quarta-feira, 21 de março de 2012

Infâncias

Foi no mesmo dia em que Gabriel, vendo o rastro de um avião a jato sobre o céu de verão, pensou se tratar de um arco-íris branco.
Paula, então com quatro anos, encontrou, no pátio da escola, sob o abacateiro, uma borboleta de cores febris. Notou, com alegria, ser ela menor do que suas mãozinhas, ainda puras e limpas, de unhas arredondadas e muito curtas. As asas tremiam como a fragilidade. Paula aproveitou-se de uma repartição externa da mochila cor-de-rosa-choque. Guardou a borboleta. Calabouço sintético, grades de zíper. A professora acenou. A aula começava.
A borboleta tinha sido uma lagarta ansiosa. Deixara o casulo no nascer daquela manhã, prematura. Cambaleara, bêbada de luz e ar. O orvalho lavou suas asas e cobriu de fragrâncias suas expectativas. Voou. Alto, alto. O sol enchendo o dia da misericórdia dos trópicos, confusa e preguiçosa. Cansada, ela pousou sobres as raízes úmidas, expostas, daquele pé de abacate. As risadas das crianças a atordoavam, múltiplas.
Paula não pôde prestar atenção aos primeiros minutos de aula. Não via a hora de encontrar a mãe na saída e mostrar a ela sua linda borboleta. Depois, distraiu-se com os trabalhinhos, brincou com tinta guache, desenhou flores e um cachorro com a língua para fora. Lanchou gelatina de morango, biscoitos de chocolate e suco de uva. Não quis comer a maçã. Dividiu as balas com as coleguinhas.
Quando a aula acabou, Paula lembrou-se do que trazia dentro da mochila, artigo precioso, objeto de luxo e asas. Correu até a saída. Percebeu, com decepção, ser a babá quem a esperava à porta da escola. Onde está minha mãe?, quis saber. Tinha ido ao dentista. Entrou no carro, emburrada.
Ficou feliz, entretanto, quando saiu do banho: a mãe já havia chegado, com uma obturação e um vestido novo. Paula correu até ela, cheia de abraços. Depois falou, com sorrisos: tenho um presente pra você! Tenho um presente pra você!
Foi até o quarto, buscou a mochila. Abriu o zíper.
A borboleta estava lá. Murcha, leve, maleável. Morta.
Um grito muito forte. A mãe a abraçou, assustada. Paula chorou. A borboleta morreu... ela morreu...
A babá trouxe água com açúcar num copo de vidro alongado, fino.
Paula soluçava, amparando o pequeno cadáver em sua mãozinha pura, lavada, cheirando a sabonete de pêssego.
Enterraram a borboleta em um vaso de avencas que enfeitava a sacada do apartamento, no oitavo andar.
Nunca souberam, porém, dos movimentos daquelas asas no espaço sufocante do bolso de mochila rosa-choque. De que pensara a borboleta que, caso se agitasse mais e mais, escaparia. Nunca souberam de sua perplexidade diante do em vão. Do quanto quis ela um copo de oxigênio e luz para se embriagar novamente, embebedar-se outra vez de céu, vôo, vida.
Suas asas febris guardaram por muito tempo o doce e nefasto perfume do sabonete de pêssego.
(25 de julho de 2008)

2 comentários:

  1. Que belo este texto... triste e pulsante, forte e suave ao mesmo tempo, tocante com suas palavras bem encadeadas e bem escolhidas, com seu ritmo de lamento... e essa espécie de paradoxo de encontrar a beleza na morte.

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