sábado, 23 de abril de 2011

Páscoas atrás

Cresci numa família católica e sempre tive cara – e nome – de santa. Isso fazia com que eu sempre fosse convidada a participar das encenações da igreja. E Maria era o meu papel. Em um Natal, à meia-noite, colocaram-me uma barriga falsa que, no momento exato, seria puxada, quando me poriam nos braços um bebê de verdade – uma menina, mas de verdade. A barriga ficou pendurada sob o vestido, balançando, entre as pernas, e me entregaram a criança. Foi, no mínimo, curioso, tentar disfarçar o falso feto e erguer o nenê real, para os aplausos dos fiéis. A sequência de encenações, orações, comparações foi se tornando cada vez mais frequente, a ponto de eu, pré-adolescente sem juízo, começar a acreditar que, se Jesus fosse nascer de novo, nasceria de mim, que eu seria a Maria do novo milênio. Megalomanias à parte, foi uma época em que eu tinha fé, principalmente em Cristo. Não me importava se existia um deus: o fato de um homem ter imaginado que, morrendo, salvaria a humanidade, já me bastava para admirá-lo. Lembro-me de uma Sexta-feira da Paixão, quando desceram a imagem de um Cristo macérrimo, machucado, morto, e colocaram nos meus braços. Até o padre chorou comigo aquele dia, como certamente não fazia há muitos sermões. Bem, mas veio a idade, a lógica, a filosofia, o panteísmo, o ateísmo, o agnosticismo... até eu me tornar o que sou hoje. Nesse meio-tempo, porém, lembro-me de uma Páscoa em que levei o Flúvio (vide muitos “posts” atrás) para assistir à queima do Judas – que é uma farra interiorana, em que um boneco de pano é brutamente incendiado, na tentativa de punir anualmente Judas Iscariotes pela sua terrível traição. Na volta, de mãos dadas, Flúvio, que tinha à época uns quatro, cinco anos, não parava de me perguntar, inconformado: “Cadê a mãe do Judas? Coitada dela! Como é que ela tá? Cadê a mãe dele, Gelly?” E ele estava certo: a Maria entoam-se hinos, preces, esculpem-se imagens sacras. Mas ninguém pensa na mãe do Judas, que é muito menos virgem, muito menos santa, muito mais real. Nunca mais presenciei uma queima de Judas, nem penso em fazê-lo de novo, principalmente com uma criança a tiracolo.

*

Porque, todos sabem, eu gosto de crianças. Gosto de sorrir para elas nas ruas, porque elas sempre retribuem, sem nem entender o porquê. Essa gratuidade me encanta. Hoje sorri para um menino, tão bonito em sua morenice. Ele se preparava para vender velas na procissão. É um negócio rentável a essa época do ano. Isso me fez lembrar da história de um ex-amigo – e espero que ele não se incomode de eu reproduzi-la aqui, sem citar a fonte – que, quando moleque, também vendia velas na Semana Santa. Contou-me ele que, certo ano, fez uma pequena fortuna, que resolveu gastar junto aos amigos – vendedores ambulantes como ele – com um bom e suculento X-tudo. Acontece que era Sexta-feira da Paixão, dia de sacrifício e de silêncio, dia de não comer carne, e o dono do estabelecimento simplesmente negou-se a preparar-lhes um sanduíche com bacon, presunto e bife de hambúrguer. Eles, então, revoltaram-se: estavam pagando, não queriam um X-tudo vegetariano! Porém, o vendedor mostrou-se irredutível. Comeram mesmo o X-quase-tudo, mas, como vingança, meu ex-amigo bolou um plano: quando visse, do terraço do restaurante, o ônibus que os levaria para casa, avisaria, e todos sairiam correndo, sem pagar. Dito e feito. Posso, até hoje, imaginar a gritaria eufórica dos moleques, fugindo do religioso vendedor. Mas que fique registrado: mais tarde, com a idade, a lógica e, nesse caso, a fé, acredito que meu ex-amigo tenha retornado ao local e ressarcido o comerciante pelo calote sofrido Páscoas atrás.
(23/04/2011)

domingo, 10 de abril de 2011

Como sobreviver em um show de rock de grande ou média proporção

Ontem fui ao show do Ozzy, no Mineirinho. Antes, porém, fui surpreendida por dois ex-alunos – minha primeira quinta série!, agora no Ensino Médio –, que me perseguiram pelas escadas do colégio para dizer: “Você vai ao Ozzy, Fessora? Então é nóis!” Foi comovente. Pensei neles ao longo do show... deveria ter dado uns conselhos. Depois de dez anos indo a concertos de rock, a gente aprende alguns macetes, que podem ser úteis aos roqueiros iniciantes.
1) Não beba. Cerveja, nem pensar. Água e afins, só com mais de uma hora de antecedência. Dá o maior trabalho conseguir um bom lugar no meio da multidão, e você não vai querer perdê-lo tendo que sair para fazer xixi.
2) Alimente-se, mas com moderação. Se for um festival, esteja munido com barrinhas de cereal, que são leves, de fácil ingestão e digestão.
3) Vista-se de modo confortável. Não é uma micareta, então ninguém vai ficar olhando para você – se olhar, é porque não está no lugar certo, não sabe respeitar os rituais do rock, e não merece ser correspondido. Portanto, nada de botas de salto agulha!: tênis, camisa – de preferência, sem mangas – e jeans, com muitos bolsos, para você guardar o ingresso, o celular e o dinheiro. Só isso. Quanto menos você tiver a perder, mais você consegue se divertir.
4) Não chegue com grande antecedência ao local. Não serve para nada, além de deixá-lo cansado, com fome e com sede. As filas andam muito mais rápido quando o show está prestes a começar.
5) Se você é mulher, não vá com o seu namorado, principalmente se ele for um amor. Explico: tais namorados têm o hábito de apoiar as mãos na sua cintura, impedindo qualquer movimento empolgado durante as melhores músicas. É um gesto carinhoso, de proteção, mas totalmente inapropriado para o contexto.
6) Aí vem a parte mais difícil: escolher um lugar para ficar. Na pista, claro – porque não tem a menor graça ficar na arquibancada! Vamos às dicas:
a) Evite homens sem camisa, mesmo se – ou principalmente se – forem fortes. Esses caras não são metaleiros de verdade. Metaleiro que é metaleiro não vai à academia; fica em casa, escrevendo poema, tocando guitarra ou lendo a Rock Brigade. Os fortões estão ali para zoar. Bebem de mais, fazem uso de drogas ilícitas e estão decididamente propensos a agitar os braços com amplidão e a se agarrar uns aos outros, de modo duvidoso, ao longo do show.
b) Afaste-se de roqueiros histéricos, aqueles que se entreolham e gritam, incrédulos: “É o Ozzy! É o Ozzy!” Eles vão abrir o “mosh” quando tocarem certos hits, espirrando cotoveladas para tudo quanto é lado; e vão chorar nas baladas. Constrangedor.
c) Não fique perto de mulheres altas. Elas sobem nas costas dos companheiros, atrapalhando a visão de meia plateia que está atrás. E, pior: apoiam-se no seu ombro para isso.
d) Pessoas com câmeras profissionais são uma faca de dois gumes. É bom, porque o cidadão não vai pular além da conta, no intuito de proteger seu mais precioso bem material. Ao mesmo tempo, vai ficar com o braço estendido, fotografando o show o tempo todo, e, se você estiver atrás, vai assistir ao concerto pela lente da câmera dele.
e) Evite cabeludos e cabeludas de cabelos soltos. Nada mais insuportável do que uma cabeleira suada, cheirando a cigarro, invadindo suas narinas a cada pulinho.
f) Prefira homens que acompanham suas namoradas e são um amor. Eles não vão se mexer a não ser para olhar para elas e perguntar se está tudo bem. Você tem espaço e oxigênio de sobra ao lado de um casal comportado.
g) Aproxime-se também de roqueiros vestidos de qualquer outra cor que não seja preto. Ao contrário do que possa parecer, isso indica que o indivíduo entende e gosta tanto de rock, que já superou o clichê de ir a shows como se fosse a um velório. Ele vai saber aproveitar e deixar você aproveitar o concerto, sem problemas.
7) Seja gentil. Ontem, apesar de chegar atrasada a um ginásio absolutamente lotado, acabei conseguindo ocupar a primeira fila da pista comum, encostada na grade, porque alguém sempre me dava o seu lugar. Um rapaz chegou a insistir para que eu subisse nas costas dele para ver melhor. Foi engraçado. Eu dizia: “Não, obrigada, isso atrapalha as outras pessoas.” E ele me cutucava a cada hit, a cada balada: “Nem nessa música? Pensa bem! É ´Paranoid!´”
8) Não tenha complexo de inferioridade. Por mais que você goste de uma banda, há sempre alguém que vai gostar mais do que você e cantar todas, todas as músicas melhor do que você. Isso não quer dizer que você não seja um fã, só significa que você tem um emprego.
9) Depois, sente-se num bar, rouco, e coma e beba e fale do show. Aliás, fale do show por vários dias. É um prazer que merece se estender por bem mais do que duas horas.
E viva o rock e o “Príncipe das Trevas”, em sua versão sexagenária!

(10 de abril de 2011)

sábado, 2 de abril de 2011

O Roubo: Pseudopeça em dois atos

ATO 1

Invadiu a casa, revirou gavetas e roubou uma caixa – pesada, repleta de fotografias. Não deixou lembranças.

ATO 2

Passou a noite folheando a vida alheia. Adormeceu sobre glacê e brigadeiros, na festa do filho que não teve.

(02 de abril de 11.)