A cor do jaleco não deixava dúvidas: era, sim, um médico; uma dessas pessoas que a gente chama de doutor, e na frente das quais se sente constrangido ao pronunciar nomes de antibióticos e procedimentos cirúrgicos. Era, porém, um médico de atestado médico. Desses que atendem em uma sobreloja da rua Paraná e que não se importam com os encardidos deixados sobre o tecido branco. Desses que mal perguntam o seu nome, apenas medem a sua pressão, manipulam com desleixo o estetoscópio, depois anotam com descaso, marcando um X aqui outro acolá, o histórico de doenças da sua família. Exames do Detran, demissionais, admissionais... Ah, e esse último... simplesmente o matava: indivíduos recém-contratados, com sua enervante alegria por terem conseguido um emprego novo, que vai quitar as dívidas, financiar a moto, aumentar o status social. E ele ali: na mesma. Estetoscópio, inspira e expira, diabetes na família?, bebe?, fuma?. Um saco. A felicidade imbecil do resultado do vestibular, tantos anos de cursinho antes, tantos anos de faculdade depois, o preço exorbitante daqueles livros pesados, e tanto corte e tanta cobaia e tanto nome de osso, tanto sangue e tripa na merda da residência no pronto socorro... pra quê? Estetoscópio, inspira, expira, diabetes na família?, bebe?, fuma?. Merda. Não podia haver emprego pior do que o dele.
Mas então ele pensava no rapaz do laboratório de análises clínicas. E pedia – sorrindo, disfarçado – um exame de fezes, só por garantia.
(20 de janeiro de 2010.)
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é, semanas de enfermaria vão e vem, há de se tirar inspiração delas! muito boa essa dosagem, sensibilidade/ ironia. o blog começa promissor - melhor do que a idéia de ficar com histórias de "menininhas"...
ResponderExcluirÁcido.Deliciosamente ácido. A crônica de uma frustração. Como a vida pode ser entediante!!!
ResponderExcluirSaco, merda.
Explosões são mesmo necessárias!!!