quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A sexta história

Despertou-me a balada antiga, desconhecida, que exalava o rádio-relógio em voz baixa. No visor, em vermelho, as sete horas com vinte e cinco eram desmentidas pelo escuro da noite que ainda pesava do outro lado da janela sem cortinas. Estendi a mão até o celular, a fim de certificar-me: não, não havia perdido a hora, eram ainda quatro da manhã, uma hora e meia até o momento de me levantar. Fui até o rádio-relógio para tentar, em vão, desligá-lo. O som continuava. Puxei o fio da tomada. Deitei-me. Não consegui, porém, conciliar o sono. Formigas. Amarelas, espaçosas. Havia visto, dias antes, um casal desses insetos escalando a cômoda. “As formigas estão partout, como os chineses”, pensei, com descaso. Agora, porém, a certeza me atingia como uma bofetada: eram elas as culpadas pela insanidade do rádio-relógio que, por mais de vinte anos, nos despertara, a toda a nossa família, sem aflições ou demoras. Remexia-me, como um ilustre cadáver desonrado, buscava a tranqüilidade em pensamentos bons. Mas era tarde demais: sentia a sujeira do de dentro daquele aparelho, barulhava a devassa população de formigas, vivas, festejantes, zombeteiras. Haviam tomado posse dos azulejos brancos, dos cantos mais íntimos da casa, e agora, também, da minha madrugada. Não pude me conter: arranquei o rádio-relógio do quarto, misto de pena e ira, e o levei até o tanque. Lavei-o. A torneira aberta, a pressão ruidosa da água, as gotas que molhavam meu pijama leve de verão. E o desespero: aos montes, as formigas corriam para fora do aparelho inundado; frenéticas. Eu enchia o tanque, como a uma piscina, e depois esperava que os corpos inertes descessem pelo ralo, em rodopios. Então, quando parecia estar oco daquelas pequenas monstruosidades, enrolei o rádio em uma sacola plástica e atirei-o à lixeira do condomínio. Tomei um banho demorado, tentando tirar de mim o rastro daquela violência doméstica. Mais tarde, no trabalho, queixei-me de formigas – e esperei que alguém me passasse a receita de um elixir da longa morte, talvez açúcar e gesso, talvez um veneno qualquer, vendido na Araújo drugstore.
(04/08/2010)

6 comentários:

  1. Legal! Agora eu sei porque os objetos eletronicos de hoje tem pouca vida útil, e sei porque as pessoas querem se suicidar.

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  2. Pois então, eu já havia notado que essas formigas viriam a nos dar trabalho. E o lance delas é tocar o terror enquanto nós dormimos, mesmo, já as supreendi festejando com seus movimentos rápidos durante a madrugada. Mas eu não mato animais, só acidentalmente, então deixei que elas vivessem por aí. Pobrezinhas, irritaram a parte brutal da família - e pobre rádio-relógio! As formigas não levam jeito para DJs?
    O texto foi feliz, deu para sentir o mal humor de quem é acordado no restrito tempo de sono.

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  3. Muito bom! Tá parecendo o refrigerador antigo aqui de casa, que estava desligado quieto num canto. Um certo dia, fomos abri-lo e saíram umas 2 mil formigas. Passamos 1 hora e meia pra matar todas.

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  4. Fico me perguntando se você dá um fim só nas formigas ou em pessoas também. Pago bem para você descer uma pessoa por ralo abaixo.Vou depositar na conta do banco como faço ao comprar gabarito, ok?

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  5. É muito interessante como incidentes prosaicos podem servir de metáforas poderosas para a vida. Excelente o texto!

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  6. Claro que gostei!Gosto desse desespero que nasce das coisas nas nossas mais escuras solidões. Gosto da maneira como a natureza se torna terrível e ameaçadora, pegajosa...
    E vc sabe que Clarice é o amor da minha vida. rs
    Belíssima homenagem, é claro,com o teu toque e com o teu traço, sempre, sempre tão peculiares....
    Bjus

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