sábado, 26 de outubro de 2013

Praga e o Lobo Mau

Um dos ensinamentos de infância que a gente desconstrói ao longo da vida é aquele do “não conversar com estranhos”, porque, passada a fase em que seus amigos são representados pelos primos e pelos filhos dos amigos dos seus pais, é impreterível falar com desconhecidos para que eles passem a ser conhecidos e, quem sabe, tornem-se amigos seus. Quando se viaja, essa lição, de que também era adepta a mãe da Chapeuzinho Vermelho, é ainda mais posta em prova. Em um território diferente, é preciso dar um voto de confiança aos desconhecidos. Foi por isso que, quase sete anos atrás, comecei a participar do Couchsurfing, que é uma comunidade de viajantes que ajudam viajantes: oferecem um café, um almoço, um passeio pela cidade e até mesmo um canto para dormir, gratuitamente. Ao longo desse tempo, conheci muita gente interessante, fiz amigos, descobri lugares incríveis que só um nativo poderia apresentar, e vivi até uma relação amorosa duradoura – que dura até hoje, embora em outro formato. Mas, claro, às vezes a gente tem que lidar com situações complicadas. Foi o que aconteceu na minha viagem a Praga. Assim que cheguei à casa do meu “host”, não tive como não me sentir desconfortável: pilhas e pilhas – de louça a ser lavada, de roupa suja, de sapatos – decoravam o lugar. Ele explicou que não tinha máquina de lavar e que, por isso, não teria lençóis limpos para me oferecer, e que eu teria que dormir na cama (desarrumada) em que a filha dele, de cinco anos, dorme quando vai visitá-lo. Em seguida, comeu o pedaço de um pão com mel que a menina havia deixado em cima da mesa, quando saíram, pela manhã. Tudo bem, eu pensei, não sou nenhum fiscal sanitário, posso aguentar um dia ou dois assim, vou passar a maior parte do tempo fora de casa mesmo. Então ele foi tomar um banho. E foi aí que comecei de fato a me sentir desconfortável: quando ele saiu do chuveiro com uma toalha vermelha amarrada na cintura; nothing else. É a casa dele, ele tem o direito, pensei, enquanto ia o mais depressa possível para outro cômodo, justamente o do chuveiro. A porta não trancava. Tomei um banho – também desconfortável – e voltei para a sala (que também era o quarto), onde ele continuava com o modelito “toalha-vermelha-amarrada-na-cintura”. Só que agora ele enrolava um cigarro de maconha (que é praticamente legalizada na República Tcheca) e tomava alguns tragos de vodca. Então começou a falar que terminara um relacionamento há pouco tempo, que estava muito feliz com a minha companhia, quis saber se eu tinha namorado, e deu início a uma interminável referência a mulheres. Se eu elogiava o guarda-roupa, ele dizia que queria fazer uma sessão de fotos ali, mas que modelos são tão caras... Se eu começava a falar de um filme, ele falava da atriz principal. Fomos a um bar, ele falava da garçonete. Depois, em outro, ele convidou um colega para se sentar conosco, e os dois passaram em falar em tcheco – sem legenda! (o que me impossibilitou de saber se o assunto continuava sendo mulher). Eram cerca de duas da manhã, eu estava cansada, ele estava embriagado, nós teríamos que caminhar cerca de cinquenta minutos de uma trajeto inóspito até a casa dele, e, claro, eu desconfiava das intenções do sujeito. Foi então que me virei e olhei para a mesa atrás de mim: dessas mesas baixas, como de centro de sala de estar, com um sofazinho ao redor, cheia do que se via serem jovens amigos. Um deles me sorriu. Foi a deixa de que precisava. Agarrei minha taça de vinho branco, dei meia-volta e disse: “Vocês falam inglês? Então posso me sentar com vocês?” Eles eram todos muito simpáticos; dois haviam morado no Brasil, e um deles havia sido jogador do América de Natal! Foi justamente a este que me reportei, quando o meu “host”, dada a partida do colega tcheco, viera se sentar conosco e começara a falar alto e a entoar canções que desconheço também num tom de voz acima do desejável. O pessoal começou a se preocupar com a minha integridade, e eu disse ao ex-jogador do América: “se houver algum problema hoje e eu precisar de outro lugar para ficar amanhã, posso entrar em contato com você?” Ele respondeu: “mas por que esperar haver um problema hoje? Há um quarto absolutamente vazio na minha casa. Nós buscamos suas coisas agora e você fica lá.” De fato, ele tinha um quarto vazio, uma colega de apartamento supergentil, que fazia brownies, e se revelou a melhor companhia possível para conhecer Praga. Meu “host” pareceu um pouco desapontado quando tomamos um táxi, fomos até a casa dele resgatar minha bagagem, mas estava muito bêbado para reagir, coitado. E foi assim que fui salva, por adoráveis desconhecidos, das terríveis garras do Lobo-Mau-de-toalha-vermelha-amarrada-na-cintura. (26 de outubro de 2013)

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Prêmio Nobel

As águas, o céu, os olhos. Tudo era azul na Escandinávia. Da janela do trem, os cervos pastavam e, pelos parques, atravessavam o nosso caminho entre saltos. Os tetos, pinheiros e nuvens atiravam-se inadvertidos na profundidade dos lagos, e se espe/alhavam, liquidos, como os sóis de Munch. A sombria arte dinamarquesa e toda a inquietude do parque Vigeland chocavam-se com a claridade fria que brilhava sobre o outono. Ah, Estocolmo, Växjö, Copenhagen, Oslo!.. Se não fosse o preço da cerveja, eu me mudava praí! (03 de outubro de 2013)