Foi no mesmo dia em que Gabriel, vendo o rastro de um avião a jato sobre o céu de verão, pensou se tratar de um arco-íris branco.
Paula, então com quatro anos, encontrou, no pátio da escola, sob o abacateiro, uma borboleta de cores febris. Notou, com alegria, ser ela menor do que suas mãozinhas, ainda puras e limpas, de unhas arredondadas e muito curtas. As asas tremiam como a fragilidade. Paula aproveitou-se de uma repartição externa da mochila cor-de-rosa-choque. Guardou a borboleta. Calabouço sintético, grades de zíper. A professora acenou. A aula começava.
A borboleta tinha sido uma lagarta ansiosa. Deixara o casulo no nascer daquela manhã, prematura. Cambaleara, bêbada de luz e ar. O orvalho lavou suas asas e cobriu de fragrâncias suas expectativas. Voou. Alto, alto. O sol enchendo o dia da misericórdia dos trópicos, confusa e preguiçosa. Cansada, ela pousou sobres as raízes úmidas, expostas, daquele pé de abacate. As risadas das crianças a atordoavam, múltiplas.
Paula não pôde prestar atenção aos primeiros minutos de aula. Não via a hora de encontrar a mãe na saída e mostrar a ela sua linda borboleta. Depois, distraiu-se com os trabalhinhos, brincou com tinta guache, desenhou flores e um cachorro com a língua para fora. Lanchou gelatina de morango, biscoitos de chocolate e suco de uva. Não quis comer a maçã. Dividiu as balas com as coleguinhas.
Quando a aula acabou, Paula lembrou-se do que trazia dentro da mochila, artigo precioso, objeto de luxo e asas. Correu até a saída. Percebeu, com decepção, ser a babá quem a esperava à porta da escola. Onde está minha mãe?, quis saber. Tinha ido ao dentista. Entrou no carro, emburrada.
Ficou feliz, entretanto, quando saiu do banho: a mãe já havia chegado, com uma obturação e um vestido novo. Paula correu até ela, cheia de abraços. Depois falou, com sorrisos: tenho um presente pra você! Tenho um presente pra você!
Foi até o quarto, buscou a mochila. Abriu o zíper.
A borboleta estava lá. Murcha, leve, maleável. Morta.
Um grito muito forte. A mãe a abraçou, assustada. Paula chorou. A borboleta morreu... ela morreu...
A babá trouxe água com açúcar num copo de vidro alongado, fino.
Paula soluçava, amparando o pequeno cadáver em sua mãozinha pura, lavada, cheirando a sabonete de pêssego.
Enterraram a borboleta em um vaso de avencas que enfeitava a sacada do apartamento, no oitavo andar.
Nunca souberam, porém, dos movimentos daquelas asas no espaço sufocante do bolso de mochila rosa-choque. De que pensara a borboleta que, caso se agitasse mais e mais, escaparia. Nunca souberam de sua perplexidade diante do em vão. Do quanto quis ela um copo de oxigênio e luz para se embriagar novamente, embebedar-se outra vez de céu, vôo, vida.
Suas asas febris guardaram por muito tempo o doce e nefasto perfume do sabonete de pêssego.
(25 de julho de 2008)
quarta-feira, 21 de março de 2012
domingo, 4 de março de 2012
E o parque não parou de funcionar
Felizmente, já não era preciso ir a pé ao trabalho. Nem de ônibus ou metrô. E o carro tinha ar condicionado e trava elétrica, como eles haviam sempre sonhado. Elétrica também era a cerca que protegia a casa e o jardim. Fora possível, além disso, construir uma churrasqueira no quintal e inserir ali uma piscina de poucos litros, para os dias de maior calor. Mas jamais se esqueceriam de que o dinheiro para isso fora fruto da indenização pela morte da filha, adolescente que caíra de um brinquedo muito alto, em um parque de diversões.
(04 de março de 2012.)
(04 de março de 2012.)
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