terça-feira, 30 de abril de 2013

6 dollars per hour

Em BH, tive, por muito tempo, um lugar favorito: um cinema chamado Usina. Era pequeno, com duas salas discretas, onde se projetavam os ditos filmes de arte, ao lado de um charmoso café/restaurante e uma livraria cara, mas de qualidade. A vida sempre me levava para lá, fosse por causa de empregos, namorados ou candidatos a. Meu prazer maior, no entanto, era solitário: o filme reverbera mais à vontade quando se está sozinho. O lugar foi fechado, no entanto, com promessas não cumpridas de uma reforma e de posterior reabertura em alto estilo. Também, pudera: o lugar vivia à míngua. Em Paris, essa diferença assusta: os eventos culturais, os locais voltados para a arte, realmente lotam. Por isso, proliferam. Um desses espaços, que elegi de cara como, a mim, mais caro do que a Torre Eiffel, é o Forum des Images, dentro da estação Châtelet-Les Halles. Além das salas projeção, há um café, a biblioteca François Truffaut, totalmente voltada para o cinema, além de alguns espaços de convívio, com sofás superconfortáveis, onde se pode simplesmente estar. Há ainda a parte das coleções, em que se tem acesso a milhares de filmes de qualidade. Na última sexta, estive lá para, entre outras coisas, prestigiar o festival “Séries Mania”, dedicado a séries de TV do mundo inteiro. A programação era imensa, difícil saber a que assistir, e acabei diante de uma produção israelita chamada “6 dollars per hour”. Câmera na mão, estética da simplicidade, do chão-a-chão, três protagonistas, faxineiras, com diferentes dramas tratados com muito realismo e intimidade. Adorei. Na saída, um livreiro distribuía suas ofertas sobre a mesa. Parei, é claro, e, por acaso, justamente no meio de duas francesas cheirando a burguesia. Fiquei ali, entre o fogo cruzado das madames, que criticavam a série, chamando-a de “miserista” e “mal-filmada”. Como quem passa por debaixo da cruz e da espada, afastei-me, incrédula, indo buscar um livro de bolso mais à esquerda. Incrível o desejo dos franceses de fechar os olhos para a pobreza, inclusive para a deles mesmos, que se alastra como o zumbido feroz de uma miríada de gafanhotos. Interessante como não basta frequentar lugares de arte para se deixar sensibilizar por ela. (30 de abril de 2013)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Confins, alturas e Países Baixos

Leiden é uma grande universidade, que, a exemplo de Viçosa, possui uma pequena cidade. E, o mais importante: ela se localiza na Holanda, o país de origem do The Gathering. Tudo bem, há muito mais aqui – escrevo ainda de dentro do aeroporto de Amsterdam-, como o parque das tulipas, o museu do Van Gogh, o famoso Red Light District, as bicicletas, os moinhos, o Tribunal Internacional de Haya, a arquitetura moderna e as esculturas nas ruas de Rotterdam, a qualidade de vida de Utrecht, com seus canais, gaivotas e patos coloridos, a beleza plana das estradas vistas pelo vidro limpo dos trens mais pontuais, a gentileza das pessoas... Mas, quando me convidaram a participar de um congresso em Leiden, ironicamente sobre literatura de viagem, a primeira ideia que tive foi a de correr à página do The Gathering e descobrir onde eles tocariam quando eu estivesse nestas terras alaranjadas. Porque era um ideal, bastante simples até, o de vê-los em sua terra natal, em sua homeland. E eis que, quatro dias depois da jornada de estudos, lá estariam eles, em Emmen, na outra ponta do mapa, no norte, quase resvalando para a Alemanha, mas ainda nos Países Baixos. Comprei o bilhete, em holandês, com auxílio do tradutor do Google, para uma casa de show chamada Blanko, que, vim a saber, pertencia a um português. E fui. O lugar era tão pequeno, tão parado em um tempo de singeleza e tranquilidade, que foi difícil encontrar mesmo um local onde me hospedar. Mas achei e era perto: da estação, do concerto, dos realejos no centro comercial da cidade – porque, ali, o conceito de distância era o daquilo que superava quinze minutos a pé. A primeira alegria da noite foi o encontro com uma chilena ultrassimpática, encarregada de comercializar os álbuns do grupo, a qual, além de me fazer uma grande oferta, revelou-me ser a namorada do guitarrista. Dali, foi como um passe de mágica: o pôster autografado por todos eles, a palheta, o agradecimento público, no meio do concerto: “Estamos falando em inglês, porque soubemos que há alguém de fora aqui...”, disse a baixista, Marjolein. “Brasil! Brasil!”, gritei, do privilegiado espaço da primeira fila. Foi como um sonho. O show foi discreto, como o público, quase mórbido – fácil entender por que todo mundo gosta de tocar na América Latina. Focalizou os dois últimos álbuns e, principalmente, o excelente “Disclosure”, com direito, no entanto, a algumas canções mais antigas, como “Broken Glass”, “Eleanor” e “Shot to pieces”. Ao final, a banda desceu diretamente ao solo, sem a frescura dos camarins, e passamos – especialmente a baixista, a vocalista e eu - um bom tempo conversando sobre “que diabos uma brasileira estaria fazendo ali, em Emmen”. Tornei-me definitivamente fã da delicadeza de Silje, essa guerreira que aceitou o desafio de substituir a Anneke, e que tem feito um trabalho apaixonante. Depois passei três dias (até aqui) revendo as fotos, os vídeos, e tentando espalhar pelo resto da Holanda o pólen de uma noite sem igual. (22 de abril de 2013)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Almodóvar - I, II e III

O que eu sempre gostei nos filmes do Almodóvar foi a sensação de que, como para o Lucas Silva e Silva, do “Mundo da Lua”, tudo pode acontecer. E quando eu digo “tudo”, I mean “everything” mesmo. Claro, depois de um tempo, você entende que a receita tem sempre um travesti, dois homossexuais (um deles, enrustido, talvez), uma lésbica, um bissexual, um filho traumatizado, uma canção brasileira, muita cor e muito sexo - as maneiras mais inusitadas de sexo, aliás. Mas, ainda assim, a primeira cena abre sempre um oco de deliciosa curiosidade dentro de mim: o que será que ele vai inventar desta vez? Em seguida, vem a fase do reconhecimento: a mulher do “A flor do meu segredo!”, “la consejala antropófoga!”, o cara do “De salto alto!”, aquela freira do “Maus hábitos!”... e tudo isso com a infantil alegria de quem vê o mesmo filme muitas vezes e sabe, inclusive, repetir alguns diálogos. Aos poucos, minha mente vai listando as circunstâncias dos meus encontros com Almodóvar: “Fale com ela” eu vi no cinema, com o Petrus; “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, na biblioteca da Escola de Belas Artes; “Kika”, foi no curso de Autores e Estilos; “O eu fiz para merecer isso”, eu vi com o meu irmão, num domingo à noite, “Má educação”, foi num sábado à tarde, com a Fernanda, que trabalhava comigo na Reitoria... E, na última quinta, com a Íris e a Natascha, duas novas amigas-vizinhas (e olha que nunca gostei de conjugar essas duas palavras!), fui ao cinema assistir à estreia de “Os Amantes Passageiros”: uma experiência de profundo déjà vu e muito humor escrachado, como se o diretor fizesse questão unicamente de se ater – atar? – a duas palavras: amantes + passageiros. A partir daí, os personagens poderiam ter vida própria e seguir livremente a trilha do nonsense, a seu bel, e intenso, prazer. Deixei o cinema com vontade de dançar, e intrigada com a possibilidade de fazer, a partir da filmografia de Pedro Almodóvar, uma colcha de retalhos de dez anos da minha vida. ALMODÓVAR - II Fui ao Hôtel de Ville, com uma polonesa supersimpática que conheci nos complicados ensaios do Réquiem, assistir à exposição de Haute Couture. Nada entendo de moda, mas os grandes nomes dos estilistas ressoam facilmente na nossa memória, e não é tão difícil achar bonito um vestido bonito. Fora que tantos episódios ao lado de Carry Bradshaw, além do incrível aumento de publicações e sérios estudos a respeito do tema, tenham me feito entender que a moda merece respeito. Não me provoca, porém, suspiro comparável ao do museu de Arts et Métiers, ao dar de cara com os instrumentos precursores da fotografia e do cinema, o daguerreotipo, a lanterna mágica, as primeiras câmeras. Foi um dia depois de conhecer a Biblioteca Nacional da França, numa conferência em homenagem a Julia Kristeva; dois dias depois de visitar a Cinemateca ou de ver um concerto de música argentina na Maison da Bélgica, na Cité Universitaire; um dia antes de assistir à “Antígona”, num teatro em Saint- Michel... Talvez isso explique por que eu esteja dormindo tão pouco e tomando tantas canecas carregadas de café extraforte desde que cheguei aqui. ALMODÓVAR - III Esse sentimento de “tudo pode acontecer”, que me assoma no início dos filmes de Pedro Almodóvar, é semelhante ao que experimentamos no princípio dos relacionamentos: ninguém nunca me disse isso, ou tocou ali, ou contou aquilo, ou fez assim, ou. A nova pessoa é sempre uma fortuna de possibilidades, que nos fazem pensar em casamento, filhos, viagens pelo mundo, temendo, apenas com descrente discrição, desfechos dolorosos, insultos, feridas que demoram a cicatrizar. Não é por acaso que outro filme, o “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, dirigido por Michel Gondry, com roteiro de Charlie Kaufman, figure na lista de preferidos de tanta gente: porque nada se compara aos princípios. Apagando-se a memória de trás para frente, teríamos sempre material bonito o suficiente para querer tentar de novo, se nos sobrassem só os começos. (01 de abril de 2013.)