domingo, 29 de agosto de 2010

Arthur Bernardo

Por duas vezes, dei de presente – a um então-amigo e a um então-namorado – um peixe beta azul. No primeiro caso, o peixe ganhou o nome de “Rumble”, em homenagem àquele que veio a ser o primeiro filme do Coppola a que assisti. No segundo, o nome (composto) era uma homenagem ao então-casal que formávamos, e recebeu, posteriormente, uma peixinha que lhe fizesse companhia – mas em aquários separados, que é como funcionam os relacionamentos modernos dessa espécie aquática. Segui pensando que um peixe combinaria muito bem com a decoração do meu pequeno apartamento, mas, sabe-se lá por que, jamais comprei um para mim. Talvez pensasse que faria mais sentido se fosse um presente. Porque oferecer a alguém um peixe ou uma planta é um voto de confiança, como se disséssemos: “eu confio na sua capacidade de cuidar.” Ao menos, sempre foi assim para mim. Pois bem. Cerca de um mês atrás, ganhei, de dois alunos meus – Arthur e Bernardo –, um peixe beta que, coincidentemente, é azul. Agora, Arthur Bernardo – ou Tutubê, como apelidou outra aluna, a Lara – enfeita o móvel da sala e, mesmo na sua limitada euforia, dá à nossa casa um significado novo, como o terceiro habitante que, de fato, é. Foi com ele, afinal, o meu primeiro encontro no dia do meu aniversário. Convenhamos, fazer aniversário nunca é fácil, porque, como o Natal e o Ano Novo, é uma data que nos recorda de que mais um ano escorreu invisível diante de nossos olhos, nos arrastando com ele, em suas frustrações, vitórias e apatias, e que é hora de virar mais uma vez a ampulheta, e torcer para que a areia caia mais devagar desta vez. Mas, felizmente, este ano foi mais fácil do que muitos outros. E grande parte disso se deve ao beta azul no aquário pela manhã: porque ele me fez pensar nos meus alunos, e não só neles, mas em todas as pessoas que me são importantes, de que eu gosto e pelas quais me sinto “gostada”. E tudo foi ficando ainda mais simples à medida que o dia passava, com a festa linda do 8º ano – com direito a torta de limão, pudim de pão, brigadeiro, cartaz e balões preto-e-brancos, em homenagem ao “Curíntia”–, os telefonemas, os e-mails, as palavras, os abraços e tantos presentes recheados de significados os mais bonitos. Juntar carinhos é um jeito excelente de sentir o tempo passar – mas que passe lentamente, por favor, que a vida é boa, e é só uma.

(29/08/2010)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ouvindo Calamaro e Soda Estereo

“Pessoas foram feitas para serem deixadas, como apartamentos alugados e pequenas cidades do interior.” Assim começava um texto a que dei início há muito tempo e que nunca consegui terminar. Talvez porque, se não me falha a memória, se parecesse bastante com alguma coisa que eu lia na época, Caio Fernando Abreu ou algo assim. Volta-me, às vezes, como um estribilho, mas a que não consigo dar continuidade sem engastalhar em clichês e pieguices. Volta-me, agora, por associação: falaram-me, há poucos dias, sobre dois filmes que não revejo há muito tempo: “Antes do amanhecer” e “Antes do pôr-do-sol”, com aquele casal belíssimo, a Julie Delpy e o Ethan Hawke. Os dois se conhecem por acaso em um trem para a Áustria, vivem um romance intenso como um poema feminino, depois se despedem – para se encontrarem, uma década depois (no segundo filme), casualmente, em Paris. É, a princípio, uma história sobre a beleza das coisas passageiras, sobre “as coisas findas que (muito mais que lindas)” ficariam... Mas o roteirista não dá conta: ele insere essas confortáveis reticências, essa parte dois, esse “e eles decidem ficar juntos no final”. Porque nós, na maioria das vezes, também não damos conta: a gente fica esperando as cenas do próximo capítulo, o reencontro, o dia seguinte. E não entende que há coisas na vida que só podem durar um instante, que enferrujam no segundo amanhecer, que logo viram pôr-de-sol. Faço aniversário daqui a alguns dias e, enquanto alguém num lugar distante diz pensar em mim ao assistir a esses filmes românticos, peço que a idade ímpar que alcanço agora traga-me sobretudo a inteligente desesperança na parte dois de certas coisas.

(17/08/2010)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A sexta história

Despertou-me a balada antiga, desconhecida, que exalava o rádio-relógio em voz baixa. No visor, em vermelho, as sete horas com vinte e cinco eram desmentidas pelo escuro da noite que ainda pesava do outro lado da janela sem cortinas. Estendi a mão até o celular, a fim de certificar-me: não, não havia perdido a hora, eram ainda quatro da manhã, uma hora e meia até o momento de me levantar. Fui até o rádio-relógio para tentar, em vão, desligá-lo. O som continuava. Puxei o fio da tomada. Deitei-me. Não consegui, porém, conciliar o sono. Formigas. Amarelas, espaçosas. Havia visto, dias antes, um casal desses insetos escalando a cômoda. “As formigas estão partout, como os chineses”, pensei, com descaso. Agora, porém, a certeza me atingia como uma bofetada: eram elas as culpadas pela insanidade do rádio-relógio que, por mais de vinte anos, nos despertara, a toda a nossa família, sem aflições ou demoras. Remexia-me, como um ilustre cadáver desonrado, buscava a tranqüilidade em pensamentos bons. Mas era tarde demais: sentia a sujeira do de dentro daquele aparelho, barulhava a devassa população de formigas, vivas, festejantes, zombeteiras. Haviam tomado posse dos azulejos brancos, dos cantos mais íntimos da casa, e agora, também, da minha madrugada. Não pude me conter: arranquei o rádio-relógio do quarto, misto de pena e ira, e o levei até o tanque. Lavei-o. A torneira aberta, a pressão ruidosa da água, as gotas que molhavam meu pijama leve de verão. E o desespero: aos montes, as formigas corriam para fora do aparelho inundado; frenéticas. Eu enchia o tanque, como a uma piscina, e depois esperava que os corpos inertes descessem pelo ralo, em rodopios. Então, quando parecia estar oco daquelas pequenas monstruosidades, enrolei o rádio em uma sacola plástica e atirei-o à lixeira do condomínio. Tomei um banho demorado, tentando tirar de mim o rastro daquela violência doméstica. Mais tarde, no trabalho, queixei-me de formigas – e esperei que alguém me passasse a receita de um elixir da longa morte, talvez açúcar e gesso, talvez um veneno qualquer, vendido na Araújo drugstore.
(04/08/2010)