rock, e não merece ser correspondido. Portanto, nada de botas de salto agulha!: tênis, camisa – de preferência, sem mangas – e jeans, com muitos bolsos, para você guardar o ingresso, o celular e o dinheiro. Só isso. Quanto menos você tiver a perder, mais você consegue se divertir.
4) Não chegue com grande antecedência ao local. Não serve para nada, além de deixá-lo cansado, com fome e com sede. As filas andam muito mais rápido quando o show está prestes a começar.
5) Se você é mulher, não vá com o seu namorado, principalmente se ele for um amor. Explico: tais namorados têm o hábito de apoiar as mãos na sua cintura, impedindo qualquer movimento empolgado durante as melhores músicas. É um gesto carinhoso, de proteção, mas totalmente inapropriado para o contexto.
6) Aí vem a parte mais difícil: escolher um lugar para ficar. Na pista, claro – porque não tem a menor graça ficar na arquibancada! Vamos às dicas:
a) Evite homens sem camisa, mesmo se – ou principalmente se – forem fortes. Esses caras não são metaleiros de verdade. Metaleiro que é metaleiro não vai à academia; fica em casa, escrevendo poema, tocando guitarra ou lendo a Rock Brigade. Os fortões estão ali para zoar. Bebem de mais, fazem uso de drogas ilícitas e estão decididamente propensos a agitar os braços com amplidão e a se agarrar uns aos outros, de modo duvidoso, ao longo do show.
b) Afaste-se de roqueiros histéricos, aqueles que se entreolham e gritam, incrédulos: “É o Ozzy! É o Ozzy!” Eles vão abrir o “mosh” quando tocarem certos hits, espirrando cotoveladas para tudo quanto é lado; e vão chorar nas baladas. Constrangedor.
c) Não fique perto de mulheres altas. Elas sobem nas costas dos companheiros, atrapalhando a visão de meia plateia que está atrás. E, pior: apoiam-se no seu ombro para isso.
d) Pessoas com câmeras profissionais são uma faca de dois gumes. É bom, porque o cidadão não vai pular além da conta, no intuito de proteger seu mais precioso bem material. Ao mesmo tempo, vai ficar com o braço estendido, fotografando o show o tempo todo, e, se você estiver atrás, vai assistir ao concerto pela lente da câmera dele.
e) Evite cabeludos e cabeludas de cabelos soltos. Nada mais insuportável do que uma cabeleira suada, cheirando a cigarro, invadindo suas narinas a cada pulinho.
f) Prefira homens que acompanham suas namoradas e são um amor. Eles não vão se mexer a não ser para olhar para elas e perguntar se está tudo bem. Você tem espaço e oxigênio de sobra ao lado de um casal comportado.
g) Aproxime-se também de roqueiros vestidos de qualquer outra cor que não seja preto. Ao contrário do que possa parecer, isso indica que o indivíduo entende e gosta tanto de rock, que já superou o clichê de ir a shows como se fosse a um velório. Ele vai saber aproveitar e deixar você aproveitar o concerto, sem problemas.
7) Seja gentil. Ontem, apesar de chegar atrasada a um ginásio absolutamente lotado, acabei conseguindo ocupar a primeira fila da pista comum, encostada na grade, porque alguém sempre me dava o seu lugar. Um rapaz chegou a insistir para que eu subisse nas costas dele para ver melhor. Foi engraçado. Eu dizia: “Não, obrigada, isso atrapalha as outras pessoas.” E ele me cutucava a cada hit, a cada balada: “Nem nessa música? Pensa bem! É ´Paranoid!´”
8) Não tenha complexo de inferioridade. Por mais que você goste de uma banda, há sempre alguém que vai gostar mais do que você e cantar todas, todas as músicas melhor do que você. Isso não quer dizer que você não seja um fã, só significa que você tem um emprego.
9) Depois, sente-se num bar, rouco, e coma e beba e fale do show. Aliás, fale do show por vários dias. É um prazer que merece se estender por bem mais do que duas horas.
E viva o rock e o “Príncipe das Trevas”, em sua versão sexagenária!
(10 de abril de 2011)
1) Não beba. Cerveja, nem pensar. Água e afins, só com mais de uma hora de antecedência. Dá o maior trabalho conseguir um bom lugar no meio da multidão, e você não vai querer perdê-lo tendo que sair para fazer xixi.
2) Alimente-se, mas com moderação. Se for um festival, esteja munido com barrinhas de cereal, que são leves, de fácil ingestão e digestão.
3) Vista-se de modo confortável. Não é uma micareta, então ninguém vai ficar olhando para você – se olhar, é porque não está no lugar certo, não sabe respeitar os rituais do rock, e não merece ser correspondido. Portanto, nada de botas de salto agulha!: tênis, camisa – de preferência, sem mangas – e jeans, com muitos bolsos, para você guardar o ingresso, o celular e o dinheiro. Só isso. Quanto menos você tiver a perder, mais você consegue se divertir.
4) Não chegue com grande antecedência ao local. Não serve para nada, além de deixá-lo cansado, com fome e com sede. As filas andam muito mais rápido quando o show está prestes a começar.
5) Se você é mulher, não vá com o seu namorado, principalmente se ele for um amor. Explico: tais namorados têm o hábito de apoiar as mãos na sua cintura, impedindo qualquer movimento empolgado durante as melhores músicas. É um gesto carinhoso, de proteção, mas totalmente inapropriado para o contexto.
6) Aí vem a parte mais difícil: escolher um lugar para ficar. Na pista, claro – porque não tem a menor graça ficar na arquibancada! Vamos às dicas:
a) Evite homens sem camisa, mesmo se – ou principalmente se – forem fortes. Esses caras não são metaleiros de verdade. Metaleiro que é metaleiro não vai à academia; fica em casa, escrevendo poema, tocando guitarra ou lendo a Rock Brigade. Os fortões estão ali para zoar. Bebem de mais, fazem uso de drogas ilícitas e estão decididamente propensos a agitar os braços com amplidão e a se agarrar uns aos outros, de modo duvidoso, ao longo do show.
b) Afaste-se de roqueiros histéricos, aqueles que se entreolham e gritam, incrédulos: “É o Ozzy! É o Ozzy!” Eles vão abrir o “mosh” quando tocarem certos hits, espirrando cotoveladas para tudo quanto é lado; e vão chorar nas baladas. Constrangedor.
c) Não fique perto de mulheres altas. Elas sobem nas costas dos companheiros, atrapalhando a visão de meia plateia que está atrás. E, pior: apoiam-se no seu ombro para isso.
d) Pessoas com câmeras profissionais são uma faca de dois gumes. É bom, porque o cidadão não vai pular além da conta, no intuito de proteger seu mais precioso bem material. Ao mesmo tempo, vai ficar com o braço estendido, fotografando o show o tempo todo, e, se você estiver atrás, vai assistir ao concerto pela lente da câmera dele.
e) Evite cabeludos e cabeludas de cabelos soltos. Nada mais insuportável do que uma cabeleira suada, cheirando a cigarro, invadindo suas narinas a cada pulinho.
f) Prefira homens que acompanham suas namoradas e são um amor. Eles não vão se mexer a não ser para olhar para elas e perguntar se está tudo bem. Você tem espaço e oxigênio de sobra ao lado de um casal comportado.
g) Aproxime-se também de roqueiros vestidos de qualquer outra cor que não seja preto. Ao contrário do que possa parecer, isso indica que o indivíduo entende e gosta tanto de rock, que já superou o clichê de ir a shows como se fosse a um velório. Ele vai saber aproveitar e deixar você aproveitar o concerto, sem problemas.
7) Seja gentil. Ontem, apesar de chegar atrasada a um ginásio absolutamente lotado, acabei conseguindo ocupar a primeira fila da pista comum, encostada na grade, porque alguém sempre me dava o seu lugar. Um rapaz chegou a insistir para que eu subisse nas costas dele para ver melhor. Foi engraçado. Eu dizia: “Não, obrigada, isso atrapalha as outras pessoas.” E ele me cutucava a cada hit, a cada balada: “Nem nessa música? Pensa bem! É ´Paranoid!´”
8) Não tenha complexo de inferioridade. Por mais que você goste de uma banda, há sempre alguém que vai gostar mais do que você e cantar todas, todas as músicas melhor do que você. Isso não quer dizer que você não seja um fã, só significa que você tem um emprego.
9) Depois, sente-se num bar, rouco, e coma e beba e fale do show. Aliás, fale do show por vários dias. É um prazer que merece se estender por bem mais do que duas horas.
E viva o rock e o “Príncipe das Trevas”, em sua versão sexagenária!
(10 de abril de 2011)
sábado, 2 de abril de 2011
O Roubo: Pseudopeça em dois atos
ATO 1
Invadiu a casa, revirou gavetas e roubou uma caixa – pesada, repleta de fotografias. Não deixou lembranças.
ATO 2
Passou a noite folheando a vida alheia. Adormeceu sobre glacê e brigadeiros, na festa do filho que não teve.
(02 de abril de 11.)
Invadiu a casa, revirou gavetas e roubou uma caixa – pesada, repleta de fotografias. Não deixou lembranças.
ATO 2
Passou a noite folheando a vida alheia. Adormeceu sobre glacê e brigadeiros, na festa do filho que não teve.
(02 de abril de 11.)
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