domingo, 7 de março de 2010

Flúvio

DESCULPEM, SEI QUE O TEXTO É GIGANTE E INADEQUADO AO FORMATO DE BLOG... MAS HOJE NÃO CONSEGUIRIA POSTAR ALGO DIFERENTE.

Flúvio é um garoto muito esperto, que tem agora seus sete anos, um nariz arrebitado e uma imensa capacidade de deixar extenuadas todas as pessoas que se oferecem para brincar com ele. Não sei de onde vem esse nome, nem a procedência do dono do nome, a cidade em que ele nasceu, ou vila ou município, e acredito que nem a mãe dele saiba de verdade a origem do espermatozóide que fez metade do trabalho de criação. Ou um terço: porque a Mãe Natureza tem lá sua contribuição.
Enfim, um dia ele surgiu, como esses bebês que vêm num cesto, com um bilhete dizendo “Cuide dele”, e um ursinho velho e malcheiroso. Minha família se afeiçoou do seu jeitinho de bicho do mato e de um dente seu que já nasceu torto. Aos poucos, fomos ensinando a ele o nome das cores e as letras do alfabeto e a olhar para os lados antes de atravessar a rua. E agora ele vive correndo de um lado para o outro no asfalto que separa a minha casa da dele. Ele chega lá, acorda meu irmão, pulando violentamente sobre o coitado, e pede que grave um CD para ele – do Slipknot, da Xuxa ou de algum funkeiro qualquer.
Por dedicar a meu irmão essa preferência descarada, sempre pensei que não gostasse de mim. Sempre, até o dia em que, uns três anos atrás, ele pediu à sua avó (minha tia) que comprasse um presente para mim. Ela comprou: um par de brincos cor-de-rosa, em forma de flor. Florzinhas. Ele foi lá me entregar e me foi muito feliz receber aquele presente dele. Tanto que eu, embora tenha perdido um dos brincos (descuidada!), ainda guardo o outro como lembrança do dia em que descobri que ele me amava – apesar de não me acordar com um pulo todas as manhãs.
Também foi há uns três anos que o vi ter sua primeira cãibra. Ou talvez tenha sido um simples adormecimento do pé, mas, enfim. Ele tentou se levantar e não conseguiu e notou que algo estava errado. Contorcia-se e olhava para o teto e para mim, dizendo “meu corpo! Meu corpo!” Eu o toquei nos ombros e ri de nervoso e falei que logo iria passar, que ficaria tudo bem, como, de fato, ficou. Mas o desespero dele foi meu também, porque descobri que não conseguia explicar a dor a uma criança, e muito menos fazê-la parar de doer. E achei também muito estranha, um misto de caricata e abominável, a sua constatação de seu corpo, de seu pequeno e raquítico corpinho, que ainda lhe produziria muitas coisas. Inclusive dores. Inclusive prazeres.
Um dia, meu pai me apresentou as amoras. Estávamos passeando perto da casa de meu avô paterno e então ele avistou uma amoreira. Apanhou um dos frutos e me disse: “isso é uma amora”. E eu a pus na boca e pensei, enquanto o suco escorria pela minha língua: “olha só! Isso é uma amora”. Foi uma das únicas apresentações formais que tive das coisas do mundo. Porque, em geral, elas nos atropelam, nos derrubam, nos carregam, e mal conseguimos distinguir o tempo de localizá-las ou chamá-las pelo nome.
Depois vi um filme em que as amoras salvavam a vida de um homem (ironia: o filme se chama “Gosto de cereja” e o super-herói da história é a amora! Idiossincrasias da tradução...). E li também um livro, o “Zorba”, em que o protagonista, também o Zorba, empanturra-se de amoras para começar a detestá-las. E aconselha que façamos o mesmo com tudo na vida, para que nada tenha efeito devastador sobre nós.
(Ingenuidade.)
Mas acabei precisando mudar de cidade e deixar o Flúvio lá. Mesmo assim, às vezes o visito. E tenho a oportunidade de vê-lo enfrentando cachorros, empinando a bicicleta, saltando largos buracos, e me dizendo, orgulhoso, “olha, eu não tenho medo de nada!”.
(Quem dera, Flúvio, pudéssemos todos dizer o mesmo!)
Além disso, sempre recebo notícias dele. Dele e das outras crianças que vieram, por obra da cegonha e não do cesto, engordar a família. Diz meu irmão que, dia desses, o menino teve um sangramento nasal. Disse que ficou sossegado depois, pedindo à minha prima que ele chama de mãe que se deitasse com ele. Imagino a surpresa que sentiu ao, de repente, ver o sangue escorrendo pelo nariz. É claro, ele já é bem crescidinho, e já caiu da bicicleta muitas e muitas vezes, e sabe conceituar o sangue. Mas, acredito, entendia que sangue saía de joelho esfolado, de cotovelo, de ferida aberta de carrapato. Não de nariz.
Dias atrás, uma amiga minha me deu amoras de presente. Fiquei bastante alegre com a lembrança, mas não consegui me empanturrar delas, como o Zorba. Porque eram, sim, doces e suculentas, mas não eram a amora da minha recordação. Não se empanturra de mundo inteligível no mundo sensível.
E, às vezes, tenho vontade de dizer isso ao Flúvio. Pedir que seja um menino-rio, que escorra pela vida, que toque, que molhe e prove as coisas todas. Mas que não se demore, que não se demore o tempo de um longo abraço sem retorno. Que não deixe que nada o prenda. Que ele seja sempre o mesmo, mesmo na ausência de qualquer coisa.
(Ingenuidade das ingenuidades!)
A verdade é que sei que ele vai crescer. Vai aprender a trocar lâmpada e colar na prova de geografia. E vai descer no ponto errado do ônibus e caminhar muitos quarteirões de volta. Ou terá um pneu furado numa estrada solitária ou um tombo da motocicleta. Talvez leve uma surra dos colegas do colégio. Talvez bata neles e se sinta “o foda”, e depois não entenda por quê. Pode ser que se candidate a vereador. E perca. Talvez, não. Pode ser que seja craque de time de várzea. Ou advogado. Ou mecânico. Ou dentista. Ele vai crescer e vai se apaixonar. E ela será o eixo de toda a sua vida por semanas, meses ou anos. Até que um dia ela diga que ele é uma pessoa legal, mas que ela precisa ir. É, talvez ele se apaixone e nunca ouça a frase preferida dos amantes sequer uma vez. E ele vai querer morrer, mas aí vai encontrar também uma pessoa legal. E eles se casarão e terão filhos legais. Ou não: talvez não se casem; talvez não tenham filhos; talvez os tenham, mas eles não sejam legais.
Enfim, como as memórias que envelhecem, os sabores que se destoam, confundidos por novas realidades mais palpáveis, também Flúvio vai crescer. E talvez leia um livro que a professora mandou. Talvez me dê presentes outra vez. Talvez perca o emprego. Talvez o seu time perca o campeonato, caia para a segunda divisão. E ele descobrirá que o enredo dos episódios de Scooby Doo é o mesmo, que só se mudam o nome dos fantasmas e os locais de investigação. E Flúvio perceberá que, sim, há coisas das quais ele tem medo. Muito medo.
E haverá um dia. Daqui a muito tempo, eu espero. Quando ele já tiver experimentado todos os tipos de sensações, toda a sorte de sinapses e alterações cardíacas. E estiver morando sozinho, ou em uma república, ou quando sua esposa legal tiver viajado. Um dia em que, quando sentir fome, ele irá até a cozinha para preparar o seu Nissin Miojo Lamen. E, depois, Flúvio irá comê-lo em frente à TV, assistindo a algum programa de esportes. E quando der a quarta garfada, ou pode ser a quinta, ele olhará para o teto e perceberá que a vida está bem distante da salvação pelas amoras. A vida é um grande prato de Nissin Miojo Lamen: por mais que você incremente, mude o tempero ou tempo de cozedura do macarrão, ela continua insossa, prosaica, previsível.
Ele se perguntará por que ainda olha para os lados antes de atravessar a rua – quem foi que ensinou isso a ele, Meu Deus? E dará a sexta garfada no macarrão instantâneo.

(01/11/04.)

3 comentários:

  1. Essa efemeridade da vida me dá medo. Não é verdade que há momentos que se queria pudessem ser esticados, como se o tempo fosse um elástico cujo tamanho pudesse ser facilmente manipulável?

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