domingo, 15 de setembro de 2013

O ponto de vista dos caleidoscópios

A primeira vez que ouvi a expressão foi a caminho do aeroporto de Lyon, anos atrás. Era uma francesa muito bonita, com ares de alemã e o charmoso nome de Cloë (com o trema de que ela se orgulhava tanto) que me contava que o namorado a havia “laissé tomber”. Primeiro, fiquei estupefata: como alguém poderia terminar com uma moça como ela, que, ainda por cima, era extremamente gentil? Em seguida, fiquei pensando nesse jeito de se referir ao fato: “laisser tomber” quer dizer, literalmente, “deixar cair”. Recentemente, conheci um sinônimo: “larguer”, idêntico ao empregado em português: “ele/ela me largou.” Muito imagéticas as expressões. Por que não é, no fim, isso mesmo que acontece? Como se, escalando uma montanha muito íngreme, alguém soltasse a sua mão, você sentisse subitamente aquela ausência do peso que o sustentava, e passasse à leveza do vazio, ao desequilíbrio e, claro, à queda? “Ele me deixou cair” é muito mais emblemático do que o “ele terminou comigo” do português, porque, a princípio, a ideia é dizer que o cidadão “terminou um relacionamento comigo”, ou seja, é o relacionamento o objeto direto do término. Obviamente, no entanto, se o objetivo for a dramaticidade, dizer que alguém terminou com outra pessoa pode significar que a destruiu, destroçou, reduziu a pó. Gosto de pensar também em como os franceses se referem ao ato de se apaixonar: “tomber amoureux/amourese”: cair apaixonado. É semelhante ao inglês, que, neste caso, consegue ser ainda mais sugestivo: “fall in love” é simplesmente “cair no amor”. Como se este fosse um buraco, um precipício, um fosso repleto de areia movediça, onde se perde aos poucos o domínio dos movimentos, o oxigênio, e se pode cada vez mais afundar. Pois se, no amor, do começo ao fim, tudo é sempre uma questão de queda, gosto de pensar no verbo correspondente em espanhol: “caerse” é algo que se faz a si mesmo, sendo possível, assim, ao menos, dosar o tamanho do tombo. Teoricamente, é claro. *** Pensei nesse assunto enquanto relia “Sem Ana, blues”, um conto do Caio Fernando Abreu, autor de quem gostei muito no final da adolescência. O texto é uma das melhores descrições de fossa pós-término que já vi, competindo com canções como “Eu te amo”, do Chico, “Jumping my shadow”, do Skyclad, “Atrás da porta”, na voz da Elis Regina. Como, hoje em dia, nesses quesitos, eu prefira o bom humor de uma Clarice Falcão e músicas como “Uma canção sobre o amor”, o texto me serviu para refletir sobre outra forma de encontro amoroso: aquele com o nosso idioma materno. Tenho lido a maior parte do tempo em francês, escrito em inglês para congressos, e de repente o sabor de um conto literário em português caiu como uma luva para este domingo em que, depois de dias de chuva, o sol deu as caras num céu lavado e muito azul. Depois ele também foi embora, “nos largou”, mas aí já estávamos nos divertindo com palhaços, carrosséis e acrobatas, no Museu das Artes de Feira, que só abre em datas especiais – como hoje. (15 de setembro de 2013.)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

So let it be rock

Foi um amigo quem me deu o ingresso para o show de Madball, Downset e Biohazard, umas semanas atrás. Pulei muito nos dois primeiros, mas, no terceiro, para fugir dos moshes violentos do público – tinha gente até com protetor bucal, para você ter uma ideia -, fui me sentar numa grade de proteção, de onde tinha uma visão superprivilegiada e próxima do palco. Foi aí que eu bocejei. Eu sei, era um concerto de rock, ninguém esperava aquilo de mim, mas foi mais forte que eu, desculpe. Quando olhei para a plateia, um rapaz me encarava, estarrecido. Ele agitou a cabeça e o indicador, num gesto negativo, depois moveu os braços para cima, ensinuando que eu precisava me animar e curtir o show. Ele, claro, tinha toda a razão, e passou o resto da apresentação conferindo, vez por outra, se eu estava mesmo “agitando”. Acabei me entusiasmando tanto que, quando me dei conta, estava sentada em cima da caixa de som, praticamente sobre o palco, e o guitarrista solava olhando diretamente para mim – cena que se repetiu algumas vezes, até ele pegar a minha mão e beijá-la docemente, como um cavalheiro. Quando o concerto acabou, pulei no palco, acompanhei um menino de uns doze anos que, tímido, tentava se aproximar do vocalista, conversei com ele, ganhei duas palhetas e um abraço apertado do baixista que, vim a saber, é um conhecido ator pornô. Tenho as fotos para provar. E este foi só o começo de uma sequência sensacional de shows de rock, que povoou agosto, o mês do meu aniversário no meu ano parisiense. Exatamente no dia 23, minha data querida, Belle and Sebastian (ah, minha adolescência...), Tomahawk (rever o Mike Patton, sempre um prazer à parte!) e Franz Ferdinand se apresentaram no Rock en Seine, junto a atrações ditas menores, mais ainda muito empolgantes, como Johnny Marr, o ex-guitarrista dos Smiths, que nos brindou com canções dos velhos tempos, como a adorável “There´s a light that never goes out”. No dia 25, foi a vez do System of a Down, e de uma apresentação de pura energia, em que os caras emendavam uma música à outra e só dava tempo de se sentir alegre. Quando estive em Londres, conheci uma inglesa muito divertida, com uma tatuagem muito bem feita de um alien no ombro, que me acompanhou aos pubs da cidade, e que me disse ser roqueira por saber que o rock nunca nos deixa para trás, nunca nos abandona. Tenho a mesma sensação. É uma das minhas melhores companhias. E é como se ele se presentificasse nos concertos, verdadeiras experiências epifânicas às vezes. Hoje é a vez dos Deftones, banda que ouvia muito pouco, mas a que decidi dar uma segunda chance graças aos comentários elogiosos da Anneke. Ela, outro dia, postou uma foto tirada do meio da plateia, em um show deles a que esteve presente, e escreveu: “Incrííííivel Deftones!!!”. Bom sinal, alors! (06 de setembro de 2013)