tag:blogger.com,1999:blog-25955562765762566752024-03-13T12:29:46.481-07:00FragellytéeO blog é ideal para quem gosta de manhãs chuvosas, canções do Anathema e filmes do Gus Van Sant. Ou nem tanto. Talvez seja adequado mesmo aos que ouvem Metallica, leem Henry Miller e adoram Tarantino e Monty Phyton. Eu definitivamente não sei. Que seja um suspiro, então.Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.comBlogger119125tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-33893722788777732192018-01-16T11:21:00.000-08:002018-01-16T11:25:06.401-08:00JanelasEra o desfecho de um relacionamento nocivo, que começou no Carnaval e terminou na Oktoberfest. Fez mal, mas com o atenuante do curto espaço de tempo, da distância e do medo que perdi do Rio de Janeiro, estado maravilhoso. Naquela madrugada, porém, estávamos em Blumenau. Fui tomar um copo d’água e parei para olhar a rua pela janela da cozinha: sabia que, na manhã seguinte, em algumas horas, o sol adentraria a moldura, iluminando o dia em que aquela história acabaria para sempre. Cada um de nós tomaria um avião diferente, para uma cidade distinta, e não nos veríamos nunca mais. Era uma esperança tão forte que já se tornara certeza. E assim foi: a luz se fez com o fim.<br><br>
Em outra vez, era verão e eu estava em Florença, com duas amigas queridas. Depois de uma semana de muito museu e gelato, nós tomaríamos o trem para Roma, um caminho coberto de girassóis, e voltaríamos para Paris. Havia alguém esperando por mim, enviando mensagens de amor bêbado às três horas da manhã, sentindo minha falta e me fazendo doer inteira de saudade – apesar da paisagem, da companhia e do campari. A janela trazia paredes cor-de-terra e vozes que, anos depois, eu associaria aos personagens de Elena Ferrante. O sol refletia, quente, o desejo.<br><br>
Hoje, a janela traz, em primeiríssimo plano, as flores do parapeito, que tremem com o vento de outono. Plongée – e vejo, pela claraboia alheia, o cotidiano dos vizinhos e, às vezes, o gato que escapa para a cordilheira do telhado. Embaixo, a rua se alonga até o fim do quadro, vazia. É invadida, vez ou outra, por crianças que saltitam para a escola, de manhã, e pais que se arrastam, sonâmbulos, ao lado delas. A moldura também guarda, ao longe, um prédio de vidraças coloridas e a bonita torre da mairie de Montreuil, com seu relógio que marca o tempo de uma escolha certa. Hoje, a janela da cozinha traz o presente e o céu aberto. <br>
(10 nov. 2017)Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-27852986028190329242017-02-06T08:25:00.001-08:002017-02-06T08:34:59.489-08:00Algumas horas a mais no deserto do Atacama<p> Portanto, fui ao Chile, a Santiago, Valparaíso e ao Atacama, no deserto. Toda a perfeição dos grandes monumentos europeus, os palácios, as pontes, as torres, se desmantelam diante da escultura despretensiosa do tempo e seu toque paciente sobre a natureza. Vulcões, gêiseres, piscinas salobras, salares, montanhas cristalinas, grutas, formações que fazem pensar nas crateras lunares... O deserto é de uma beleza crua, cruel às vezes, que fere com o calor seco e o vento forte das grandes altitudes.<br>
<p>No último dia em São Pedro de Atacama, decidimos visitar o Salar de Tara, quase na fronteira com a Bolívia. Compramos o passeio em uma das inúmeras agências que se acotovelam nas ruas dessa peculiar vila de barro. Como o trajeto era longo, deveríamos partir às oito da manhã e só voltar ao hotel no final da tarde.<br>
<p>Começou errado quando a campainha tocou, uma hora antes, entoando a mais clichê das canções natalinas. Fomos chamados no quarto, e eu, descabelada e de pijamas, fui à porta explicar que havíamos combinado outro horário com a moça da agência, Maria. O guia se desculpou e falou que voltaria às oito, que nos arrumássemos com calma.<br>
<p>Voltou às 7h30. O carro já trazia os outros passageiros, dois casais de franceses. Quando nos viram, um dos homens deu início ao motim. Disse que o automóvel era pequeno para todas aquelas pessoas, que ele era alto demais para se encolher durante tantas horas, e exigiu que trocassem o meio de transporte. O guia ligou para a agência, de onde ouviu que ou teríamos que viajar apenas com o motorista, sem o guia, ou cancelaríamos o passeio.<br>
<p>Minutos depois, seguíamos apenas com o Ruben, um senhor de cabelos brancos que, em baixa temporada, dirige vans escolares na capital chilena. Como nossos companheiros de viagem não fizeram a menor questão de serem simpáticos conosco – embora meu namorado e eu nos comunicássemos na mesma língua que eles –, sentei-me ao lado do motorista, pensando em, pelo menos, praticar meu espanhol enferrujado. Ao mesmo tempo, não podíamos deixar de ouvir a conversa-ostentação que emanava dos bancos traseiros, onde se discutiam destinos caríssimos de viagem e a qualidade surpreeendente do pinot noir chileno.<br>
<p>Em alguns momentos, porém, a paisagem nos ensurdecia. À medida que avançávamos em altitude, nos víamos cercados por montanhas ensolaradas – apesar da temperatura, que, pela manhã, beirava zero grau –, llamas, vicunhas, flamingos e até uma raposa. Ruben nos disse que por ali também rondavam pumas, e ficamos ansiosos para vê-los, protegidos que estávamos no interior do veículo, como em um safári.
<p>Voltávamos do almoço – as melhores empanadas chilenas que experimentamos em toda a viagem, preparadas pela esposa do motorista –, no momento em que vi seu olhar desesperado diante do painel do carro, quando o ar condicionado parou de funcionar, seguido do próprio automóvel. Estávamos, acreditem, sem gasolina no meio do deserto.<br>
<p>Tive pena de seu olhar desolado, tentando em vão localizar o sinal do celular em busca de socorro. “Qué haremos?”, perguntei. Ele, então, me olhou com seriedade e disse: “Tienes un lápiz?” Respondi que não, mas que meu namorado teria. “Entonces dile que lo vamos a necesitar”, afirmou, como se desse lápis dependessem nossas vidas. Escreveu em um papelzinho alguns números de telefone e me avisou que caminharia até a estrada, que estava a cerca de uma hora de distância a pé, e pediria a algum motorista que telefonasse para a agência.<br>
<p>Ficamos dentro do carro, ainda achando tudo aquilo muito engraçado, tirando fotos que, posteriormente, dizíamos, seriam encontradas por aqueles que contariam nossa história: “Eram jovens, estavam felizes, apaixonados... Tinham tantos planos...” Os franceses (os outros), do lado de fora, tentavam, com espelhos e acenos, fazer sinal para os ônibus que víamos passar como formigas na estrada distante.<br>
<p>Eram duas da tarde quando o carro parou, no meio do nada, onde não havia água, comida, banheiro. O sol era insuportavelmente forte e víamos o ar tremer, como numa miragem. O motorista retornou algum tempo depois, vomitando, exausto pelo esforço e pela altitude, de 6 mil metros. Tinha encontrado uma van antes de chegar à estrada. Estava agora confiante, dizendo que iam buscar-nos “a tiro”.<br>
<img /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhP57StwqiDYWDjlE3vzbjVkPBThY452C7bi2HuY7tXzVKoJp-L_mdeCE3FHEQMsljI0o4ykAsd23KosVcMn69n_Fw8xMa9lVX4bYmON1Yf4l2yTXFAjDEfzxT-dzq7s96e6eG6oKmrnJ8/s1600/DSC04004.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhP57StwqiDYWDjlE3vzbjVkPBThY452C7bi2HuY7tXzVKoJp-L_mdeCE3FHEQMsljI0o4ykAsd23KosVcMn69n_Fw8xMa9lVX4bYmON1Yf4l2yTXFAjDEfzxT-dzq7s96e6eG6oKmrnJ8/s320/DSC04004.JPG" width="320" height="213" /></a></div>
<p>Horas depois, passamos a desconfiar da validade dessa expressão. Só se fosse a tiro de estilingue! Sabíamos que estávamos a uma hora e meia de São Pedro de Atacama e que seríamos obrigados a esperar um bocado até a chegada do resgate, mas, quando a tarde foi terminando, começamos a nos inquietar. Meu namorado e eu pensamos em caminhar até a estrada, mas Ruben nos desmotivou, dizendo que, no deserto, perdemos a noção da distância. Além disso, o vento era tão forte nesse momento que tínhamos dificuldade para respirar.<br>
<p>A mudança de temperatura era algo que nos assustava. Pela madrugada, seria difícil enfrentar os 15 graus negativos do deserto. Também pensamos nos pumas, que já não queríamos ver, por razões óbvias. Tudo isso fez com que tomássemos a decisão, por volta de 18h, de empurrar o carro até a estrada – ou, ao menos, até um ponto de relativo destaque, de onde pudessem avistar nossos sinais.<br>
<p>A tarefa era árdua, considerando os altos e baixos do terreno. Em um dado instante, o veículo parou em uma subida, e já não conseguíamos levá-lo adiante. Era desesperador. Ao redor, o cenário era de sonho, mas a situação era um pesadelo. Por sorte, entretanto, um dos franceses insuportáveis teve a ideia de ligar o carro, considerando que o resto da gasolina havia se deslocado no tanque. Funcionou. Foi uma alegria ver o automóvel se movendo, rumo à estrada. A nós, mortais, entretanto, ainda havia uma longa caminhada a fazer.<br>
<p>Alguns ficaram para trás. Nós seguimos, devagar, buscando forças que vencessem o ar rarefeito, o calor, a velocidade do vento. E, quando nos aproximávamos da rodovia, vimos um jipe conduzido por um homem com fortes traços indígenas, um grande chapéu sobre os cabelos compridos. Fiz sinal, sem esperança. Não acreditei quando ele colocou a cabeça para fora da janela e disse: “Vámonos?” Era o nosso salvador! Trouxe água, comida e, o mais importante, gasolina.<br>
<p>Os franceses voltaram com Ruben. Nós preferimos o retorno com Nino, que escolheu uma trilha sonora relaxante (de Ludovico Einaudi) e nos disse que, tendo nascido e passado sua vida inteira ali, sabia que o deserto nos ensina o quanto somos fracos e fortes. Teríamos a sorte, acrescentou, de voltar a São Pedro no momento mais bonito do dia, o pôr-do-sol. Éramos uns afortunados.<br>
<p>Tendo empurrado um carro pelo deserto, depois de cinco horas de espera, ao lado de dois casais de burgueses metidos a MacGyver, não sei se usaria esse adjetivo. Mas o sol que se apagava, docemente, pelas montanhas chilenas era mesmo de uma beleza rara. E meu namorado e eu ganhamos uma máxima, que repetimos, em tom de brincadeira: nós sobrevivemos ao deserto; não há nada que não possamos vencer.<br><br>
(06 de março de 2016.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-303614795282831022016-10-22T02:48:00.001-07:002016-10-22T02:55:08.099-07:00O cabelo e a políticaNão existe um dicionário de imagens, como já problematizou o diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Segundo ele, essa é uma das dificuldades de se fazer cinema: os múltiplos sentidos que pode portar um só fotograma. Ainda assim, a sociedade parece estar de acordo em relação a certos sentidos atribuídos a determinadas imagens.<br><br>
Hoje, mais do que nunca, a rapidez na transmissão de dados – pela televisão, a internet, os celulares e por redes sociais como o Snapshat – reforça dois clichês há muito disseminados em nosso cotidiano: o de que “uma imagem vale mais do que mil palavras” e a de “a primeira impressão é a que fica”. Tais máximas, evidentemente, vêm sendo levadas em conta pelos políticos, que já não saem de casa sem o seu personal stlylist a tiracolo.
Essa intensa circulação de informações, em grande parte iconográficas, vai ao encontro de uma situação de crise, que está atada a um intenso descrédito político, em diferentes partes do mundo. Tomando-se como exemplo o caso do Brasil e o recente resultado do primeiro turno nas eleições municipais, vê-se destacar o estereótipo do homem bem-sucedido, de preferência, um self-made man, que hoje discursa para as multidões do alto de sua cobertura em Higienópolis, com piscina e heliporto, conquistando o eleitor comum pelo devaneio ingênuo de que este possa um dia se tornar como ele: em poucas letras, rico.<br><br>
O político vencedor do primeiro turno das eleições de 2016 é a imagem da riqueza. Ela está expressa não apenas na italianidade de seu terno e gravata, mas naquilo que o acompanha até mesmo nas campanhas pelos subúrbios da cidade, quando ele finge ser um homem simples, que come pastel de queijo e toma garapa. A riqueza está nos seus cabelos. O que existe de visivelmente similar entre o atual presidente da República e candidatos como João Dória, em São Paulo, e Alexandre Kalil, em Belo Horizonte, é – além de seus interesses pessoais e partidários, é claro – o estilo de suas madeixas. Há, em todos eles, uma dose de calvície que exala “experiência de vida”, sendo, ao mesmo tempo, comedida, dessas que não deixa entrever a antipatia gerada pela careca de um José Serra, por exemplo. Concomitante, ao fundo, há uma cabeleira penteada para trás, domável, que traz à memória o inesquecível Chiquinho Scarpa, o playboy dos playboys. Até o cabelo das esposas dos estadistas se assemelha: loiro, é óbvio, a cor do ouro, a cor do sonho do homem comum, que vai às urnas por obrigação, com medo de se atrasar para o futebol ou a “Dança dos famosos”, no Faustão.<br><br>
Bons eram os tempos pré-derrocada petista, em que havia um desejo tão maior de liberdade e igualdade que ele não podia se curvar à tesoura e à escova e escorria pelas faces, enchia as bochechas e o contorno da boca, virava barba e bigode. Cristo foi um dos primeiros grandes políticos da História. E jamais o representaram sem barba e sem a audácia de seus cabelos compridos.<br><br>
(09 outubro 2016.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-57513880202804778692015-04-21T05:21:00.000-07:002015-04-21T05:26:54.988-07:00A Patrulha da NoiteVoltava do aniversário de um amigo querido, na Savassi. Cansada e sem humor para sair, pus um vestido preto para dar um pouco de <I>glamour</I> e sinceridade à minha noite, que acabou sendo divertida. Na volta, uma amiga me deixou na Praça 7. Querendo economizar o dinheiro do táxi, pensava em pegar o 5401, última linha capaz de me deixar perto de casa, após as tortuosas alterações causadas pelo Move no sistema público de transporte em Beagá. <BR> Caminhei até o ponto de ônibus da São Paulo, próximo às lojas Americanas, desviando-me de ratos que mais pareciam as capivaras da Lagoa da Pampulha. A poucos minutos da meia-noite, pouca gente se aventurava pelas ruas, além de um casal de bêbados e um rapaz de camisa azul. Ao fundo, em um castelo de caixas de papelão, os moradores de rua, aparentemente, dormiam – bocas ao ar. Perguntei ao rapaz-de-camisa-azul que ônibus ele esperava. “O 5201”, ele disse, “mas acho que já não passa mais. Vou ter que pegar o 5401.” Quase chorei de emoção. No mostrador – outra novidade trazida pelo Move –, dizia-se faltarem 15 minutos para a chegada do “nosso” (!) ônibus. <BR> Eis que surge, no entanto, para a satisfação de meu colega de espera, o maldito 5201. “Que sorte!”, ele falou, “deve ser o último.” E se foi na penumbra. Atrás dele, um homem de preto fazia sinal para o ônibus que vinha em seguida. Dentro de mim, uma voz nada polida falou: “Fudeu!”. <BR> Foi então que o tal homem-de-preto me perguntou: “Que ônibus você vai pegar?” Ao ouvir minha resposta, ele transformou o sinal que fazia, indicando ao motorista que seguisse em frente sem ele. “Vou ficar com você senão você vai ser assaltada”, sentenciou. “Minha irmã foi assaltada neste mesmo ponto há uma semana. Se eu for embora agora, não vou dormir tranquilo, deixando você aqui.” <BR> Agradeci milhares de vezes, um pouco ressabiada com aquela gentileza. Algo, porém, fazia-me confiar naquele estranho – que podia, na verdade, ser um bandido muito pior do que aquele assaltante que ele criava com as palavras: o homem-de-preto se parecia com dois primos meus, irmãos, que morreram há mais de uma década, quando tinham menos de quarenta anos. Todos eles – os três – compartilhavam a postura natural às pessoas magras, o modo de se expressarem, repetitivos, e uma certa bondade heroica difícil de explicar, mas fácil de ser percebida. <BR> Ele insistia em afirmar que não precisava agradecer, mas que deveria, sim, tomar mais cuidado. “Com todo o respeito, moça, mas você precisa rever seus horários. É muito perigoso. Pede para o seu pai, para o seu namorado, para qualquer pessoa vir te buscar, mas não fica sozinha à noite assim.” Tentei explicar que era um caso atípico, que, quando necessário, eu voltava para casa de táxi... Mas ele só sabia repetir a bronca e enfatizar o risco que eu corria estando à mercê da noite e de seus predadores. <BR> Outros dois homens chegaram: um senhor de óculos e camisa pólo verde-clara; um jovem cabeludo, que trabalhava no SUS e dizia trazer uma faca na mochila, para se proteger dos “noia”. Ficaram os três analisando o meu caso – e todos concordavam ser de uma irresponsabilidade tremenda estar sozinha àquela hora na rua. Em seguida, passaram a listar os problemas do país e a narrar casos de assalto de que haviam sido vítimas – ou quase, segundo o jovem-do-facão. <BR> Fui sentindo um medo tão grande de tudo: mais do que por mim, um medo alheio, por aquelas pessoas que não estavam ali por acaso, que precisavam correr riscos diários, voltar do trabalho à meia-noite em todas as sexta-feira, porque disso dependia o sustento delas e de suas famílias. Falei ao homem-de-preto-que-se-parecia-com-meus-primos: “Que medo... do mundo!” E ele me disse, inesquecivelmente: “Não pode ter medo do mundo, não, moça... senão você não vive... senão você nem pinta a unha para sair de casa”, completou, olhando para o esmalte vermelho na minha mão. <BR> O 5401 finalmente chegou e todos entramos nele, como um grupo que éramos, que havíamos formado, por acaso, aquela noite. Também, ninguém queria ficar sozinho naquele ponto sinistro. <BR> Já dentro do ônibus, vi que meu salvador estava com problemas para atravessar a roleta. Corri até lá, julgando que precisasse de dinheiro. Não: a roleta só travara. Pouco depois, ele já se preparava para descer. Repetiu o conselho. Agradeci. Perguntei o seu nome: “Robson. E o seu? Qual é a sua graça?”, ele perguntou (juro que foi assim, que não estou colocando expressões antiguadas na boca de ninguém). Respondi e acrescentei: “Prazer, Robson!”. E, para arrematar com bom humor, uma piscadinha de olho ou um toque de bateria, ele ainda me corrigiu: “ ‘Prazer’, não! ‘Satisfação’. Prazer... quem sabe um dia!?” E desceu. <BR> Tenho certeza de que tomar um táxi teria sido mais seguro. Mas eu ficaria sem esta história. <BR> (19 de abril de 2015)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-52292060602197992432014-12-31T12:04:00.003-08:002015-04-21T05:31:57.923-07:00Crianças - I e IIMuitos acontecimentos, este ano, mereciam uma crônica. Algumas viagens se transformaram, de fato, em palavras; certas pessoas viraram poemas. Mas nada, talvez, tenha me trazido de volta tanta vontade de escrever como o que aconteceu no último sábado – assim, nos derradeiros minutos do segundo tempo. <BR> Eu voltava de Três Corações quando o ônibus parou para os quinze tradicionais minutos de pausa. Estava sonolenta e escutava o “Disclosure”, no fone de ouvido. Perto do banheiro, reparei em um pai que trazia uma criança em cada uma das mãos. Na hora, pensei: “e o que ele vai fazer com a menina quando entrar no toilette masculino?” Na mesma hora, ele se virou para trás e me perguntou, como se lesse meus pensamentos: “Você pode acompanhar ela no banheiro?” A garota tinha uns cinco anos, os cabelos muito compridos, desgranhados, e me olhava ansiosa, de óculos. Em um instante, milhares de coisas me passaram pela cabeça: acompanhar quer dizer o quê, exatamente? Eu preciso limpá-la? Ensiná-la a usar o banheiro público, essa acrobacia insólita, mesmo para as mulheres adultas, de não tocar em nada, não sentar, não subir na privada, mas, ainda assim, dar descarga e lavar as mãos? Ou é só estar com ela no interior do banheiro, mas não por trás da portinha? E se ela sumir? E se o pai fugir? E se...?” Suspirei e disse: “O senhor se incomodaria de pedir a outra pessoa? É que eu não tenho muita habilidade com criança.” <BR> Era e não era verdade. Porque eu adoro crianças, de conversar com elas, de maravilhar-me com suas descobertas, mas, de fato, não sou mãe e não entendo muito desses detalhes práticos. E parece que, quanto mais tempo a gente leva para se transformar em pai ou mãe, mais a criança vai se tornando um ser assustador, misterioso e barulhento, porque mais nos afastamos das lembranças de nossa própria infância, quando tudo parecia, e devia mesmo ser, fácil. <BR> Por isso, no momento em que disse “não”, achei que havia feito a coisa certa: afinal, alguma mãe experiente viria logo atrás de mim e acompanharia a menina com muito mais competência do que eu. Contudo, um segundo depois, comecei a me arrepender. Cheguei a ter alucinações auditivas, nas quais a pobre menina choramingava, estupefata: “ela não quis entrar comigo, você acredita?” Não tirei isso da cabeça por cinco dias. <BR> Penso em uma dessas anedotas didático-religiosas, em que o mestre caminhava com seu discípulo na proximidade de um rio. Uma bela jovem perguntou se algum dos dois poderia atravessá-la em suas costas. O mestre aceitou e teve que passar o resto do trajeto ouvindo o discípulo recriminá-lo por se deixar seduzir pela mulher, por ter o contato de suas pernas em torno do corpo etc. O mestre, então, dizia: “Eu a carreguei por quinze minutos. Você a está carregando há duas horas.” <BR> Pois é: seja pela razão que for, por não ter ajudado a pobre menina de quem não sei e nem nunca saberei o nome, irei carregá-la pela vida inteira. Deixo aqui, publicamente, o meu pedido de desculpas. <BR> <BR> II <BR><BR> Pedro, de quatro anos, é um dos meus primos mais novos. Ficamos muito tempo sem nos vermos, como ele mora em São Paulo; eu, em BH; e nosso local de encontro é Três Corações, nos feriados prolongados. Por isso, no último Natal, foi como se nos víssemos pela primeira vez. <BR> Ele jogava video game e nós conversávamos. Elogiei o tênis novo dele e ele me explicou que havia ganhado para ir à festa de seu priminho Miguel, no dia seguinte, em Ribeirão Preto. Lamentei que não poderia ir, porque só tinha um par de chinelos. Brinquei que minha mãe só tinha dinheiro para me dar um único presente e ela optara pelo vestido que eu usava naquele dia. Ele não hesitou: “Tenho mil moedas. Posso te comprar um vestido novo e sapatos – de salto! Aí você vem comigo na festa.” <BR> Fiquei agradecida, mas quis lembrar-lhe: “Não, vestido, eu tenho. Só preciso do sapato.” Ele me olhou de cima a baixo, como um crítico de moda, e continuou em silêncio. <BR> Meu irmão, que assistia à cena, falou por ele: “Você não gostou do vestido dela, não é?” Ele sacudiu a cabeça, negativamente: “Não. Eu compro o sapato e o vestido também.” <BR><BR> É isso aí. E Feliz Ano Novo para todos, crianças ou não!
(31 de dezembro de 2014).
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-11506555349908603942014-02-17T14:14:00.002-08:002014-02-17T14:17:52.828-08:00VoltarVoltar é muito mais do que descer do avião, tirar da mala coisas e as histórias que elas contam. É, em primeiro lugar, mais do que estar aqui, não estar lá. É recolher da carteira documentos e notas que não servem mais, cartões de biblioteca, velhos tickets de cinema, filmes vistos na companhia de pessoas que não mais o acompanharão. É ouvir a todo o momento a sua própria língua e travá-la quando cruzam-lhe expressões que são da outra, daquela que a custo quase chegou a ser familiar. Voltar é se lembrar que faz calor, e muito, e que as pessoas por isso se vestem como se se despissem, exalando um tom de pele que é quase um delito, uma depravação. É perceber que existem cores, muitas, e que elas se arregalam à luz do sol. É de novo saber que as frutas têm gosto, cheiro e não apenas um nome marcado na etiqueta com o preço. É redistribuir as ruas no mapa mental da cidade. É revê-las, recaminhá-las e encontrar lugares que não estão mais lá. Voltar é descobrir que seus amigos ainda o amam, mas ainda assim se atrasam, e verificar na prática da espera que se o Google Maps indica um trajeto de uma hora e meia, é porque não conhece a destreza veloz dos motoristas de BH. Voltar é revisitar a Lagoa como se fosse o mar, e olhar do alto da Contorno a avenida Afonso Pena como quem admira a Champs-Elysées. Porque voltar é um exercício lento e doloroso de ressignificação – do espaço, de si e do sonho.
(17 de fevereiro de 2014 Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-65660372087568595562014-01-25T06:45:00.001-08:002014-01-25T06:45:18.392-08:00A TESEA tese é um monstro que a gente alimenta com palavras, e vão lhe crescendo cabeças e surgindo bocas. E é preciso se ter muito cuidado, porque cada novo parágrafo, nova teoria, pode ser uma fileira de dentes afiados prontos a devorá-lo, entre a baba verde do superego acadêmico, em uma banca de defesa ou de qualificação. Pois é por isso que, escrevendo a tese, acabei subnutrindo o blog. Um velho amigo apareceu esses dias, inclusive, para saber se eu estava viva, já que quase não envio e-mails e porque a última atualização datava de meados de novembro. Nesse meio tempo, muita coisa aconteceu: fui a um jogo do Paris Saint-Germain, a um show do DAF numa festa da embaixada alemã, comecei o ano novo em Berlim e tomei cerveja com o The Gathering em Paris. Mas tudo isso, e algo mais, eu conto ao vivo, entre um copo de Serra Malte e uma porção de torresmo, no Churrasquinho do Manuel, daqui a pouco – "trop" pouco, aliás.
(25 de janeiro de 2014).Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-55545962408959362732013-11-18T02:23:00.001-08:002013-11-18T02:23:05.536-08:00VoadoraEra um barco no Mediterrâneo, permeando os calenques de Marseille, próximo ao Castelo de If (o do Conde de Montecristo). Uma tarde clara de agosto, a água salgada molhando o vestido na violência de certas ondas. Meus amigos estavam em pé, atentos, saboreando famintos o passeio. Eu não estava mareada, mas sentia o que tradicionalmente experimento depois de sete dias de litoral: “já deu!” – mesmo sendo as praias azuis da Côte d´Azur. Passei a prestar atenção, assim, nas pessoas ao meu redor. Foi quando escutei três pré-adolescentes que conversavam:
Pré-adolescente 1: Por que ele te deu aquela voadora? (sim, era em Português, diria mais, em “Brasileiro”, com direito à palavra “voadora”, que eu pensava que nem se usava mais).
P-a 2 (contrariado): Pra começar, nem foi uma voadora...
O terceiro não falava, só sorria, divertido com o assunto.
P-a 1 (desafiador): Ah, não foi, não!? O cara meteu os dois pés no seu peito...
P-a 2 (científico): Que dois pés, véi? Isso nem existe... Nem dá pra fazer isso...
P-a 1: Mas cê voou longe! Por que que ele fez aquilo?
P-a 2 (ainda contrariado, esperando que mudassem de assunto): Nem foi por querer...
P-a 1 (incrédulo): Ah, não? E como é que alguém mete os dois pés no peito do outro sem querer?
P-a 3 (na torcida, provocativo): É... como?
Houve uma pausa curta. E:
P-a 2 (resoluto, encarando P-a 1): Olha, quem foi que levou a voadora? Fui eu ou você?
P-a 1: Você!!
P-a 2: Então, eu é que sei!
A discussão terminou ali. Fiquei fascinada. Porque me lembrava exatamente as conversas que ouvia entre os meus colegas na época em que eu também era pré-adolescente, ou mesmo os comentários dos meus ex-alunos pouco tempo atrás. E adorei o menino fechar o assunto com esse argumento de que se utilizam muitos repórteres e pré-vestibulandos em dissertações. Quem pode ser mais especialista num determinado assunto do que quem viveu a situação? E o garoto, a seu modo, virou a mesa, mas paradoxalmente – afinal, não há orgulho algum em se levar uma voadora, ainda mais com os dois pés do oponente no seu peito.
O resto da viagem ficou até mais divertido depois dessa pérola da pré-adolescência. (18 de novembro de 2013)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-87004018060389558382013-11-03T11:51:00.001-08:002013-11-03T11:51:59.890-08:00Diferentes tons de espetáculo Sexta passada, fui a um show de rock como quem vai ao cinema: conferi o horário da sessão, tomei um banho, troquei de roupa, peguei o metrô, fiz fila, mostrei meu bilhete, comprei um “demi” (como quem compra um pacote de pipocas), troquei meia dúzia de palavras fiadas com uma moça na entrada, encontrei uma boa posição diante do palco, como se fosse de uma grande tela. Tocou a banda de abertura, uma espécie de sequência de trailers e publicidades, que retardam a chegada do filme. Então faz-se escuro, surgem os músicos, um a um, posicionando-se, e você sabe que o espetáculo irá começar. Eu me refiro ao show do Antimatter, grupo discidente do Anathema, que tocou no Divan du Monde, no último dia primeiro. O estranho foi que tudo continuou da mesma maneira, como um filme. O público não se movia, não cantava, não se manifestava. Em geral é assim por aqui e, em determinados momentos, isso é muito frustrante. É como se a plateia assistisse a uma orquestra e esperasse o fim da sinfonia para aplaudir. Eu era a única pessoa que movia os lábios acompanhando a letra das canções – porque, se cantasse em voz alta, certamente me pediriam silêncio. Até aí tudo bem, questões culturais, a gente entende. O problema foi que a banda retribuiu a gentileza e sequer olhou para o público. Tocaram como zumbis e, quando começavam a minha música favorita, ouviu-se um inacreditável “no, no, no, guys! Stop!” Era o toque de recolher para a entrada do grupo seguinte, “Swallow the sun”. Eles não discutiram. Desvencilharam-se de seus instrumentos, disseram um discreto “merci”, recolheram todas as palhetas (claro que eu, na primeira fila, ansiava tantalicamente por uma delas para compor minha coleção) e desapareceram. Fiz o mesmo. Do lado de fora, chovia; eu havia esquecido o celular em casa e não pude tirar sequer uma foto. Sem dúvida, o Antimatter, para mim, ficou com muita cara de anticlímax. ***
Uma semana antes, porém, no Nouveau Casino, tive a honra de rever – pela quarta vez! – Anneke van Giersbergen, numa postura muito mais rock do que nas aparições mais recentes, tocando integralmente o último álbum, “Drive”. Os cabelos profundamente vermelhos, a voz ainda impecável, a jaqueta preta de couro, no entanto, não escondem o fato de que a moça está cada vez com mais ares de popstar. Não é uma crítica: ela deixou o The Gathering porque queria, justamente, fazer outro tipo de trabalho. As canções são deliciosas de dançar, os refrões têm aquele jeito saboroso de grudar na língua da gente, mas não vou negar: dá muita saudade do tempo de “Nightime birds” ou do “Mandylion”. Mas fazer o quê? Como entoam quase todas as músicas da nova fase da cantora, o jeito é “to live on”... Afinal, “we start today”... ***
Today, graças ao namorado de uma amiga, que nos presenteou com duas entradas, fomos assistir à final do Paris Open de tênis. Eu só conheço do esporte o que aprendi com o vídeo game, mas foi uma experiência extraordinária estar no Palais Omnisport de Paris, em Bercy, assistindo a uma partida entre dois dos melhores tenistas do mundo, David Ferrer e Novak Djokovic. Percebo que o meu vício por futebol me impediu, por tantos anos, de enxergar a beleza na agilidade das raquetes. O que mais será que eu perdi? Vou prestar mais atenção aos outros esportes, nas Olimpíadas de 2016...
(03 de novembro de 2013.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-89133888626702800732013-10-26T08:39:00.001-07:002013-10-28T12:05:55.916-07:00Praga e o Lobo MauUm dos ensinamentos de infância que a gente desconstrói ao longo da vida é aquele do “não conversar com estranhos”, porque, passada a fase em que seus amigos são representados pelos primos e pelos filhos dos amigos dos seus pais, é impreterível falar com desconhecidos para que eles passem a ser conhecidos e, quem sabe, tornem-se amigos seus. Quando se viaja, essa lição, de que também era adepta a mãe da Chapeuzinho Vermelho, é ainda mais posta em prova. Em um território diferente, é preciso dar um voto de confiança aos desconhecidos. Foi por isso que, quase sete anos atrás, comecei a participar do Couchsurfing, que é uma comunidade de viajantes que ajudam viajantes: oferecem um café, um almoço, um passeio pela cidade e até mesmo um canto para dormir, gratuitamente. Ao longo desse tempo, conheci muita gente interessante, fiz amigos, descobri lugares incríveis que só um nativo poderia apresentar, e vivi até uma relação amorosa duradoura – que dura até hoje, embora em outro formato. Mas, claro, às vezes a gente tem que lidar com situações complicadas. Foi o que aconteceu na minha viagem a Praga. Assim que cheguei à casa do meu “host”, não tive como não me sentir desconfortável: pilhas e pilhas – de louça a ser lavada, de roupa suja, de sapatos – decoravam o lugar. Ele explicou que não tinha máquina de lavar e que, por isso, não teria lençóis limpos para me oferecer, e que eu teria que dormir na cama (desarrumada) em que a filha dele, de cinco anos, dorme quando vai visitá-lo. Em seguida, comeu o pedaço de um pão com mel que a menina havia deixado em cima da mesa, quando saíram, pela manhã. Tudo bem, eu pensei, não sou nenhum fiscal sanitário, posso aguentar um dia ou dois assim, vou passar a maior parte do tempo fora de casa mesmo. Então ele foi tomar um banho. E foi aí que comecei de fato a me sentir desconfortável: quando ele saiu do chuveiro com uma toalha vermelha amarrada na cintura; nothing else. É a casa dele, ele tem o direito, pensei, enquanto ia o mais depressa possível para outro cômodo, justamente o do chuveiro. A porta não trancava. Tomei um banho – também desconfortável – e voltei para a sala (que também era o quarto), onde ele continuava com o modelito “toalha-vermelha-amarrada-na-cintura”. Só que agora ele enrolava um cigarro de maconha (que é praticamente legalizada na República Tcheca) e tomava alguns tragos de vodca. Então começou a falar que terminara um relacionamento há pouco tempo, que estava muito feliz com a minha companhia, quis saber se eu tinha namorado, e deu início a uma interminável referência a mulheres. Se eu elogiava o guarda-roupa, ele dizia que queria fazer uma sessão de fotos ali, mas que modelos são tão caras... Se eu começava a falar de um filme, ele falava da atriz principal. Fomos a um bar, ele falava da garçonete. Depois, em outro, ele convidou um colega para se sentar conosco, e os dois passaram em falar em tcheco – sem legenda! (o que me impossibilitou de saber se o assunto continuava sendo mulher). Eram cerca de duas da manhã, eu estava cansada, ele estava embriagado, nós teríamos que caminhar cerca de cinquenta minutos de uma trajeto inóspito até a casa dele, e, claro, eu desconfiava das intenções do sujeito. Foi então que me virei e olhei para a mesa atrás de mim: dessas mesas baixas, como de centro de sala de estar, com um sofazinho ao redor, cheia do que se via serem jovens amigos. Um deles me sorriu. Foi a deixa de que precisava. Agarrei minha taça de vinho branco, dei meia-volta e disse: “Vocês falam inglês? Então posso me sentar com vocês?” Eles eram todos muito simpáticos; dois haviam morado no Brasil, e um deles havia sido jogador do América de Natal! Foi justamente a este que me reportei, quando o meu “host”, dada a partida do colega tcheco, viera se sentar conosco e começara a falar alto e a entoar canções que desconheço também num tom de voz acima do desejável. O pessoal começou a se preocupar com a minha integridade, e eu disse ao ex-jogador do América: “se houver algum problema hoje e eu precisar de outro lugar para ficar amanhã, posso entrar em contato com você?” Ele respondeu: “mas por que esperar haver um problema hoje? Há um quarto absolutamente vazio na minha casa. Nós buscamos suas coisas agora e você fica lá.” De fato, ele tinha um quarto vazio, uma colega de apartamento supergentil, que fazia brownies, e se revelou a melhor companhia possível para conhecer Praga. Meu “host” pareceu um pouco desapontado quando tomamos um táxi, fomos até a casa dele resgatar minha bagagem, mas estava muito bêbado para reagir, coitado. E foi assim que fui salva, por adoráveis desconhecidos, das terríveis garras do Lobo-Mau-de-toalha-vermelha-amarrada-na-cintura. (26 de outubro de 2013)Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-84361001578115429662013-10-03T10:54:00.001-07:002013-10-03T10:54:52.927-07:00Prêmio NobelAs águas, o céu, os olhos. Tudo era azul na Escandinávia. Da janela do trem, os cervos pastavam e, pelos parques, atravessavam o nosso caminho entre saltos. Os tetos, pinheiros e nuvens atiravam-se inadvertidos na profundidade dos lagos, e se espe/alhavam, liquidos, como os sóis de Munch. A sombria arte dinamarquesa e toda a inquietude do parque Vigeland chocavam-se com a claridade fria que brilhava sobre o outono. Ah, Estocolmo, Växjö, Copenhagen, Oslo!.. Se não fosse o preço da cerveja, eu me mudava praí!
(03 de outubro de 2013)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-44833968467554066702013-09-15T11:11:00.001-07:002013-09-15T11:11:13.509-07:00 O ponto de vista dos caleidoscópiosA primeira vez que ouvi a expressão foi a caminho do aeroporto de Lyon, anos atrás. Era uma francesa muito bonita, com ares de alemã e o charmoso nome de Cloë (com o trema de que ela se orgulhava tanto) que me contava que o namorado a havia “laissé tomber”. Primeiro, fiquei estupefata: como alguém poderia terminar com uma moça como ela, que, ainda por cima, era extremamente gentil? Em seguida, fiquei pensando nesse jeito de se referir ao fato: “laisser tomber” quer dizer, literalmente, “deixar cair”. Recentemente, conheci um sinônimo: “larguer”, idêntico ao empregado em português: “ele/ela me largou.” Muito imagéticas as expressões. Por que não é, no fim, isso mesmo que acontece? Como se, escalando uma montanha muito íngreme, alguém soltasse a sua mão, você sentisse subitamente aquela ausência do peso que o sustentava, e passasse à leveza do vazio, ao desequilíbrio e, claro, à queda? “Ele me deixou cair” é muito mais emblemático do que o “ele terminou comigo” do português, porque, a princípio, a ideia é dizer que o cidadão “terminou um relacionamento comigo”, ou seja, é o relacionamento o objeto direto do término. Obviamente, no entanto, se o objetivo for a dramaticidade, dizer que alguém terminou com outra pessoa pode significar que a destruiu, destroçou, reduziu a pó. Gosto de pensar também em como os franceses se referem ao ato de se apaixonar: “tomber amoureux/amourese”: cair apaixonado. É semelhante ao inglês, que, neste caso, consegue ser ainda mais sugestivo: “fall in love” é simplesmente “cair no amor”. Como se este fosse um buraco, um precipício, um fosso repleto de areia movediça, onde se perde aos poucos o domínio dos movimentos, o oxigênio, e se pode cada vez mais afundar. Pois se, no amor, do começo ao fim, tudo é sempre uma questão de queda, gosto de pensar no verbo correspondente em espanhol: “caerse” é algo que se faz a si mesmo, sendo possível, assim, ao menos, dosar o tamanho do tombo. Teoricamente, é claro. ***
Pensei nesse assunto enquanto relia “Sem Ana, blues”, um conto do Caio Fernando Abreu, autor de quem gostei muito no final da adolescência. O texto é uma das melhores descrições de fossa pós-término que já vi, competindo com canções como “Eu te amo”, do Chico, “Jumping my shadow”, do Skyclad, “Atrás da porta”, na voz da Elis Regina. Como, hoje em dia, nesses quesitos, eu prefira o bom humor de uma Clarice Falcão e músicas como “Uma canção sobre o amor”, o texto me serviu para refletir sobre outra forma de encontro amoroso: aquele com o nosso idioma materno. Tenho lido a maior parte do tempo em francês, escrito em inglês para congressos, e de repente o sabor de um conto literário em português caiu como uma luva para este domingo em que, depois de dias de chuva, o sol deu as caras num céu lavado e muito azul. Depois ele também foi embora, “nos largou”, mas aí já estávamos nos divertindo com palhaços, carrosséis e acrobatas, no Museu das Artes de Feira, que só abre em datas especiais – como hoje.
(15 de setembro de 2013.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-85937948928205858062013-09-06T04:21:00.000-07:002013-09-06T04:21:15.481-07:00So let it be rockFoi um amigo quem me deu o ingresso para o show de Madball, Downset e Biohazard, umas semanas atrás. Pulei muito nos dois primeiros, mas, no terceiro, para fugir dos moshes violentos do público – tinha gente até com protetor bucal, para você ter uma ideia -, fui me sentar numa grade de proteção, de onde tinha uma visão superprivilegiada e próxima do palco. Foi aí que eu bocejei. Eu sei, era um concerto de rock, ninguém esperava aquilo de mim, mas foi mais forte que eu, desculpe. Quando olhei para a plateia, um rapaz me encarava, estarrecido. Ele agitou a cabeça e o indicador, num gesto negativo, depois moveu os braços para cima, ensinuando que eu precisava me animar e curtir o show. Ele, claro, tinha toda a razão, e passou o resto da apresentação conferindo, vez por outra, se eu estava mesmo “agitando”. Acabei me entusiasmando tanto que, quando me dei conta, estava sentada em cima da caixa de som, praticamente sobre o palco, e o guitarrista solava olhando diretamente para mim – cena que se repetiu algumas vezes, até ele pegar a minha mão e beijá-la docemente, como um cavalheiro. Quando o concerto acabou, pulei no palco, acompanhei um menino de uns doze anos que, tímido, tentava se aproximar do vocalista, conversei com ele, ganhei duas palhetas e um abraço apertado do baixista que, vim a saber, é um conhecido ator pornô. Tenho as fotos para provar. E este foi só o começo de uma sequência sensacional de shows de rock, que povoou agosto, o mês do meu aniversário no meu ano parisiense. Exatamente no dia 23, minha data querida, Belle and Sebastian (ah, minha adolescência...), Tomahawk (rever o Mike Patton, sempre um prazer à parte!) e Franz Ferdinand se apresentaram no Rock en Seine, junto a atrações ditas menores, mais ainda muito empolgantes, como Johnny Marr, o ex-guitarrista dos Smiths, que nos brindou com canções dos velhos tempos, como a adorável “There´s a light that never goes out”. No dia 25, foi a vez do System of a Down, e de uma apresentação de pura energia, em que os caras emendavam uma música à outra e só dava tempo de se sentir alegre. Quando estive em Londres, conheci uma inglesa muito divertida, com uma tatuagem muito bem feita de um alien no ombro, que me acompanhou aos pubs da cidade, e que me disse ser roqueira por saber que o rock nunca nos deixa para trás, nunca nos abandona. Tenho a mesma sensação. É uma das minhas melhores companhias. E é como se ele se presentificasse nos concertos, verdadeiras experiências epifânicas às vezes. Hoje é a vez dos Deftones, banda que ouvia muito pouco, mas a que decidi dar uma segunda chance graças aos comentários elogiosos da Anneke. Ela, outro dia, postou uma foto tirada do meio da plateia, em um show deles a que esteve presente, e escreveu: “Incrííííivel Deftones!!!”. Bom sinal, alors!
(06 de setembro de 2013)Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-50734747643908895632013-08-07T02:21:00.000-07:002013-08-07T09:06:59.509-07:00O último bar antes do fim do mundoDescobri um bar em Paris chamado “O último bar antes do fim do mundo”. (Um amigo, que está prestes a retornar ao Brasil, disse que, na véspera da partida, vai lá tirar uma foto, segurando o bilhete de volta...) É um lugar para nerds e geeks, onde só se toca rock, música de video game e trilha sonora de anime. (Quando estava lá, por exemplo, morri de euforia ao ouvir um dos temas dos “Cavaleiros do Zodíaco”.) A decoração inclui Gremlins (aquelas fofuras que viram monstros quando em contato com a água) e Totoros (da animação do Miyazaki). Para completar, há um amplo acervo de jogos de tabuleiro, livros de RPG, histórias em quadrinhos e mangás à disposição dos frequentadores – que, diga-se de passagem, são bem mais simpáticos do que o habitual. O pessoal da mesa ao lado até me convidou para jogar uma partida de qualquer coisa com eles, um gesto nada parisiense. E, como se não bastasse, ainda vendem cerveja lá! É o paraíso.
Quando eu frequentava o conservatório, conheci uma pianista, de nome muito bonito, que se destacava para mim por ter algo de Madame Bovary. Ela era uma grande amiga da minha professora de piano, que, certa vez, mostrou-me um álbum de fotografias, uma espécie de book, da primeira. Eram fotos belíssimas – ela tinha um sorriso invejável e olhos de um verde muito particular. Mas havia uma nebulosidade em cada uma daquelas imagens, não importava a largura do sorriso ou a quantidade de dentes alinhados. Então, minha professora explicou que, naquele dia, o noivo – médico com nome de compositor alemão, o dos Nibelungos - rompera com ela um namoro de sete anos. Ela estava absolutamente arrasada e a sessão de fotos fora uma tentativa de reanimá-la – talvez no sentido original, de trazer-lhe novamente a alma.
No último domingo, eu também estava triste, e um amigo fotografou-me à beira do Sena, tentando alegrar-me – assim como, anos atrás, outro amigo fizera, com três barras gigantes de Laka e um CD de músicas latinas. Depois fomos ao tal bar, e bebemos até o horário do último metrô. Talvez não fosse, afinal, o fim do mundo; só o primeiro dia depois do fim.
PS.: Fui surpreendida esta manhã com o e-mail de um amigo que não vejo há muito tempo, de Lavras. O título era "Every sun is fragile". Ele se referia ao novo álbum do Autumnblaze. Mas, ao mesmo tempo, a afirmação faz todo o sentido. Every sun is fragile.
(07 de agosto de 2013.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-22756717490035352932013-07-16T03:29:00.000-07:002013-08-07T02:21:42.300-07:00RitornelloDepois de tomar uma Guinness em um autêntico pub irlandês, tirar uma foto ao lado da estátua descontraída de Oscar Wilde em Merrion Square e dormir no chão de Londres, fui para a Itália, subir trezentos e vinte degraus até o topo da Basílica de São Pedro. Roma foi uma asfixia: o calor de quarenta graus, a horda de turistas ensimesmados, as caminhadas intermináveis e o sufoco de estar sob o peso de tantos séculos de História. As ruínas, as termas, o Coliseu, a arte antiga, as igrejas e tanto ouro revestindo suas paredes, a luz colorida dos vitrais, os órgãos em sua magnificência de tubos, o enigma de cada quadro da Capela Sistina. A beleza cinematográfica das praças, parques, das esculturas, a Fontana de Trevi, tão felliniana, lembrando a todo o momento o quanto a vida pode ser doce. E, depois, num domingo de abençoada chuva, os estúdios da Cinecittà e o fascínio de estar diante do figurino de Claudia Cardinale em “Era uma vez no oeste”. Mas Roma foi ainda mais que isso: foi o prazer de estar com duas amigas brasileiras, que conheci em Paris, uma antropóloga e uma historiadora, escolta perfeita para uma visita contextualizada aos museus; confidentes, companheiras, nós nos unimos por um mote: allons que allons! E, assim, nós fomos! Tomamos o trem, embevecidas com os campos de girassóis e a paisagem sem adjetivos da Toscana, e chegamos até Florença. E então eu me paraliso para um longo suspiro. Ahhhhh... Florença! As ruas, a arquitetura, o sorvete, a bisteca fiorentina do “Mário”, o pôr-do-sol na praça Michelangelo, tomando chianti e comento cantucci, e rindo muito de uma série de piadas internas que, por muito tempo, só a gente vai entender – porque depois, é possível, nem a gente. :) E em Florença está o David, estátua pela qual merecidamente se derrete de amores, e o paraíso estético da galeria Uffizi. Todo mundo está lá!! Boticelli, Rubens, Tiziano, Caravaggio, Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, Brueghel... Chega a ser estafante de tão bonito. A impressão que fica é a de que é preciso voltar, passar uma tarde inteira em cada sala; voltar, aliás, à Itália, onde todos os dias são domingo, o domingo da macarronada e da família – barulhenta! – reunida, das escadas rolantes vagarosas, em que ninguém ultrapassa ninguém, porque a vida é para ser experimentada como uma refeição de muitas horas e diversos pratos.
(16 de julho de 2013).Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-49864173652824675302013-06-01T11:30:00.003-07:002013-06-01T11:30:51.876-07:00Portugal: minha grande madeleineSempre que falam em comida de mãe, eu penso nas quitandas que faz minha Madrinha, uma pessoa incrível, que entra para o Top 5 dos meus grandes amores. Minha mãe me fez querer ser forte; meu pai, a buscar a inteligência; mas, se há alguma doçura em mim, foi minha Madrinha quem me emprestou. Passou a vida criando filhos, netos, sobrinhos, com paciência e mãos de fada para a cozinha. Cada um de nós tem a sua quitanda preferida: brevidade, bolo de fubá, broa, biscoito de nata... Quando eu era pequena, e ela cuidava de mim enquanto meus pais estavam no trabalho, eu contava os minutos para o café da tarde – literalmente. Uma vez, disse a ela: “já está na hora, Madrinha!” E ela explicou que tomávamos café às 15h, que eram ainda 14h. Sentei-me na cama dela, de frente para o rádio-relógio, e fiquei uma hora inteira vendo os minutos se passarem, os números se transformarem, como diante de uma ampulheta vermelho-brilhante. Essa é até hoje, de todas, a minha maior gula. Posso ficar sem sobremesa pelo resto da vida, mas não me deixe sem café com bolo! E quando, dias atrás, tive a oportunidade de visitar a terra dos nossos colonizadores, senti uma imensa alegria ao descobrir de onde vinham as receitas deliciosas da minha Madrinha. Os doces típicos portugueses, como o “travesseiro”, que se come em Cintra, têm a massa, a cobertura de canela e açúcar, tradicionais no interior de Minas. Foi como a madeleine do Proust, só que em muitas formas e sabores: no peixe que meu tio Jair pescava e levava de presente para minha mãe, no arroz-doce que minha avó fazia e que meu pai adorava, nos pasteis-de-Belém e afins, tão parecidos com as receitas da minha Madrinha. Pensei neles o tempo todo. Porque as belezas ficam mais bonitas quando nos evocam as pessoas que amamos. E quantas belezas há em Portugal! Em Cascais, em Porto, no rio Tejo, em Alcochete, em Lisboa, no Cabo da Roca – lugar em que me esqueci de todos os meus arrependimentos e onde entendi por que os portugueses, naquele sotaque melífluo, dizem que o mar é deles. Foi uma viagem de reencontros: com importantes amigos e fundamentais lembranças. Fez bem – faz bem a saudade. Voltei para casa com um quilo a mais de leveza.
(01 de junho de 2013.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-55473766145573511322013-05-22T06:12:00.003-07:002013-05-22T06:12:55.384-07:00Cada um com sua Pasárgada...Me encantan as bandeiras amarelas e vermelhas pelas fachadas, lembrando-me de que estou outra vez na Espanha, seis anos depois. Muita coisa mudou nesse tempo, para bem além da cor dos meus cabelos. O espanhol agora está mais melancólico, tocando pela rua tangos argentinos. “Fizeram de nós um grande parque de recreação”, desabafou uma espanhola de Valladolid, que deixou por lá a família e o namorado para trabalhar como enfermeira em Barcelona. Ouvi queixas sobre a precariedade do sistema de saúde, os preços das universidades paradoxalmente públicas, sobre as condições de trabalho, os salários atrasados, as aposentadorias tardias, as incertezas acerca do futuro. E, para onde quer que se vire, tudo é magnífico: as casas, os monumentos, a arquitetura, os grandes generais sobre seus cavalos de patas erguidas. O prédio dos correios, por exemplo, é impressionante. Investiram tanto em turismo que, hoje, falta dinheiro para se construírem escolas e hospitais. E é interessante observar o espaço que ocupa agora o Brasil diante dessa quebra de expectativa europeia: procurando um presente para o meu irmão, na loja do Barça, um vendedor muito simpático me explicava os diferentes modelos de camisa, pensando que eu era argentina. Quando falei que era brasileira, ele se entusiasmou: “oye, dizem que no Brasil há muito emprego, verdad?” Eu não sabia o que responder. Porque, sim, há emprego, mas estamos longe da Pasárgada de Bandeira. Há também muita violência, muita corrupção, muita desigualdade social, muita desorganização. Outro dia, um francês me dizia temer que, apesar de todo o progresso, a falta de ordem pusesse tudo a perder no Brasil. E infelizmente ele está certo. Toda a ostentação com a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 pode vir a ser o estopim da derrocada. E, daqui a poucos anos, estaremos encarando nossos belos estádios como a relíquia de um tempo em que parecíamos, para o mundo, inclusive o velho, um ponto de fuga perfeito.
*
Mas, escrevendo assim, faz parecer até que estou triste. Impossível. Acabo de voltar do Parque Güell, que é o máximo do modernismo catalão, e onde estão algumas das obras mais bonitas de Antoni Gaudí. Ontem, visitei a Igreja da Sagrada Família e o Camp Nou, o estádio do Barcelona, um espetáculo à parte. Antes havia estado em Valência, onde pude ir ao campo assistir a uma partida da primeira divisão do futebol espanhol, entre Levante e Rayo Vallecano, passear pela inacreditável Ciudad de las Artes y las Ciencias, ver o Real perder a Copa do Rei para o Atlético de Madrid – um acontecimento histórico! – tomando água de valência e comendo polvo asturiano. E o melhor de tudo: nesta viagem, pude reencontrar amigos que não via há muito tempo, descobertas de viagens anteriores, que se tornaram ainda mais queridos, apresentando-me novos sabores de tapas, outras pessoas gentis, lugares increíbles nessa Espanha tão guapa, que espero em breve ver feliz de novo.
(22 de maio de 2013.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-20182965903833523242013-04-30T08:15:00.003-07:002013-04-30T08:15:41.919-07:006 dollars per hourEm BH, tive, por muito tempo, um lugar favorito: um cinema chamado Usina. Era pequeno, com duas salas discretas, onde se projetavam os ditos filmes de arte, ao lado de um charmoso café/restaurante e uma livraria cara, mas de qualidade. A vida sempre me levava para lá, fosse por causa de empregos, namorados ou candidatos a. Meu prazer maior, no entanto, era solitário: o filme reverbera mais à vontade quando se está sozinho. O lugar foi fechado, no entanto, com promessas não cumpridas de uma reforma e de posterior reabertura em alto estilo. Também, pudera: o lugar vivia à míngua. Em Paris, essa diferença assusta: os eventos culturais, os locais voltados para a arte, realmente lotam. Por isso, proliferam. Um desses espaços, que elegi de cara como, a mim, mais caro do que a Torre Eiffel, é o Forum des Images, dentro da estação Châtelet-Les Halles. Além das salas projeção, há um café, a biblioteca François Truffaut, totalmente voltada para o cinema, além de alguns espaços de convívio, com sofás superconfortáveis, onde se pode simplesmente estar. Há ainda a parte das coleções, em que se tem acesso a milhares de filmes de qualidade. Na última sexta, estive lá para, entre outras coisas, prestigiar o festival “Séries Mania”, dedicado a séries de TV do mundo inteiro. A programação era imensa, difícil saber a que assistir, e acabei diante de uma produção israelita chamada “6 dollars per hour”. Câmera na mão, estética da simplicidade, do chão-a-chão, três protagonistas, faxineiras, com diferentes dramas tratados com muito realismo e intimidade. Adorei. Na saída, um livreiro distribuía suas ofertas sobre a mesa. Parei, é claro, e, por acaso, justamente no meio de duas francesas cheirando a burguesia. Fiquei ali, entre o fogo cruzado das madames, que criticavam a série, chamando-a de “miserista” e “mal-filmada”. Como quem passa por debaixo da cruz e da espada, afastei-me, incrédula, indo buscar um livro de bolso mais à esquerda. Incrível o desejo dos franceses de fechar os olhos para a pobreza, inclusive para a deles mesmos, que se alastra como o zumbido feroz de uma miríada de gafanhotos. Interessante como não basta frequentar lugares de arte para se deixar sensibilizar por ela.
(30 de abril de 2013)Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-73205368164994177422013-04-22T10:47:00.002-07:002013-04-22T10:51:29.404-07:00Confins, alturas e Países BaixosLeiden é uma grande universidade, que, a exemplo de Viçosa, possui uma pequena cidade. E, o mais importante: ela se localiza na Holanda, o país de origem do The Gathering. Tudo bem, há muito mais aqui – escrevo ainda de dentro do aeroporto de Amsterdam-, como o parque das tulipas, o museu do Van Gogh, o famoso Red Light District, as bicicletas, os moinhos, o Tribunal Internacional de Haya, a arquitetura moderna e as esculturas nas ruas de Rotterdam, a qualidade de vida de Utrecht, com seus canais, gaivotas e patos coloridos, a beleza plana das estradas vistas pelo vidro limpo dos trens mais pontuais, a gentileza das pessoas... Mas, quando me convidaram a participar de um congresso em Leiden, ironicamente sobre literatura de viagem, a primeira ideia que tive foi a de correr à página do The Gathering e descobrir onde eles tocariam quando eu estivesse nestas terras alaranjadas. Porque era um ideal, bastante simples até, o de vê-los em sua terra natal, em sua homeland. E eis que, quatro dias depois da jornada de estudos, lá estariam eles, em Emmen, na outra ponta do mapa, no norte, quase resvalando para a Alemanha, mas ainda nos Países Baixos. Comprei o bilhete, em holandês, com auxílio do tradutor do Google, para uma casa de show chamada Blanko, que, vim a saber, pertencia a um português. E fui. O lugar era tão pequeno, tão parado em um tempo de singeleza e tranquilidade, que foi difícil encontrar mesmo um local onde me hospedar. Mas achei e era perto: da estação, do concerto, dos realejos no centro comercial da cidade – porque, ali, o conceito de distância era o daquilo que superava quinze minutos a pé. A primeira alegria da noite foi o encontro com uma chilena ultrassimpática, encarregada de comercializar os álbuns do grupo, a qual, além de me fazer uma grande oferta, revelou-me ser a namorada do guitarrista. Dali, foi como um passe de mágica: o pôster autografado por todos eles, a palheta, o agradecimento público, no meio do concerto: “Estamos falando em inglês, porque soubemos que há alguém de fora aqui...”, disse a baixista, Marjolein. “Brasil! Brasil!”, gritei, do privilegiado espaço da primeira fila. Foi como um sonho. O show foi discreto, como o público, quase mórbido – fácil entender por que todo mundo gosta de tocar na América Latina. Focalizou os dois últimos álbuns e, principalmente, o excelente “Disclosure”, com direito, no entanto, a algumas canções mais antigas, como “Broken Glass”, “Eleanor” e “Shot to pieces”. Ao final, a banda desceu diretamente ao solo, sem a frescura dos camarins, e passamos – especialmente a baixista, a vocalista e eu - um bom tempo conversando sobre “que diabos uma brasileira estaria fazendo ali, em Emmen”. Tornei-me definitivamente fã da delicadeza de Silje, essa guerreira que aceitou o desafio de substituir a Anneke, e que tem feito um trabalho apaixonante. Depois passei três dias (até aqui) revendo as fotos, os vídeos, e tentando espalhar pelo resto da Holanda o pólen de uma noite sem igual.
(22 de abril de 2013)Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-87998252099580073922013-04-01T10:23:00.002-07:002013-04-01T10:25:24.462-07:00Almodóvar - I, II e IIIO que eu sempre gostei nos filmes do Almodóvar foi a sensação de que, como para o Lucas Silva e Silva, do “Mundo da Lua”, tudo pode acontecer. E quando eu digo “tudo”, I mean “everything” mesmo. Claro, depois de um tempo, você entende que a receita tem sempre um travesti, dois homossexuais (um deles, enrustido, talvez), uma lésbica, um bissexual, um filho traumatizado, uma canção brasileira, muita cor e muito sexo - as maneiras mais inusitadas de sexo, aliás. Mas, ainda assim, a primeira cena abre sempre um oco de deliciosa curiosidade dentro de mim: o que será que ele vai inventar desta vez? Em seguida, vem a fase do reconhecimento: a mulher do “A flor do meu segredo!”, “la consejala antropófoga!”, o cara do “De salto alto!”, aquela freira do “Maus hábitos!”... e tudo isso com a infantil alegria de quem vê o mesmo filme muitas vezes e sabe, inclusive, repetir alguns diálogos. Aos poucos, minha mente vai listando as circunstâncias dos meus encontros com Almodóvar: “Fale com ela” eu vi no cinema, com o Petrus; “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, na biblioteca da Escola de Belas Artes; “Kika”, foi no curso de Autores e Estilos; “O eu fiz para merecer isso”, eu vi com o meu irmão, num domingo à noite, “Má educação”, foi num sábado à tarde, com a Fernanda, que trabalhava comigo na Reitoria... E, na última quinta, com a Íris e a Natascha, duas novas amigas-vizinhas (e olha que nunca gostei de conjugar essas duas palavras!), fui ao cinema assistir à estreia de “Os Amantes Passageiros”: uma experiência de profundo déjà vu e muito humor escrachado, como se o diretor fizesse questão unicamente de se ater – atar? – a duas palavras: amantes + passageiros. A partir daí, os personagens poderiam ter vida própria e seguir livremente a trilha do nonsense, a seu bel, e intenso, prazer. Deixei o cinema com vontade de dançar, e intrigada com a possibilidade de fazer, a partir da filmografia de Pedro Almodóvar, uma colcha de retalhos de dez anos da minha vida.
ALMODÓVAR - II
Fui ao Hôtel de Ville, com uma polonesa supersimpática que conheci nos complicados ensaios do Réquiem, assistir à exposição de Haute Couture. Nada entendo de moda, mas os grandes nomes dos estilistas ressoam facilmente na nossa memória, e não é tão difícil achar bonito um vestido bonito. Fora que tantos episódios ao lado de Carry Bradshaw, além do incrível aumento de publicações e sérios estudos a respeito do tema, tenham me feito entender que a moda merece respeito. Não me provoca, porém, suspiro comparável ao do museu de Arts et Métiers, ao dar de cara com os instrumentos precursores da fotografia e do cinema, o daguerreotipo, a lanterna mágica, as primeiras câmeras. Foi um dia depois de conhecer a Biblioteca Nacional da França, numa conferência em homenagem a Julia Kristeva; dois dias depois de visitar a Cinemateca ou de ver um concerto de música argentina na Maison da Bélgica, na Cité Universitaire; um dia antes de assistir à “Antígona”, num teatro em Saint- Michel... Talvez isso explique por que eu esteja dormindo tão pouco e tomando tantas canecas carregadas de café extraforte desde que cheguei aqui.
ALMODÓVAR - III
Esse sentimento de “tudo pode acontecer”, que me assoma no início dos filmes de Pedro Almodóvar, é semelhante ao que experimentamos no princípio dos relacionamentos: ninguém nunca me disse isso, ou tocou ali, ou contou aquilo, ou fez assim, ou. A nova pessoa é sempre uma fortuna de possibilidades, que nos fazem pensar em casamento, filhos, viagens pelo mundo, temendo, apenas com descrente discrição, desfechos dolorosos, insultos, feridas que demoram a cicatrizar. Não é por acaso que outro filme, o “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, dirigido por Michel Gondry, com roteiro de Charlie Kaufman, figure na lista de preferidos de tanta gente: porque nada se compara aos princípios. Apagando-se a memória de trás para frente, teríamos sempre material bonito o suficiente para querer tentar de novo, se nos sobrassem só os começos.
(01 de abril de 2013.)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-54490417015810859212013-03-15T03:41:00.002-07:002013-03-15T03:41:50.096-07:00AzulHá um azul nos olhos europeus, que é simplesmente desconfortável. Ele me faz pensar a cor com tato e me ajuda a compreender a solidez dos olhos negros, castanhos e marrons, que nos encaram com franqueza e precisão. Ele distancia-se ainda do verde, seu matiz-irmão, ao qual estamos mais habituados, e que reserva ainda um traço, um delineamento, que o fazem menos ameaçador. Nesse azul é absolutamente diferente: eles têm olhos líquidos. Espelhos d´água, piscinas circulares, espessas gotas de oceano. Todas essas definições, nem tão originais, seriam válidas. É como encarar uma joia, sem saber se ela se dá conta de sua preciosidade ou de nossa existência.
(15 de março de 2013)Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-42405218528118829452013-03-03T14:56:00.007-08:002013-03-04T01:29:42.631-08:00Entre o Sigur Rós e as pulgasO Sigur Rós foi uma das bandas mais presentes nos meus fones de ouvido nos últimos meses. Lembro-me bem da minha derradeira visita à UFMG, pensando, nostálgica, no quão rápido esses dez anos na universidade passaram, e suspirando, sonhadora, pelo que ainda havia por vir. A trilha sonora eram as intrigantes linhas melódicas e os surpreendentes arranjos harmônicos desse grupo de islandeses, tão impressionantes quanto a Björk. E eis que eu aterrisso na França e, duas semanas depois, estão eles aqui, em Paris! Eu enlouqueci! Mas um pouco mais logo em seguida, quando descobri que os ingressos estavam esgotados, sold out, aliás, em toda a Europa, pelos próximos três meses, quando, finalmente, haveria bilhetes disponíveis - nos Estados Unidos. Só havia uma exceção: Lille, ao norte, um par de dias depois. E tudo isso junto a mudança de casa, contrato de seguro de saúde, colóquio na Sorbonne, burocracias infinitas... Foi uma correria intensa e eis que as luzes se apagaram, desenhos incompreensíveis começaram a ser projetados sobre um curioso véu, diante do palco, a banda começou a tocar e eu estava lá. O show foi simplesmente "tripante", como dizem os franceses, cada acorde era um espasmo, uma viagem interior para outros tempos, outros encontros, outras passagens. Confesso: deu saudade de assistir às apresentações no Brasil, com um monte de gente empurrando e furando fila, no lugar do medo de esbarrar em alguém e ter que dizer "désolée" a toda hora. Ao mesmo tempo, foi um convite a um prazer intimista e aquele acabou sendo um concerto de arrepios. No dia seguinte, uma hora de estrada e estava na Bélgica, em Brugges, a "veneza belga", um charme... especialmente quando se depara, na esquina, com um violonista como o Tony Haven: http://www.tonyhaven.com/, tocando ali, sentado no chão, na maior simplicidade. Depois vieram as iguarias... as patas de rã, servidas como tira-gosto, os mexilhões fritos e, claro, as batatas fritas gordinhas que os belgas comem no cone. Em seguida, veio Bruxelas, com a Delirium, uma cerveja com quase dez por cento de álcool, que faz jus ao nome, e aquela arquitetura fabulosa, que, em certas partes da cidade, torna-se muito duvidosa. Porque, pelo pouco tempo que estive ali, senti que Bruxelas é uma capital mais realista: com sopão servido no metrô no sábado à noite para uma horda de famintos, com sacolas na mão. Então, na volta, fiz questão de ir ao Mercado de Pulgas, no norte de Paris - onde dizem que a gente não deve ir. Talvez porque é lá onde os imigrantes, com seus sotaques complicados, estão, perigosamente espalhados por todos os cantos. (03 de março de 2013)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-15185389224881792442013-02-23T10:22:00.000-08:002013-02-23T16:55:08.139-08:00A neveHoje está nevando. Quando meu irmão e eu éramos pequenos, nós dispúnhamos, como toda criança, de certas crenças fantasiosas, que eram mais, na verdade, esperanças fantásticas: nós rezávamos, esta é mesmo a palavra, para que um disco voador passasse perto de nossa casa e, quem sabe, com sorte, nos abduzisse. Fazíamos pedidos para nuvens de desenhos complexos, por trás dos quais, acreditávamos, escondiam-se seres mágicos e super-heróis da TV. E suplicávamos, insistentemente, a Deus que permitisse que nevasse em nossa cidade brasileira no sul do sudeste. Nunca nevou, é claro, nem um de nós foi levado para o espaço por um extraterrestre ou uma fada, mas um dos sonhos foi, em certo sentido, realizado. Foi preciso, no entanto, vir para longe para ver a neve: eu estava a caminho da Suíça, num ano em que, estranhamente, fazia relativo calor no inverno francês, quando vi aquela barreira branca no canto da pista. Gritei: “arrêtes! Arrêtes! C´est la neige!”, obrigando meu amigo que dirigia a parar imediatamente o carro para que eu descesse e enchesse a palma da mão daquela brancura gelada. Há uma foto para provar, e um sorriso que era quase uma gargalhada. Depois se seguiram aquelas montanhas completamente cobertas, onde os suíços esquiam e comem chocolate, enquanto o resto do mundo guerreia, como disse o Larry David. Agora, nesta quase noite de sábado, nós nos reencontramos e, pela janela, ela dança com essa delicadeza bonita, que faz parecer que nem é de oito graus negativos o frio que faz lá fora. Ficam faltando os OVNIS, as fadas e o meu irmão aqui.
(23/02/2013)Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-21202364851360991652013-02-18T05:06:00.001-08:002013-02-18T05:06:36.611-08:00Primeiros dias de uma tricordiana em ParisEstar debaixo da Torre Eiffel e olhar para cima, como um menino levado que tenta descobrir o que há sob as saias de uma mulher. Entrar em uma rua qualquer à procura de um restaurante e dar de cara com o Arco do Triunfo. Perder-se, dobrar e desdobrar o mapa entre esquinas diversas, e tropeçar no Panthéon. Descobrir-se cercado pelos restos mortais de tantos imortais... Baudelaire, Sartre, Robespièrre, Victor Hugo... Encantar-se com as patissêries, com os chaussures, os murmúrios, tantas vezes incompreensíveis, dos franceses, em toda a sua suavidade. E ouvir, em seguida, inextricáveis sotaques, indecifráveis traços, convidativos aromas, tailandeses, chineses, turcos, paquistaneses. Abrir um vinho e outro e flanar pelo neon vermelho das soirées, os boulevares, os parques, os castelos, as bibliotecas, os museus. Saber que há, agora, em cartaz, duas peças de Jean-Paul Sartre, as comemorações do Ano Novo Chinês, o centenário de nascimento do amado Albert Camus. É absolutamente adorável errar por Paris, errar em Paris, trocar nomes de ruas, comprar toalha de papel no lugar de papel higiênico no supermarché. É doce o frio de poucos graus neste fevereiro em que o sol, embora brilhe, é desbotado pelo vento, gelado, que corta. Anos atrás, quando estive aqui, jurei para mim mesma que voltaria, que moraria, que recortaria para mim um espaço em Paris. Agora conto ao avesso este calendário, esperando que os próximos trezentos e sessenta e um dias deslizem com a elegância e a leveza do Rio Sena.
(18/02/2013)
Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-2595556276576256675.post-14107334898072037352013-01-22T12:17:00.001-08:002013-01-22T13:57:31.321-08:00Sobre as plantas e outros seres vivosSempre que chego de viagem e subo os cinco degraus de escada para o meu apartamento, meus olhos têm direção definida assim que destranco a porta: viram-se para a esquerda, checando se nossas plantas de estimação sobreviveram aos meus dias de ausência. Há cenas desoladoras, em que as pobres coitadas estão amarelas, secas, murchas, cabisbaixas. Frequentemente, penso que é o fim. Um pouco depois, no entanto, com água e alguns cuidados, elas voltam à vida. São quatro, e duas delas se mudaram conosco para cá, quase oito anos atrás. É muito tempo e, ainda que eu saiba não ter o que na linguagem técnica se chama “mão-para-planta”, satisfaço-me com o fato de ainda estarem vivas, suportando, com tanta constância, vários dias de abandono. Se andassem, provavelmente já teriam se mudado daqui. Se falassem, teriam me proferido uma boa quantidade de palavrões. Mas essa sua passividade inata as mantém ali, caladas, esperando por mim. Muitas vezes, as pessoas fazem isso com a gente, ou vice-versa: em nome de questionáveis prioridades, nos deixam ali, plantadas, somem, desamparam velhos amigos, grandes (possíveis) amores, com a condenável ilusão de que, quando voltarem, quando resolverem X ou Y, tudo estará do mesmo jeito. As pessoas, porém, não são plantas: como triatonistas, nós nos movemos adiante, pedalamos, corremos e nadamos sempre em rios diferentes.
(22 de janeiro de 2013).Gelly A.http://www.blogger.com/profile/03516917825618348100noreply@blogger.com3