quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Helmet

Vestira a camisa do filho adolescente por falta de roupas limpas no próprio armário. A primeira que vira, uma preta, cor clássica, que ainda contribuía para o disfarce da barriga em processo de saliência. Um pouco amarrotada e, conforme notaria mais tarde, com aquela miríada de minúsculos fiapinhos brancos, de roupa lavada muitas vezes na máquina. Mas nada que chamasse tanto a atenção. No trabalho, de fato, ninguém observou a ausência das tradicionais camisas pólo. E ele também não se incomodou, absorto que estava com o absurdo cobrado pelo mecânico por um carro ainda no conserto. Depois de quase uma semana! Teria que ir até lá mais tarde, fazer uma pressão. Já pagara a tal peça caríssima, que estava em falta, que se tinha que buscar na cidade vizinha e não-sei-o-quê... agora o cara que fizesse a parte dele, ora.
Após o serviço, caminhou então para o ponto de ônibus, para esperar o 803. Depois se lembrou de que não iria para casa, mas sim para a oficina mecânica. Teria que pegar o 512, que passava no sentido oposto. Atravessou a rua. Sentou-se. Ficou lendo um anúncio publicitário ao lado da parada do ônibus.
– Você gosta de Helmet?
Ele não escutou.
– Ei, perguntei se você gosta de Helmet...
Era uma voz feminina, à qual ele não prestaria atenção se a garota, sentada ao seu lado, não lhe tivesse tocado o ombro.
– Ãhn!?
– A sua camiseta. É do Helmet. Tão raro encontrar alguém que goste...
Ela era bonita. Estava de saia e tinha as pernas grossas. Ele adorava mulher de perna grossa.
– Pois é. – respondeu, sem jeito, olhando para baixo. Estava mesmo escrito “Helmet.” Depois emendou rapidamente, com medo de ela perder o interesse. – E desde quando você gosta do... de...?
– Nossa, há muito tempo! Meu irmão mais velho é que escutava... eu cresci com isso lá em casa. Você ouviu o último álbum?
Então o Helmet era um músico. Ou um grupo. Era alguma coisa de escutar, não de comer nem de cheirar. Bom, isso já era um começo. Ele se entusiasmou:
– Claro! Muito bom, né? Adorei...
– Sério!? Ah, não sei... sou meio saudosista, sabe? Gosto da primeira fase, mais distorção, a bateria mais seca... sei lá... sabe?
– Sei. – ele falou e ficou olhando para os joelhos dela, sob as mãos, gordinhas. O esmalte: cor-de-rosa escuro. Ela era uma criança. Devia ter a idade do filho. Mas era tão bonitinha...
– Que outras bandas você escuta?
Ah, o Helmet era mesmo uma banda. Ela falara de bateria, distorção... então, devia ser rock. Ele entendia um pouco disso. Gostava de Beatles. Quem não gosta? E já vira em casa um CD do, do Metal... Metalúrgica... é, devia ser isso. Resolveu arriscar:
– Sou muito fã do Meta...
A sorte dele era que a garota não tinha paciência para esperar o fim das frases.
– Metallica? Eu também, cara, adoro! Aliás, toda a vertente trash tem o seu valor, não é, não?
– E não é!? – ele abriu um sorriso largo.
Ela começou a listar nomes de que ele nunca ouvira falar, tudo em inglês, e ele entendeu menos ainda. Ele tentou enxergar alguma coisa pelo decote dela, mas a blusa era muito fechada, não viu muita coisa. Ela gesticulava o tempo todo e falava de um jeito alegre, e ele logo entendeu que ela estava dando mole para ele. Escutou de repente:
– Você foi naquele show?
– Ãhn!? Não... perdi esse...
– Ah, que pena... foi um showzaço!
Ele não tinha a menor ideia do que ela estava falando. Viu o 512 chegar, mas fingiu não ver, resolveu ficar um pouco mais. A menina tinha um cheiro bom. E ainda bem que ele passara desodorante antes de sair do escritório. Só não sabia se podia chamá-la para tomar um chopp, se fingia brincar com o celular e pedia o telefone dela de uma vez, se ia pegar mal levá-la na casa dele. Essa história de estar separado e morar com a mulher era um saco. A ex-mulher, quase-ex, era um estorvo. Mas um divórcio geraria muitas despesas. Além disso, não tinha nada de mais ele levar a namorada em casa, tinha? O filho não se importaria... Pôs a mão no bolso, tirou o celular. Era novo. Ela ia ficar impressionada. Gente jovem gosta dessas coisas de tecnologia.
– Eu tinha um desses. – ela falou.
Ela “tinha”. Isso queria dizer que o dele era ultrapassado. Droga. Ao menos, ela havia mudado de assunto. Nisso ele podia dar uns palpites, quem sabe. Embora quem entendesse dessas geringonças fosse na verdade o filho. O moleque era um gênio na informática. E estava mais alto que ele, fazendo musculação, forte. Aliás... se ele levasse a namorada em casa, era capaz de ela se interessar é pelo Júnior. Ele vira um filme assim uma vez. Que merda. Uma gata daquelas dando em cima dele e, de repente, o próprio filho ia chegar e... Putz, perder para o próprio filho. Que sacanagem. Moleque safado. Tinha puxado à mãe mesmo. E ele ali, vestindo a camiseta daquele...
– Você tá tão quieto... Desculpa. Eu tô te incomodando, né? Eu falo de mais. Minhas amigas sempre me dizem que. Olha, meu ônibus... – ela fez sinal. – Tchau!
Entrou no ônibus.
– E vida longa ao rock! – gritou da janela perto do trocador.
Ele sorriu um sorriso triste e fez um aceno.
E agora a porcaria do 512 ia levar uma hora para aparecer. A oficina estaria fechada quando ele chegasse. Melhor era ir para a casa.
Atravessou a rua.
Sentiu que alguém o olhava. Era uma garota.
– Você gosta de Helmet?
Inacreditável.
– A sua camisa... Você gosta mesmo dessa banda?
Ele suspirou. Pensou duas vezes e, na terceira, respondeu:
– Não, moça. Eu não sei do que você está falando. Esta camiseta é... é... da firma em que eu trabalho. A Helmet. A gente faz maionese.
E deu sinal para o 803, que se aproximava do ponto de ônibus.

(12 de janeiro de 2012)