segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Algumas horas a mais no deserto do Atacama

Portanto, fui ao Chile, a Santiago, Valparaíso e ao Atacama, no deserto. Toda a perfeição dos grandes monumentos europeus, os palácios, as pontes, as torres, se desmantelam diante da escultura despretensiosa do tempo e seu toque paciente sobre a natureza. Vulcões, gêiseres, piscinas salobras, salares, montanhas cristalinas, grutas, formações que fazem pensar nas crateras lunares... O deserto é de uma beleza crua, cruel às vezes, que fere com o calor seco e o vento forte das grandes altitudes.

No último dia em São Pedro de Atacama, decidimos visitar o Salar de Tara, quase na fronteira com a Bolívia. Compramos o passeio em uma das inúmeras agências que se acotovelam nas ruas dessa peculiar vila de barro. Como o trajeto era longo, deveríamos partir às oito da manhã e só voltar ao hotel no final da tarde.

Começou errado quando a campainha tocou, uma hora antes, entoando a mais clichê das canções natalinas. Fomos chamados no quarto, e eu, descabelada e de pijamas, fui à porta explicar que havíamos combinado outro horário com a moça da agência, Maria. O guia se desculpou e falou que voltaria às oito, que nos arrumássemos com calma.

Voltou às 7h30. O carro já trazia os outros passageiros, dois casais de franceses. Quando nos viram, um dos homens deu início ao motim. Disse que o automóvel era pequeno para todas aquelas pessoas, que ele era alto demais para se encolher durante tantas horas, e exigiu que trocassem o meio de transporte. O guia ligou para a agência, de onde ouviu que ou teríamos que viajar apenas com o motorista, sem o guia, ou cancelaríamos o passeio.

Minutos depois, seguíamos apenas com o Ruben, um senhor de cabelos brancos que, em baixa temporada, dirige vans escolares na capital chilena. Como nossos companheiros de viagem não fizeram a menor questão de serem simpáticos conosco – embora meu namorado e eu nos comunicássemos na mesma língua que eles –, sentei-me ao lado do motorista, pensando em, pelo menos, praticar meu espanhol enferrujado. Ao mesmo tempo, não podíamos deixar de ouvir a conversa-ostentação que emanava dos bancos traseiros, onde se discutiam destinos caríssimos de viagem e a qualidade surpreeendente do pinot noir chileno.

Em alguns momentos, porém, a paisagem nos ensurdecia. À medida que avançávamos em altitude, nos víamos cercados por montanhas ensolaradas – apesar da temperatura, que, pela manhã, beirava zero grau –, llamas, vicunhas, flamingos e até uma raposa. Ruben nos disse que por ali também rondavam pumas, e ficamos ansiosos para vê-los, protegidos que estávamos no interior do veículo, como em um safári.

Voltávamos do almoço – as melhores empanadas chilenas que experimentamos em toda a viagem, preparadas pela esposa do motorista –, no momento em que vi seu olhar desesperado diante do painel do carro, quando o ar condicionado parou de funcionar, seguido do próprio automóvel. Estávamos, acreditem, sem gasolina no meio do deserto.

Tive pena de seu olhar desolado, tentando em vão localizar o sinal do celular em busca de socorro. “Qué haremos?”, perguntei. Ele, então, me olhou com seriedade e disse: “Tienes un lápiz?” Respondi que não, mas que meu namorado teria. “Entonces dile que lo vamos a necesitar”, afirmou, como se desse lápis dependessem nossas vidas. Escreveu em um papelzinho alguns números de telefone e me avisou que caminharia até a estrada, que estava a cerca de uma hora de distância a pé, e pediria a algum motorista que telefonasse para a agência.

Ficamos dentro do carro, ainda achando tudo aquilo muito engraçado, tirando fotos que, posteriormente, dizíamos, seriam encontradas por aqueles que contariam nossa história: “Eram jovens, estavam felizes, apaixonados... Tinham tantos planos...” Os franceses (os outros), do lado de fora, tentavam, com espelhos e acenos, fazer sinal para os ônibus que víamos passar como formigas na estrada distante.

Eram duas da tarde quando o carro parou, no meio do nada, onde não havia água, comida, banheiro. O sol era insuportavelmente forte e víamos o ar tremer, como numa miragem. O motorista retornou algum tempo depois, vomitando, exausto pelo esforço e pela altitude, de 6 mil metros. Tinha encontrado uma van antes de chegar à estrada. Estava agora confiante, dizendo que iam buscar-nos “a tiro”.

Horas depois, passamos a desconfiar da validade dessa expressão. Só se fosse a tiro de estilingue! Sabíamos que estávamos a uma hora e meia de São Pedro de Atacama e que seríamos obrigados a esperar um bocado até a chegada do resgate, mas, quando a tarde foi terminando, começamos a nos inquietar. Meu namorado e eu pensamos em caminhar até a estrada, mas Ruben nos desmotivou, dizendo que, no deserto, perdemos a noção da distância. Além disso, o vento era tão forte nesse momento que tínhamos dificuldade para respirar.

A mudança de temperatura era algo que nos assustava. Pela madrugada, seria difícil enfrentar os 15 graus negativos do deserto. Também pensamos nos pumas, que já não queríamos ver, por razões óbvias. Tudo isso fez com que tomássemos a decisão, por volta de 18h, de empurrar o carro até a estrada – ou, ao menos, até um ponto de relativo destaque, de onde pudessem avistar nossos sinais.

A tarefa era árdua, considerando os altos e baixos do terreno. Em um dado instante, o veículo parou em uma subida, e já não conseguíamos levá-lo adiante. Era desesperador. Ao redor, o cenário era de sonho, mas a situação era um pesadelo. Por sorte, entretanto, um dos franceses insuportáveis teve a ideia de ligar o carro, considerando que o resto da gasolina havia se deslocado no tanque. Funcionou. Foi uma alegria ver o automóvel se movendo, rumo à estrada. A nós, mortais, entretanto, ainda havia uma longa caminhada a fazer.

Alguns ficaram para trás. Nós seguimos, devagar, buscando forças que vencessem o ar rarefeito, o calor, a velocidade do vento. E, quando nos aproximávamos da rodovia, vimos um jipe conduzido por um homem com fortes traços indígenas, um grande chapéu sobre os cabelos compridos. Fiz sinal, sem esperança. Não acreditei quando ele colocou a cabeça para fora da janela e disse: “Vámonos?” Era o nosso salvador! Trouxe água, comida e, o mais importante, gasolina.

Os franceses voltaram com Ruben. Nós preferimos o retorno com Nino, que escolheu uma trilha sonora relaxante (de Ludovico Einaudi) e nos disse que, tendo nascido e passado sua vida inteira ali, sabia que o deserto nos ensina o quanto somos fracos e fortes. Teríamos a sorte, acrescentou, de voltar a São Pedro no momento mais bonito do dia, o pôr-do-sol. Éramos uns afortunados.

Tendo empurrado um carro pelo deserto, depois de cinco horas de espera, ao lado de dois casais de burgueses metidos a MacGyver, não sei se usaria esse adjetivo. Mas o sol que se apagava, docemente, pelas montanhas chilenas era mesmo de uma beleza rara. E meu namorado e eu ganhamos uma máxima, que repetimos, em tom de brincadeira: nós sobrevivemos ao deserto; não há nada que não possamos vencer.

(06 de março de 2016.)