Maicom acordou cedo. Nada para fazer em casa, foi até a rua, sentar-se no primeiro pedaço de meio-fio que encontrasse. O céu tinha um azul ralo e as janelas dos prédios do arredor ainda estavam fechadas. Era domingo. Também poderia, como os outros, dormir até mais tarde. Mas a mãe roncava alto. A irmã menor acordava sempre, aos berros, pedindo algo que tapasse a fome. E o irmão mais velho, que escancarara a madrugada com tropeços trôpegos e garrafas pela metade, sacolejantes, xingava a menina com palavrões que ele não podia repetir na escola. Mas repetia mesmo assim, escondido.
Não tinha espaço para brincar dentro de casa e, aos domingos, não havia desenho animado nos canais abertos de sua televisão de poucas polegadas. Então ficou ali, sentado, esperando alguém chegar, assim como – descobriria anos mais tarde – fazemos durante boa parte de nossas vidas.
O pai não chegaria. Há algum tempo conhecera uma moça que trabalhava à noite, na rua Guaicurus: salto plataforma, tinta verde no cabelo, batom violeta. Nunca havia visto coisa parecida; não voltou mais desde então. O pai, sujeitinho ordinário, como no verbete do pequeno Aurélio:
ordinário adj. 1. Que está na ordem usual das coisas; habitual, comum. 2. Regular, frequente. 3. De má qualidade; inferior. 4. De baixa condição; baixo, grosseiro. 5. Bras. Sem caráter; reles, ruim. 6. O que é habitual.
O pai tinha uma sociedade com o filho mais velho, algo como “Jorge & filho LTDA”. Negócio bem localizado, na Praça Sete, Avenida Afonso Pena. Ele, banguela e magrelo, vestia o colete amarelo berrante: “Compra-se ouro”. O cliente se aproximava, mostrava a corrente, o anel, a aliança de um amor desalmado. Ele avaliava, ar de especialista, oferecia um preço reles. O freguês praguejava e partia. Então o filho mais velho, Elvis, surgia correndo, arisco, como se não surgisse, passadas de guepardo, e levava o ouro por um preço menor ainda. 0800. Depois vendiam para a matriz. Trabalhavam com franquia. Mas os negócios iam bem. Quanta gente ingênua no mundo, Meu Deus!
Um tempo depois, quem sabe, Maicom também entraria para a equipe.
Por enquanto, olhava as pessoas que caminhavam em torno do córrego fétido e raso.
Quanta gente ingênua, Meu Deus!
Dona Nair, secretária de dentista, uma vez quis vender um colar de ouro, herança de tia-avó, para ajudar o caçula a comprar um carro de segunda mão. Foi freguesa de “Jorge & filho LTDA”. Nem viu o menino chegar nem partir. Só viu o arranhão de sua unha preta, felina, depois. Teve nojo. Mas não disse isso a ninguém. Apenas repetia, trêmula, fingindo calma, “vai-se o colar, fica-se o pescoço.” Ficou triste, mas ninguém percebeu.
Dona Nair também caminhava em torno do córrego fétido. Não era gorda, mas o culote a incomodava. E alguns pneuzinhos que a blusa de malha, larga, disfarçava. Ela caminhava, taciturna. Também um senhor de camisa pólo, e mais dois, com ares juvenis, óculos escuros, poucos fios de cabelo, calvície bem resolvida.
Maicom não era bom com esportes. Tão pequeno, tão mirrado, acabava sendo sempre o último a ser escolhido para o time. Nem para goleiro servia. Desgostou de jogar bola, só jogava se fosse de gude. Não via a hora em que fosse grande e pudesse tomar cachaça no botequim. Um dia tentara, com o boné fazendo sombra nos olhos de menino ansioso. O homem do bar riu, deu um guaraná. Ele ficou com raiva. Se estava pagando, tinha que ser atendido. Bebeu o refrigerante mesmo assim, jogando, antes, um pouco para o santo, como o avô falecido lhe ensinara.
Tinha só 12 anos, mas já lhe eram suficientes.
O azul do céu era ralo. O ralo de seu banheiro estava entupido com biras de cigarro e cabelo. A casa era um quarto e uma privada, um chuveiro com fios à mostra, e todas aquelas pessoas. Nomes de artista. E ele tão pequeno que nem para jogar bola servia. E tão ruim em matemática que dava o troco errado quando vendia bala no sinal. Saía no prejuízo. Queria comer pão com manteiga e tomar pingado de boteco. Queria ser grande. Queria poder um pouco mais.
Tinha só 12 anos, mas suas vontades já lhe eram suficientes.
Os senhores corriam em torno do córrego. Só Dona Nair é que não. Nem dava conta, coitada. Só andava, lenta. Trazia um porta-moedas. Depois iria à padaria, trazer uma rosca-rainha para o filho e dois reais de pão-de-queijo.
Sua vontade cresceu, cresceu o olho para cima do porta-moedas, visão de raio X.
Fome de pão com manteiga, preguiça de esperar, preguiça de descobrir que não tinha nada para comer de novo, preguiça de esperar ser grande para ser gente.
Maicom pegou uma pedra.
Era pequeno, mas uma pedra grande o agigantava.
Nada para fazer, a mãe roncava, o pai com a mulher da rua Guaicurus.
Era apenas uma pedra, porém não era tão apenas assim: tinha sido a primeira arma do mundo, a de Caim e Abel.
─ Me dá o dinheiro! – ele gritou, com a voz aguda e desafinada de um menino com medo.
─ Não. – Dona Nair desacreditou da força do moleque magricela mal vestido.
─ Dá sim! Agora! – e ele mostrou a pedra, ameaçador.
O senhor de camisa pólo correu mais depressa. Queria ser herói no domingo de manhã, contar a história para os colegas, enquanto comesse o tropeiro do Mineirão mais tarde.
─ Para com isso, menino! – gritou.
Maicom atirou a pedra. Errou. Não tinha mira, não tinha força. Só tinha vontades.
O homem deu-lhe um tapa na nuca. E gritou, como se grita com um cachorro, como se grita com suas pulgas e sarnas:
─ Vai embora! Anda! Vai embora, moleque filho da puta!
Era o herói da semana.
Dona Nair estava aliviada. Ainda existiam homens como antigamente.
A mãe de Maicom não queria ter outro bandido em casa, por isso ele ia ao colégio. E o bolsa-escola era sempre uma ajuda muito bem vinda.
Mas o pai já contava com o auxílio dele para ampliar os negócios.
E Maicom só tinha vontades.
Foi para casa, rabo entre as pernas, moroso, pequeno, mirrado, fracote.
Tinha que crescer antes da hora, tornar-se um homem, deixar de ser só vontades, correr atrás, realizar. Na semana seguinte – prometeu-se – levaria um canivete.
(03/06/2007)
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Gostei! Muito bom!
ResponderExcluirMuito Legal!!
ResponderExcluirP.S.: Qual é a dessa sua atração por domingos? Todo texto que você faz é domingo!!!
Legal, depois disso O MOLEQUE MALTRAPILHO se tornou "Zé Pequeno". E contribuiu ainda mais p/ o tráfico internacional.
ResponderExcluirGostei da escolha, nada melhor q a realidade brasileira.