segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Au revoir, 2012!

2012 chega ao fim – em alguns lugares do mundo, aliás, já chegou – e abre espaço para um promissor ano ímpar. Eu, que nunca gostei de anos pares, os quais costumavam, ao menos na nossa família, representar mau agouro, confesso que me surpreendi com um ano repleto de dias bonitos e lugares ensolarados. E, quer a gente queira, quer não, fica essa vontade de “fechar para balanço”, fazer um inventário pessoal, íntimo, do ano que se despede, com aquilo que a memória fez questão de estocar. MELHOR FILME Eu vi e revi alguma coisa do Truffaut e do Bergman, que já têm seu espaço especial no meu coração; voltei a me maravilhar com o “Dolls”, do Takeshi Kitano; não gostei muito da “Roma” do Woody Allen; morri de rir com o “Intouchables”, de Olivier Nakache e Eric Toledano; mas foram dois brasileiros alguns dos grandes ganhadores da categoria: “Natimorto”, de Lourenço Mutarelli, e “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, de Marcelo Gomes e Karin Aïnouz. A voz do Irandhir Santos recitando canções populares consegue transformar o brega em belo como num passe de mágica. Só não leva o ouro, porque o Sérgio Leone surgiu na minha vida, como um caubói solitário cruzando as montanhas do Velho Oeste: “Três homens em conflito” e “Era uma vez no oeste” dividem o primeiro lugar, ao som de Enio Morricone, e sob o olhar fatal do Clint Eastwood. HOMEM DO ANO Poderia ser o Emerson Sheik, o Cássio, o Guerrero... mas vai ser o Clint Eastwood. Ele atua, dirige (deem uma olhada em “Um mundo perfeito”, por exemplo, além das realizações mais recentes), canta, toca piano e arrasa corações – como o “Blondie”/”The Good”, de “Três homens em conflito”, então, nem se fala! Tem 82 anos, mas ganha pelo conjunto da obra. PARTIDA DO ANO Certas partidas foram mais emocionantes; outras, mais sofridas; algumas, mais bem jogadas; mas nenhuma se compara à goleada (!) de 2X0 sobre o temido Boca Juniors, (dois do Sheik), que nos garantiram a conquista da Libertadores e tiraram da boca de todos os secadores do Brasil a piada pronta sobre o Timão. Nem vencer o Mundial, com a ajuda de um atacante peruano chamado emblematicamente de Guerrero – assim, sem o “i”, que é como muito “curintiano” escreveria mesmo – foi tão significativo, tão bonito, tão tudo-que-eu-sonhei-na-vida. SÉRIES Eu comecei o ano viciada em “Modern Family”, que tem mesmo o humor muito criativo e atual; depois comprei todas as temporadas de “Sex and the city”, que, descontados os exageros, o consumismo, a puxação de saco da cidade de Nova York (o Woody Allen já fez isso, gente, e muito melhor!), é uma série a que toda mulher deveria assistir. Conheci, graças a um amigo, o “Awake”, que é uma série tão boa, mas tão boa – inteligente, versátil, emocionante – que não sobreviveu para contar história na segunda temporada. Só que o que tem me feito morrer de rir é mesmo o “Curb your enthusiasm”, com o Larry David, ex-produtor do “Seinfeld”. Aquele tipo de gafe, de situação constrangedora, que poderia acontecer com qualquer um, mas que só acontece com ele. Impagável. LIVROS Talvez essa seja a parte mais difícil. Li muita coisa boa de teoria do cinema, como o Jacques Aumont e o Arlindo Machado. Adorei o livro de tiras do Allan Sieber, que comprei na rodoviária, e o do Quino (sem tirinhas da Mafalda), que achei no aeroporto, e aonde foram parar meus derradeiros pesos. Conheci, pela internet, os poemas de um português chamado Al Berto, maravilhosos. Estou gostando muito de um autor japonês contemporâneo, o Haruki Murakami (que quase ganhou o Nobel), cujo livro, “Após o anoitecer”, ganhei no Natal. Mas quem fez minha alegria este ano foram os latino-americanos, especialmente os hermanos: Roberto Arlt, Bioy Casares, Ernesto Sabato, Borges... mas, principalmente, o peruano Mario Vargas Llosa, com “Pantaleão e as visitadoras.” SHOWS Foi um ano bem fraco para shows. Esperamos ansiosamente pelo Soundgarden, no SWU, em outubro ou novembro, para descobrir que o evento seria cancelado. Ficaram, então, o Morrissey, em uma noite melancólica, versus o Maná, em um dia muito bem humorado. Acho que, nessa disputa, quem ganha é um concerto de jazz em Rio das Ostras, de um nordestino chamado Artur Menezes, num dia feliz de chuva na praia. Ou um cover muito bom do Alice in Chains, a que assisti em BH há poucos meses, de um grupo novo chamado “Junkhead”. CANÇÕES Gostei muitíssimo do trabalho recente do Deftones, “Koi No Yokan”, que conheci por indicação do twitter da Anneke van Giesbergen. O Soundgarden também lançou um álbum respeitável, o “King Animal”. O Smashing Pumpkins, com exceção da primeira música, de que simplesmente não gosto, caprichou no “Oceania”. Mas é difícil bater, numa lista de minha autoria, o “Disclosure”, do The Gathering, e o “Weather Systems”, do Anathema: o segundo é um pouco mais heterogêneo, conquistando-me mais nas quatro primeiras faixas, mais bonitas e tão coesas quanto num disco conceitual; já o primeiro é tão harmônico, as faixas se comunicam com tal naturalidade, que é como se o álbum todo fosse apenas uma longa e bela canção. DESCOBERTA Descobri que, mesmo que exclua determinado texto do blog, não posso inscrevê-lo em concursos literários que exijam ineditismo. Como a maioria é assim, acabei decidindo postar menos, guardando certos textos para poder usufruir de outras oportunidades. Por isso, tenho atualizado pouco. Mas não desisti do blog, nem deixei de ser grata àqueles que, vez por outra, passeiam os olhos por aqui. Muito obrigada. E que haja sempre a nota certa, e a cena, e o verso, na moldura de nossos calendários. (31 de dezembro de 2012.)

sábado, 24 de novembro de 2012

HOGAR

Há uma semana, voltava de outra viagem à Argentina, e via, nos céus do Rio de Janeiro, um crepúsculo dos mais impressionantes: o sol, laranja, de firmes contornos, despedia-se, sob uma cama de brancas nuvens, estendida ao rez do meu olhar. Memorável. Mas memoráveis também foram os dias na terra de San Diego Maradona – ou San Lionel Messi, que é para soar mais atualizada. Parecia esquisito escolher, dentre tantos almejados destinos, o mesmo; mas eu simplesmente sabia que precisava ir. Pois fui: um congresso em Córdoba, um artigo sobre Walter Salles e seus “Diários de motocicleta”... Depois, em Alta Gracia, o museu do Che e a moto com que ele, jovem, percorrera a América Latina – quase tão lindo quanto o próprio Gael. E o vestido japonês comprado por ali, pelas mãos de uma mulher mexicana. Drinques e fotografias à beira do lago, entre montanhas, em Carloz Paz. A nova animação de Tim Burton, dublada em castellano. Um hostel cheio de gente interessante e muito fernet com coca-cola. E Buenos Aires, under peruvian skies... Passeios pelos sebos da Avenida Corrientes, personagens de cartum, reencontros, apagões e o calor abafado de um país que se manifesta, em azul e branco, que vai às ruas contra uma crise que dura mais de uma década e que entristece uma paisagem tão romanticamente europeia. E houve Rosario. Rosario que foi um dos meus melhores acasos e que trouxe, outra vez, um afeto sem medidas, um carinho que me abraça por todos os lados, e do qual espero não escapar jamais: o domingo andando de pedalinho no parque, perto dos “patos salvajes”, boliche e videogames no sábado à noite, a partida do Newells Old Boys en “la casa del campeón”, a receita do arroz com frango, os “asados”, os vinhos, os alfajores, a Quilmes, o Tango, as leituras a quatro mãos. Difícil condensar algo tão grande e tan hermoso. Voltei para casa trazendo o perfume daquele que, para mim, é até hoje o melhor exemplo de lar. (24 de novembro de 2012)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A lei da troca equivalente

Há pessoas que nos funcionam como catalisadores: desencadeiam processos, mudanças, transformações, sem participarem ativamente da reação química – sem, às vezes, sequer se darem conta daquilo que implicam. Foi o que aconteceu com o Petrus. Eu estava em BH há poucos meses e ainda não tinha a malícia de desconfiar que alguém com um nome desses não poderia passar pela minha vida sem deixar sequelas. Ele tinha meia dúzia de anos a mais do que eu, os cabelos cacheados e a voz de um dublador de vilão da Sessão da Tarde. Com essa vantagem cronológica, havia, com certeza, feito, assistido, escutado uma série de coisas das quais eu sequer ouvira falar. Quanto aos livros, no entanto, nós empatávamos. Isso o maravilhava: nós discutíamos, de igual para igual, diversos autores, romances, poemas, e ele dizia que eu era sua Zélia Gattai. Em contrapartida, minha ignorância cinematográfica o incomodava. Um dia ele me disse: “Você deveria ter lido menos livros e visto mais filmes.” Foi um soco no estômago, embora não tenha sido pronunciado com essa intenção. Àquela época, eu já começara a frequentar o cineclube da Escola de Belas Artes, mas foi depois dessa frase que me tornei de fato presente: também às disciplinas, às leituras, às salas de cinema. Com ele, conheci o Almodóvar, vi meu primeiro filme com o Darín e aprendi a chamar o garçom de amigo. Sem ele, descobri o prazer de ir ao cinema sozinha, depois atravessar a Olegário Maciel ou a Praça da Liberdade, preenchida de um sabor que foi ficando cada dia mais íntimo e mais nítido: o da capacidade de, pelo filme, experimentar outras vidas, outras paisagens, outras escolhas; o de compreender que o cinema é uma beleza indizível, embora sobre ele se digam muitas coisas – como as que hoje balbucio: pancada em slow motion. * Assisti a uma cerimônia de casamento muito bonita e, depois, participei de uma festa maravilhosa, no último sábado, no Parque Vale Verde, que dispensa comentários – o perfume da cachaça já vale mais que qualquer palavra. No domingo, fui ao show do Maná, no Chevrolet Hall, e descobri que o grupo mexicano tem bem mais a mostrar do que canções-chiclete como “Vivir sin aire”. Os dois eventos, no entanto, levaram-me a pensar em uma frase que caiu no gosto das pessoas de um tempo para cá: “enquanto não encontro a pessoa certa, eu me divirto com as erradas.” Duvido tanto da mística da “pessoa certa” quanto da crítica às “pessoas erradas”. Acredito mais no Renato Russo, em um verso otimista aprisionado em outra de suas tantas canções melancólicas: não existe amor errado. A gente sempre aprende alguma coisa, guarda belas recordações ou, pelo menos, torna-se capaz de cantar mais alto e com mais entusiasmo baladas cafonas nos concertos musicais. E, já que o tema da postagem é frase (ou é cinema? ou é música? ou?), deixo uma do Woody Allen, do excelente “Crimes e Pecados”: comédia = tragédia + tempo. That´s all, folks!

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A caminho

Um acidente de carro, na rua São Paulo, matou ontem duas pessoas. Uma delas queria ir ao shopping, almoçar McDonald´s, tomar milk-shake no Bob´s e comprar uma camisa nova para o namorado na Sketch. A outra precisava pagar a terceira prestação da viagem para Porto Seguro, que faria com os amigos no verão, e caminhava rumo à agência de turismo. Estavam diante de um banco em greve, as duas na mesma calçada, quando a van desgovernada as atingiu em cheio. Os vizinhos escutaram um estrondo e se assomaram à janela: mas, como quem ouve um trovão e se sabe atrasado, o relâmpago já riscara o céu, cortando a beleza do dia ao meio. Eram duas mulheres, jovens. Uma delas gostava de olhar as bandeiras tremulando ao sopro do vento. À outra encantavam o cheiro de gasolina e os concertos no Parque Municipal, no primeiro domingo de cada mês. (25 de setembro de 2012)

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Enquanto leio André Comte-Sponville...

Perto da minha casa, em TC, vivia um carpinteiro apelidado Queijo. Ele era careca, barrigudo e tinha a barba longa como a de um velho marinheiro. Foi responsável pelos nossos armários embutidos, cuja qualidade é atestada há décadas, e por diversos outros utensílios domésticos, como o “chiqueirinho” do meu irmão. Nós, às vezes, o visitávamos em família, e me lembro bem de encontrar, em sua casa, os objetos de madeira em estado de preparação, sólidos, crus, pesados, sem ânimo. Mas eis que então eles apareciam, depois, com brilho e beleza, que me disseram ser fruto de uma camada de verniz. Verniz. Eu, que, àquela época, sabia ainda menos do que hoje sei sobre a vida, encantei-me com aquela palavra e seus efeitos sobre as coisas. Verniz: por quantas vezes será que nós, em busca de nos convencermos de uma felicidade além, não cobrimos nossas vontades, nossas conquistas, certas pessoas e lugares e bens materiais com uma camada caprichada de verniz? Será que, se não exagerarmos, para nós mesmos e para os outros, o valor de certas coisas, a vida será tão seca que não suportaremos a melancolia do opaco? Quantas vezes já não nos convencemos de que X ou Y eram nossa meta maior, sem saber que, por trás do verniz, não passavam de um sólido de madeira ordinária, sem valor e luz própria? (10 de setembro de 2012.)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Este não é um texto de aniversário

Não sei dizer com exatidão qual foi o melhor dia de aniversário que já tive até hoje. Lembro-me das tantas festas organizadas pelos meus alunos eternamente queridos, da presença dos amigos, do bolo feito pela minha Madrinha, dos cafés da manhã caprichados, preparados pelos meus pais. Lembro-me de um dia, muito especial, em que eles me deram um coelho, que veio a se chamar Beco, em homenagem ao Ayrton Senna. Era uma tentativa de calar o meu infinito desejo de ter um cachorro. Eu chegava do colégio ansiosa para pegar o Beco no colo, acariciá-lo, depois ficar olhando ele correr e pular pelo quintal. É uma pena, porém, que mais tarde tenhamos descoberto que o Beco era Beca e, adulta, no cio, sem parceiro, ela tenha entrado em colapso e passado de um animal de estimação fofinho e delicado a uma carnívora de olhos vermelhos, devoradora de pássaros canoros. Não preciso fazer muito esforço, no entanto, para definir qual foi o meu pior dia de aniversário. Não foi há muito tempo e ainda me recordo com clareza do sofrimento solitário daquela manhã e depois das palavras duras que ecoaram por quase todo aquele domingo em que eu deveria apenas ter sido mimada e cuidada, como alguém que faz aniversário. O que me salvou foi ter me deparado, na volta para casa, com uma folha de papel A4 dobrada, onde se lia: “Não se iluda: isso não é um envelope com dinheiro. Tampouco é um envelope, by the way...” E, ao desdobrá-la, encontrei, reveladas, uma dezena de fotos que eu havia tirado, no meu hábito de fotografar o céu. Fotos de nuvens se dissipando depois da chuva, de anoiteceres sombrios, de madrugadas coloridas, de tempestades, de urubus sobre o azul. E, por trás delas, um poema: “Até num dia desolado/Em que mesmo os passarinhos estão tristes/Encontra-se o consolo na janela sem cortina/Com o céu e sua irrepetição de tons/Protegendo-nos da falta de sentido de todo/o resto.” Era o presente do meu irmão, tão particular, tão carinhoso, tão. Meu irmão é, sobretudo, o meu presente. O meu melhor amigo, cuja inteligência, a ironia e a poeticidade me surpreendem a cada dia. Escreveria uma enciclopédia com todas as nossas histórias, e lamento todos os instantes em que errei com ele, mais do que aqueles em que errei comigo mesma. Ele é uma dessas raras pessoas que sabem o que de verdade tem valor nessa vida, o que merece nosso esforço, nossa atenção, nosso anseio. Amanhã, envelheço. Mas, em boa companhia, o tempo pesa menos. E nosso olhar vai aprendendo a ser, como diria outro Fernando – o Pessoa –, cada vez mais, nítido como um girassol. (22 de agosto de 2012).

domingo, 5 de agosto de 2012

A democracia do transporte público

Sentou-se ao meu lado, pedindo licença. Era um senhor magro, de aparência distinta. Dali a pouco, algumas moedas lhe caíram do bolso. Ajudei-o a recolhê-las, ao que ele agradeceu pronta e timidamente. Eu lia um livro de crônicas. Foi então que o odor atingiu-me em toda a sua indiscrição. Alguém, que cogitei ser o meu colega de banco de ônibus, estava com dificuldades para conter seus gases. Uma pessoa do banco de trás levantou-se e foi sentar-se adiante. Tive vontade de fazer o mesmo, mas não quis constranger ainda mais o pobre senhor. Tenho esse tipo de escrúpulo, o que muitas vezes resulta em prejuízo para mim mesma. O cheiro fétido dessa que é uma reação fisiológica, embaraçosa, comum a todos os mortais, repetiu-se. Daqui a pouco ele desce, pensei, enganada. Ele acompanhou-me até o bairro, poucas ruas antes da minha casa. E, por mais desagradável tenha sido essa experiência, não sei até onde culpar o indivíduo. Porque a culpa, na realidade, é da democracia do transporte público. A invenção do ônibus – como do bondinho, do trem, do avião – merece louros e ovações, já que é econômica, ecologicamente preferível e, em certas circunstâncias, até mesmo cômoda. No entanto, colocar um grupo de seres humanos que, em sua maioria, não se conhecem, no mesmo espaço conciso, é pôr em choque culturas, vontades e a velha virtude do respeito. A história de que o direito de um termina onde começa o direito do outro, tão difícil de se determinar. O mesmo direito que a adolescente tem de brigar com o namorado ao telefone, aquela senhora ali, que vai trabalhar o dia inteiro, tem de tirar um cochilo até chegar ao serviço. O grupo de torcedores pode falar alto, celebrando a vitória do time, mesmo que atrapalhe a moça que quer ler um livro de crônicas. Outro dia, uma jovem cantava música gospel no banco de trás. Era um trajeto longo e a afinação da menina não ajudava em nada. Senti-me tão irritada que, na volta do centro para a casa, fui incrivelmente punida: a mesma garota sentou-se justamente ao meu lado, apertando-me contra a janela e povoando de dissonâncias o meu ouvido esquerdo. Outra vez, já de madrugada, assisti a uma briga de socos e pontapés, inenarrável, porque um par de garotos alcoolizados não queria abaixar o volume do celular – ignorando a existência dos fones de ouvido, essa sim uma invenção maravilhosa. Isso sem contar as conversas que acabamos escutando, sem entender muito bem o que é legalmente ou moralmente aceitável. Pensando nessas situações, começo a compreender por que tanta gente passa anos da própria vida pagando por um automóvel, esse sonho de consumo em tantos aspectos questionável: desejo ilusório de isolar-se de tudo e, fundamentalmente, de todos. (05 de agosto de 2012)

terça-feira, 17 de julho de 2012

A Winter Wasting

“Summer in winter/winter in springtime/you heard the birds sing/everything will be fine.” (Belle and Sebastian) Em casa, no sul de Minas, faz muito frio neste inverno. Leio contos de suspense debaixo do edredom e de um cobertor pesado. Depois descanso o livro sob o travesseiro para sonhar com detetives que solucionam casos. Quando desperto, ainda na cama, vejo da janela pipas coloridas, que, entre os urubus, dançam no céu de um jeito quebrado – como, quando jovem, fazia, em suas bermudas de cotton, o cantor de “Sweet child o´mine”. Quem canta, no entanto, é o canário amarelo, que, no andar de baixo, sente o cheiro doce do café. Dali a pouco, minha mãe chama na escada, e a gente desce para comer biscoito de polvilho e broa de fubá. (17 de julho de 2012)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O campeão dos campeões

No dia em que convenci, sob ligeira pressão, o meu primo Juninho a tornar-se corintiano, confesso que senti uma ponta de culpa. Pensei no menino padecendo, como eu, a eterna falta de Libertadores, nas piadinhas, na sequência de quases. Lembrei a derrota de 3 X 0 para o Grêmio, no Olímpico, em 1996, e a manhã seguinte, quando eu, de olhos inchados de tanto chorar, faltei a aula pela primeira vez “sem justa causa”. Pensei em 1999, quando o Corinthians, na final do Paulista, derrubava o Palmeiras, que, dias antes, havia sido campeão da Libertadores e eliminado o Timão nos pênaltis. De como o Paulo Nunes surgira do vestiário alviverde, com a faixa das Américas sobre o peito, como um diabo loiro vindo dos infernos, saltitante, dizendo: “Fiquem com o Paulistinha de vocês; nós temos a Libertadores.” Ah, como eu quis, por anos, cuspir na cara dele por aquela declaração leviana, desleal, verdadeira. Não sabia ainda da futura eliminação para o Flamengo, o time que tinha um matador no gol e que não deixou que bola alguma entrasse, justo no ano do centenário. E não pressentia sequer que deixaríamos a competição antes do seu início, em 2011, toliminados por um time colombiano. Por isso, quando, na última quarta-feira, com o segundo gol do Emerson, nosso sheik, pude cair de joelhos no chão e gritar “acabou!!!”, meu pensamento seguinte foi nele, no Juninho. Ele é muito novo e ainda não tem consciência do que, de fato, representa esse título; mas eu sabia que, com ele, muito peso nos saía das costas, e que, mais do que alegria, nós sentíamos era alívio. Pois apavorava andar pela rua naqueles dias, porque a secação era emanada de todos os lados, de dentro de nossos amigos mais próximos, até de nossos mais bem quistos familiares. Era, de fato, o Corinthians contra o resto do mundo. Eu me mantive incrédula e mesmo pessimista a maior parte do tempo, porque sempre receei o esquema retranqueiro do Tite, reclamei a ausência de um atacante criativo, sempre soube que os adversários que enfrentamos eram, em muitos aspectos, superiores à nossa equipe. Mas havia uma força estranha, desde o começo desta competição, que travou o Diego Souza, apagou o Neymar, amoleceu o Riquelme, calçou as chuteiras no Romarinho e que, sobretudo, guiou para a trave o chute do Cvitanich na Bombonera, aquele estádio-bomba atômica, ensurdecedor. Naquele instante, aos 46 do segundo tempo, meu irmão, são paulino declaradamente anti-corintiano, suspirou um “é...”, levantou-se do sofá lentamente e começou a preparar-se para dormir. Foi quando eu tive um lampejo de esperança. Foi quando eu acreditei. Aquele gesto era um reconhecimento, para ele melancólico, de que, este ano, nada tirava o título do Corinthians. Por tudo isso é que eu me emociono em saber que, em São Paulo, no histórico dia 04 de julho de 2012, aconteceram sucessivos foguetórios, em horários combinados, barulhentos, incômodos, a começar pelas 6h da manhã, quando um bando de loucos gritava “Vai, Curíntia!”, numa energia que era ao mesmo tempo oração e cólera. Por isso acompanhei a pequena multidão uniformizada, que parava carros, entoando o hino alvinegro, na madrugada de quinta-feira, em BH. Porque demorou tanto, doeu tanto, foi tanta humilhação, tanto medo, que, agora que é de verdade, tanto faz todo o resto. Amo o Corinthians. Somos campeões invictos da Libertadores. E, agora, o mundo pode acabar. (11 de julho de 2012)

terça-feira, 19 de junho de 2012

Planeta dos Macacos?

“Singles”, “Curtindo a vida adoidado”, “Sem licença para dirigir”, “Minha mãe é uma sereia”. Filmes assim compuseram a minha infância, a minha pré-adolescência e todo o meu imaginário do que seria a vida adulta. Durante as “Sessões da Tarde” – cuja antiga programação hoje integra ironicamente a grade de horários do “Telecine Cult” -, eu me projetava naqueles personagens de cabelos armados, em seus dramas amorosos, suas trilhas sonoras, suas camisas xadrez e seus cotidianos tão norte-americanos. Sonhava com aquele armário de metal dos alunos de colégio, sofria com a possibilidade de não ter par para o baile de formatura, e morria de vontade, pasmem, de frequentar a academia. Quem me conhece sabe que, se não era a última a ser escolhida para o time, é porque logo consegui um atestado para não fazer educação física. Sempre morri de medo da bola. E, ao longo da vida, eu só me envolvi com atividades esportivas solitárias: um pouco kung fu, de dança e de natação. Meu raciocínio era o de não atrapalhar ninguém: se eu apanhasse, apanhava sozinha, caía sozinha, me afogava sozinha... Hoje, então, “na idade adulta”, eu frequento a academia – e gosto é de fazer meus exercícios longe de todo mundo, que, se o peso for cair no pé de alguém, que seja no meu. Mas as academias – e as atividades físicas, em geral – têm mesmo muitas vantagens. A gente se sente saudável só de colocar um par de tênis. E, de fato, há anos meu colesterol bom está ótimo, e meu alongamento é uma beleza, e, ainda que em termos estéticos haja sempre o que se possa melhorar, tenho ganhado nota máxima nos exames médicos. Além disso, a gente aprende a cuidar melhor da alimentação, porque sabe a quantidade de aeróbico que precisa fazer para queimar as calorias de um bombom. E tem toda aquela conversa sobre a endorfina e a tal sensação de euforia e bem-estar, que tem lá o seu fundo de verdade. Acontece, no entanto, que entre uma dezena de repetições de determinado exercício e outra, há um tempo de pausa, em que se abre espaço para pensar na vida e reparar nos outros. Hoje, enquanto descansava, olhei para o lado e me deparei com um indivíduo alto, magérrimo, que, posicionado sobre uma prancha vertical, realizava um exercício abdominal peculiar: ele descia o braço para um lado, com uma das pernas no chão e a outra esticada, no ar, depois se dobrava sobre a cintura, com as mãos na cabeça, e a perna flexionada. Ele mesmo se descreveu como um louva-deus, e acrescentou: “se não tivéssemos descido da árvore, nada disso seria necessário. A gente, de pular de cipó em cipó, já trabalharia braços, pernas, abdômen...” e rabo! De fato: houve algum erro muito grave na evolução da espécie humana, que, supervalorizando, durante um longo período, os supostos superpoderes da razão, esqueceu-se da importância de cuidar do corpo. E agora, ironia dramática: nada menos racional, ao menos a princípio, do que uma academia de ginástica: a gente paga caro para sofrer, carregar peso, fazer esforço, colocar-se em posições constrangedoras – quiçá, imorais! –, correr sem chegar a lugar algum, e ainda tem que ouvir música ruim fazendo tudo isso. Viver em árvores... Pois é, deveriam fazer mais filmes sobre isso... (19 de junho de 2012)

terça-feira, 29 de maio de 2012

Notas para se sentir ainda mais feliz

Eu costumava dizer, nos idos da minha adolescência, que as músicas realmente bonitas eram “canções para morrer.” Cheguei a organizar, com um amigo, duas compilações nessa temática: “Songs to die – I e II”. A ideia era de que, pouco antes de passar dessa para uma suposta melhor, uma boa maneira de se despedir da vida seria ouvindo tais melodias, para morrer não apenas em paz, mas preenchido de beleza, de contentamento, de uma espécie de contemplação sonora. Contraria-se, como se vê, a primeira impressão mórbida do raciocínio. Era como se, depois dessas canções, não precisasse de fato haver mais nada. Houve, no entanto, muita vida depois disso, o que, hoje, em especial, alegra-me muitíssimo. Porque hoje é um dia bonito, simplesmente por ser; porque nada se compara a uma consciência tranquila; porque, por diversos motivos, há cores no meu coração. Enfim. Com o passar do tempo, ser feliz torna-se mais fácil, mais barato e menos dramático. Contudo, por trás desse discurso algo epicurista, convém um bom par de fones de ouvido, ou de caixas de som, e uma trilha sonora que combine com esse estado de ânimo – ou de “alma”, que é a romântica origem latina da palavra. Façamos, então, uma compilação virtual, com o auxílio do adorável Youtube, cientes, porém, de que muita música de qualidade ficará, é claro, de fora, desta vez... Podemos começar sem palavras, como o Mendelssohn, só que com mais guitarras e uma bateria sincopada que me desritma por inteiro: “Hell´s kitchen”, do Dream Theater, uma velha conhecida da minha lista de favoritos: http://www.youtube.com/watch?v=7Ifpji6QUz8. Em seguida, um pouco de Filter, com o violão leve e o clipe curioso de “Take a Picture”: http://www.youtube.com/watch?v=h8MAHQhKe7Q. Se for para pensar em videoclipe, nada se compara, então, ao estalar de dedos e à simpática abelhinha de “No Rain” do Blind Melon: http://www.youtube.com/watch?v=KBmlA-YHrQg&feature=related. Ainda recorrendo à década de 1990, que venha o injustamente desconhecido Velocity Girl, e a letra escancarada de “I can´t stop smiling”: http://www.youtube.com/watch?v=W8OlSqROrXQ&feature=fvst. Ou o convite irrecusável de Robert Smith, do The Cure, com “Doing the unstuck” (“let´s get happy!”): http://www.youtube.com/watch?v=GHU8Y-XgWjg. Outra para lá de óbvia, mas que não poderia faltar nesta lista (ainda mais acompanhada de Michael Stipe, de bonezinho amarelo, dançando com a mocinha do B-52S) é “Shiny Happy People”, do R.E.M.: http://www.youtube.com/watch?v=iCQ0vDAbF7s. E, para quem, como eu, empolga-se é batendo cabeça, o Megadeth (mas poderia ser o Metallica ou o Iron ou um similar de sua preferência), com o bom refrão de “Symphony of Destruction”: http://www.youtube.com/watch?v=xX6UjWMffaY. Nessa linha, o metal dançante de “Serious”, do Scars on Broadway, que eu tenho adorado ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=JKkIkRlLbAg. E, para terminar, uma bem pessoal, com refrão apoteótico, para provar que o Anathema não é só melancolia: “Lightning song”, do novo álbum, com a doçura da voz de Lee Douglas, que é como se trouxesse em si, parodiando Pascal Quignard, “todas as primaveras do mundo”: http://www.youtube.com/watch?v=rNSPXI7wrTI. (29 de maio de 2012.)

terça-feira, 15 de maio de 2012

O pinguim que veio do inferno

No feriado da Semana Santa, tive a fatídica ideia de dar um livro ao Juninho. Eu já o havia presenteado com artigos semelhantes em outras ocasiões – HQ´s, revistas para colorir, passatempos, livrinhos de pouquíssimas páginas – mas esta foi a primeira vez em que a quantidade de palavras era, em muito, superior à de ilustrações. Quando abriu o embrulho, o pobre pré-adolescente mal soube disfarçar o desapontamento. Lia-se no rosto dele a dúvida cruel: “isso é um presente???” Tentei estancar o sofrimento do menino com algumas temporadas de “Supernatural”, e, aproveitando-me de um momento de ingênua distração, expliquei, sutilmente: “Isso é um livro. Você precisa lê-lo. Cada capítulo tem em média três páginas... então, leia um capítulo por dia e, quando eu voltar (em maio), você já terá terminado.” Ele estaria livre para me ignorar, inventar uma desculpa e nunca mais tocar no assunto se a avó dele, que é quem o cria, não tivesse contado a história ao meu primo, pai dele, policial em São Paulo ao estilo Capitão Nascimento do primeiro filme. Ele transformou aquilo num real dever de casa: Juninho agora não deveria apenas ler, mas também resumir a narrativa. Que situação desastrosa para nosso herói! Pedi que me mostrasse, então, o tal resumo das trinta e seis páginas que ele havia lido até então. Segue o texto na íntegra, sem alterações, escrito em uma tirinha de papel – quase um marcador – que ele guardava entre as folhas do livro: “Eu intendi (sic) que o pinguim não veio do frio. Ele tinha 3 amigos, que gostavam de aventuras.” Antes de prosseguir, uma informação: o titulo do livro é “O pinguim que não veio do frio” (de Wagner e Maga D´Ávila). Pois bem, era o primeiro resumo da vida dele, o primeiro livro de verdade, e não era justo esperar uma resenha crítica. Sentei-me com ele e ficamos alguns minutos lendo, conversando sobre o sentido das palavras, sobre os personagens, sobre como resumir o que se lia. Ele aprendeu o que significava “inconformado”, dando-me um exemplo de futebol. E, acredite, naqueles instantes, ele estava muitíssimo conformado com a leitura, e o presente, e a presença. Depois, para não desgastar a relação, sugeri que ele fosse jogar bola. Um pouco mais tarde, ria-se de si mesma a minha madrinha – a avó do Juninho: ela havia pensado que o livro se chamava “O pinguim que veio do inferno”. Em certo sentido, faz mesmo sentido. (15 de maio de 2012.)

sábado, 5 de maio de 2012

Precisamos escolher melhor nossos imperadores

“O goleiro é aquele que fica parado, sozinho, esperando pelo pior”. É com uma frase assim que tem início o bom “O ano em que meus pais saíram de férias”, filme brasileiro de Cao Hamburguer, lançado em 2006. Poucas vezes uma profissão foi tão bem definida quanto nessas palavras. Toco nesse assunto hoje porque, durante quase duas semanas, ele ficou entalado na minha garganta. A cada fotografia tendenciosa, cada comentário maldoso, cada ataque em rede nacional, eu só conseguia me condoer um pouco mais pelo goleiro do Corinthians, Júlio César. Ainda que sua atuação contra a Ponte Preta, quando da inacreditável eliminação do Paulista, tenha sido de fato bastante prejudicial à equipe, há muito tempo não vejo um jogador vestir a camisa do Timão com tanta entrega, tanta sacralização, tanto afeto. A maneira como apoiou, na última quarta, o promissor Cássio, que jogou em seu lugar contra o Emelec, é prova de que Júlio César é, antes de tudo, um torcedor, e, sobretudo, um torcedor corintiano. Faz lembrar o Ronaldo, o outro arqueiro, que defendeu o gol alvinegro por toda uma década. E os números falam por si: a defesa menos vazada dos campeonatos disputados este ano; invicto na Libertadores; quase ileso no Paulista; campeão brasileiro do ano passado. É evidente que o elenco e o esquema tático retranqueiro de Tite contribuem, em muito, para esses resultados. Mas quem estava no gol era ainda o Júlio César – que também ganhara, duas vezes seguidas (2004 e 2005), a Copa São Paulo de Futebol Júnior pelo time paulista. Assim, o massacre que tem vitimado o jovem futebolista, diante da mídia que quer sempre alguém para sacrificar, merece, no mínimo, uma ressalva: que seja exposto o outro lado da moeda, as jogadas decisivas, os pênaltis defendidos, o apoio aos companheiros de equipe, o amor à camisa. Afinal, um time se expõe à chacota não apenas quando deixa de conquistar um campeonato ou perde para uma equipe considerada inferior, mas também, e principalmente, quando prefere contratar mercenários em estado de decomposição a jogadores assim, comprometidos com o time em que atuam, com a torcida que defendem ou, pelo menos, com a profissão que desempenham. (05 de maio de 2012.)

domingo, 29 de abril de 2012

Light metal

Nascera pobre, feio e gago, em uma cidade pequena, onde as pessoas se veem de mais. Cedo começou a ouvir rock. Com inglês questionável, listava bandas, gêneros, discos, títulos, genealogias. Como não lhe favorecesse a genética, não pôde, como gostaria, deixar o cabelo crescer com a leveza giratória de seus guitarristas favoritos. Sem aptidões musicais, não conseguiu tampouco tocar um instrumento e começar uma banda cover de qualquer coisa. Assim, embora estivesse sempre entre os cabeludos, os belos e os talentosos, era uma gozação ambulante, um admirável pobre coitado. O tempo, porém, passa. E, em seu trajeto, envelhece a muitos, os desloca, tira-lhes qualidades e defeitos. Ainda que os dele continuassem os mesmos, algo mudara definitivamente tudo: a geração. Ele era agora o entendedor veterano do município. Os jovens roqueiros, com suas velhas camisetas pretas, seguiam-no por toda a parte, pediam-lhe sugestões musicais, buscavam nele influências, mostravam-lhe acordes, queriam sua opinião sobre os solos. Ele agora organizava as excursões para os festivais. E, pasme, conseguira até mesmo uma namorada. Mas nada fazia-lhe tão grato à passagem do tempo quanto essa nova aquisição da tecnologia estética: obra dos deuses do metal, viera ao mundo ela, a magnânima, escova progressiva sem formol. (29 de abril de 2012)

terça-feira, 10 de abril de 2012

Sobre o Morrissey e os urubus

Já faz mais de um mês que fui ao show do Morrissey aqui em BH e, não por acaso, ainda me perguntam o que foi que eu achei. Bem, foi emocionante. Todos os ingressos vendidos, a cidade como sob o efeito de alucinógenos (ao menos, o meu círculo de convívio), e dá-lhe comentário pós-show e curtições no Facebook (disseram-me). Eu, infelizmente, não consegui escrever a respeito (talvez mal consiga agora) e nem me reuni com os fãs no “Pastel da Savassi” para avaliar o que fora tocado de melhor e o que faltou no repertório. Ao final do concerto, tudo o que eu queria era vir para casa e ficar em silêncio, enquanto certos acordes ainda me cobrissem. Certos acordes e várias palavras. Porque foi especialmente pelas letras que me interessei pelos Smiths, quando, pouco mais que pré-adolescente, li sobre eles na coluna do Álvaro Pereira Jr, na Folha de São Paulo. “Música para quando o telefone não toca no sábado à noite”, era como ele descrevia “I know it´s over”, na qual o eu lírico começa gritando pela mãe, contando que o chão lhe cai sobre a cabeça, e vai seguindo até aquele trecho-tortura que pergunta “se você é tão inteligente, divertido, bonito... o que você está fazendo sozinho esta noite?”, terminando com o cúmulo do dolorido: “o amor é natural e real, mas não para mim, nem para você, meu amor.” E, sim, ele tocou essa canção. Houve quem chorasse. Mas houve quem deixasse as lágrimas para a agridoce “Please, please, please let me get what I want” ou quem cantasse alegremente o mórbido refrão de “There is a light that never goes out”: “E se um ônibus de dois andares/Colidisse contra nós/Morrer ao seu lado/Que jeito divino de morrer/E se um caminhão de dez toneladas/Matasse a nós dois/Morrer ao seu lado/Bem, o prazer e o privilégio seriam meus.” A verdade é que o Morrissey poderia muito bem ter me ensinado a ser vegetariana, assexuada ou algo britânica, mas o que obtive dele foram apenas incontáveis lições de amor – o que seria uma desgraça se não fosse tão poético.

*

Muito tempo atrás, escrevi um conto chamado “Os urubus são pássaros que voam alto”. O texto é péssimo, mal costurado, inconstante, mas gosto do título ainda e sigo fascinada pelo voo desses animais tão bizarros – sem alusões futebolísticas neste momento.
Dias atrás, tive a oportunidade de maravilhar-me de perto com o conhecimento do céu e dos ventos de que dispõem essas aves, e com o fato de que certos homens, muito espertinhos, baseiam-se nelas para procurar os melhores momentos para saltar e os mais promissores pedaços do céu para, a seu modo – num paraglider –, voar. Quase fui junto e lamento muito o tamanho desse quase. Certas aventuras talvez precisem ser adiadas para que se amplie a altura do encanto.

(10 de abril de 2012)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Infâncias

Foi no mesmo dia em que Gabriel, vendo o rastro de um avião a jato sobre o céu de verão, pensou se tratar de um arco-íris branco.
Paula, então com quatro anos, encontrou, no pátio da escola, sob o abacateiro, uma borboleta de cores febris. Notou, com alegria, ser ela menor do que suas mãozinhas, ainda puras e limpas, de unhas arredondadas e muito curtas. As asas tremiam como a fragilidade. Paula aproveitou-se de uma repartição externa da mochila cor-de-rosa-choque. Guardou a borboleta. Calabouço sintético, grades de zíper. A professora acenou. A aula começava.
A borboleta tinha sido uma lagarta ansiosa. Deixara o casulo no nascer daquela manhã, prematura. Cambaleara, bêbada de luz e ar. O orvalho lavou suas asas e cobriu de fragrâncias suas expectativas. Voou. Alto, alto. O sol enchendo o dia da misericórdia dos trópicos, confusa e preguiçosa. Cansada, ela pousou sobres as raízes úmidas, expostas, daquele pé de abacate. As risadas das crianças a atordoavam, múltiplas.
Paula não pôde prestar atenção aos primeiros minutos de aula. Não via a hora de encontrar a mãe na saída e mostrar a ela sua linda borboleta. Depois, distraiu-se com os trabalhinhos, brincou com tinta guache, desenhou flores e um cachorro com a língua para fora. Lanchou gelatina de morango, biscoitos de chocolate e suco de uva. Não quis comer a maçã. Dividiu as balas com as coleguinhas.
Quando a aula acabou, Paula lembrou-se do que trazia dentro da mochila, artigo precioso, objeto de luxo e asas. Correu até a saída. Percebeu, com decepção, ser a babá quem a esperava à porta da escola. Onde está minha mãe?, quis saber. Tinha ido ao dentista. Entrou no carro, emburrada.
Ficou feliz, entretanto, quando saiu do banho: a mãe já havia chegado, com uma obturação e um vestido novo. Paula correu até ela, cheia de abraços. Depois falou, com sorrisos: tenho um presente pra você! Tenho um presente pra você!
Foi até o quarto, buscou a mochila. Abriu o zíper.
A borboleta estava lá. Murcha, leve, maleável. Morta.
Um grito muito forte. A mãe a abraçou, assustada. Paula chorou. A borboleta morreu... ela morreu...
A babá trouxe água com açúcar num copo de vidro alongado, fino.
Paula soluçava, amparando o pequeno cadáver em sua mãozinha pura, lavada, cheirando a sabonete de pêssego.
Enterraram a borboleta em um vaso de avencas que enfeitava a sacada do apartamento, no oitavo andar.
Nunca souberam, porém, dos movimentos daquelas asas no espaço sufocante do bolso de mochila rosa-choque. De que pensara a borboleta que, caso se agitasse mais e mais, escaparia. Nunca souberam de sua perplexidade diante do em vão. Do quanto quis ela um copo de oxigênio e luz para se embriagar novamente, embebedar-se outra vez de céu, vôo, vida.
Suas asas febris guardaram por muito tempo o doce e nefasto perfume do sabonete de pêssego.
(25 de julho de 2008)

domingo, 4 de março de 2012

E o parque não parou de funcionar

Felizmente, já não era preciso ir a pé ao trabalho. Nem de ônibus ou metrô. E o carro tinha ar condicionado e trava elétrica, como eles haviam sempre sonhado. Elétrica também era a cerca que protegia a casa e o jardim. Fora possível, além disso, construir uma churrasqueira no quintal e inserir ali uma piscina de poucos litros, para os dias de maior calor. Mas jamais se esqueceriam de que o dinheiro para isso fora fruto da indenização pela morte da filha, adolescente que caíra de um brinquedo muito alto, em um parque de diversões.

(04 de março de 2012.)

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A Oitava Arte

Dividir apartamento com dois músicos é, mais ou menos, como trabalhar na bilheteria da Broadway! Diariamente ter contato com grandes instrumentistas, cantores, compositores, musicólogos, plateias de astros, consonâncias, dissonâncias, Steinways, Stradivarius, Stratocasters... E comparecer aos grandes espetáculos de música da atualidade! Ter a honra de estar o tempo todo lado a lado, envolvido, enlaçado por ela, a Música, o elo mais precioso que possuímos com as divindades supremas.
É... mas, como “o inferno é a repetição”, chega uma hora em que você não quer nem assistir a “Cats” outra vez, nem repetir que aquele concerto de Rachmaninoff é a prova mais viva da existência de um deus.
No começo é tudo muito bonito. Contar para os amigos que você tem dois pianos em casa, convidá-los para conhecê-los e explicar para que servem aqueles três pedais ali. Depois pedir para Músico I dar uma breve demonstração de seu virtuosismo. Após os aplausos, explicar, com ares de grande entendedor, que aquela é uma obra composta originalmente para cravo e que, por isso, é tão repleta de staccatos e afins. Então, as pessoas se despedem sorridentes, dizendo que é muita sorte viver com dois músicos, que é o sonho de qualquer um e que deve dar muito orgulho aplaudi-los quando sobem ao palco, estonteantes, espetaculares, e sentir que você esteve presente, acompanhou, passo a passo, a preparação daquela maravilha.
Ninguém pensa que, além das sete ovacionadas artes, existe uma oitava, não reconhecida, que é de conviver com artistas! Iludidas pela beleza das cadências perfeitas, esquecem-se as pessoas de que, nesse caso, estar presente significa ouvir cerca de sete horas do estudo de um repertório que permanecerá nos dedos de Músico I por mais ou menos um ano. Esquecem-se de que espetáculo é diferente de estudo. De que o processo de composição de uma obra pode não ser tão belo quanto o seu resultado. De que, vez por outra, Músico I e Músico II podem travar verdadeiros duelos de períodos e estilos, ligando, cada um em seu quarto, no máximo volume, o Réquiem de Mozart e uma ópera tecno. E você, no quarto do meio, encolhido como uma tartaruga, tentando estudar Francês...
Isso sem falar, é claro, na pressão musical. Você se sente num verdadeiro Big Brother auditivo: centenas de gravadores espalhados pela casa, 24 horas, vigiando seus desafinos, sua inabilidade rítmica, sua desarmonia... Eu, definitivamente, não canto mais. Se ameaço a entoar, como trilha sonora de faxina, um daqueles refrões tristonhos da Legião Urbana, logo ouço Músico II alertar:
___ Você modulou.
___ Eu... o quê?
___ Modulou. Estava em Sol Maior e foi para Lá Maior. Tente manter o tom.
___ Assim? – eu repito o trecho da canção, num esforço por encontrar a nota certa.
___ Não. Agora está muito grave.
E ele corre para o piano e pressiona insistentemente a tecla Sol, com aquele brilho esperançoso no olhar, na torcida para que eu acerte a tonalidade. Eu tento, tento, tento adequar minha desnorteada voz ao famoso Sol Maior – porque, sabe, questão de vida ou morte... pensa bem, cantar no tom errado! Imagine, que perigo! – e, quando, enfim, acerto a tonalidade, Músico I interrompe seus estudos de regência para me avisar que estou cantando muito na garganta, que é isso que acaba com a voz das pessoas, que devo impostar mais, assim, abrindo o diafragma, dilatando isso, espremendo aquilo e. Até que eu desisto e vou para o meu quarto ouvir o que eles costumam chamar de “banda de heavy metal com harmonia previsível.”
Ah, dividir o apartamento com dois músicos... Você nunca mais vai a um recital sem passar o tempo todo tenso, tentando descobrir se a tuba desafinou, se o regente deu a entrada certa para os violinos, se o spala alterou o andamento do Allegro...
E há também os amigos dos Músicos, também músicos, e toda a sua musicalidade 100% Red Bull! Gente que, em plena noite de sexta-feira em fim de semestre, com dúzias de trabalhos e provas por fazer, tem energia para fazer melodia com almofada, controle remoto, cobertor, pente fino. Gente que não sabe dar dois passos sem entoar uma melodiazinha, ao que o outro responde com uma segunda voz e um terceiro começa a batucar no assoalho e outro pega o violão e... Pronto, está feita a Jam Session!
E pensar que um dia eu sonhei em ser musicista! Cheguei mesmo a me aventurar pelo mundo das escalas e Hanons... sorte que não funcionou. Imagine, três músicos... seria ego demais no mesmo apartamento. Não duraríamos um mês juntos...
Pelo contrário, depois de dois anos de convívio em tempo integral com grandes representantes dessa arte divina, desapego-me a cada dia mais dos aplausos. Quero mesmo é escrever versinhos embaixo de um jequitibá, à beira do Rio Amazonas. A vaga para acompanhante está aberta. Pré-requisito: não saber distinguir um Bach de um Bártok. Pode ser o Brat Pitt... se tocar campainha em quiáltera, está desclassificado!
Ah, dividir o apartamento com dois músicos: um excelente exercício para se descobrir o valor do silêncio.
(09 de abril de 2004)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Pedro

Diego e eu esperávamos o meu irmão na rodoviária. Fazia calor e compramos uma garrafa de suco – de frutas cítricas, se não me engano. Foi então que reparei no Pedro, um menino de mais ou menos dois anos, que, por causa do suco, já havia reparado em nós. Sentindo o peso insistente do olhar dele, pedi ao Diego que lhe desse o restante do líquido. A mãe estava do lado, com um bebê no colo e uma expressão de total desamparo. Não se importou com nossa aproximação. O menino bebeu, satisfeito, e depois pôs-se a brincar com a garrafinha de plástico e, em seguida, com a tampa laranja do recipiente. O jogo era aquele de sempre: a tampinha caía, um de nós se abaixava, pegava-a, entregava-lhe. Aos poucos a queda passou a ser voluntária e cada vez em lugares mais complicados e distantes. Ele se divertia, fazendo-nos de escravos, dispostos a aceitar os desafios que nos impunha. Quando meu irmão chegou, ainda brincávamos com o Pedro – ou ele brincava com a gente – e eu acabava de ter a ideia de lhe dar um pirulito. Como, entretanto, a embalagem estivesse ainda grudada no palito, o menino não experimentou do doce, mas manteve a atenção voltada para aquele papelzinho que não se soltava. Resultado: o pirulito caiu no chão. E, que se ressalte: no chão da rodoviária, que é dos sujos o mais imundo. Peguei o pirulito, expliquei-lhe que não se podia comer as coisas do chão – como se ele me entendesse – e atirei o doce na lixeira mais próxima, pensando em comprar-lhe outro em seguida. Qual não foi, contudo, o horror nos olhos daquele menino diante de meu gesto atroz. Ele os arregalou e abriu a boca num grito de imensurável perplexidade, como se dissesse: “O que essa maluca está fazendo, Meu Deus???” Eu corri até o bar, comprei outro pirulito, desembrulhei e entreguei a ele novamente. Não saí de perto enquanto não o vi colocando o doce naquela boca bonita, de criança feliz. E fiquei pensando na matéria que compõe as decepções. Porque, no momento em que Pedro me viu atirando o seu pirulito no lixo, ele não pensou no tempo que havíamos passado ali, gratuitamente tentando agradá-lo. Nenhum de nossos gestos de desprendida amizade lhe valia alguma coisa diante da maldade repentina do doce que jogávamos fora. E quantas vezes na vida a gente não é vítima (ou vilão) nessa desigual contabilidade? Porque, exceto em certos casos de tendência inata a mal-interpretar gentilezas banais, se alguém nos decepciona é porque nos fez bem. E que estupidez a nossa de esperar atitudes sempre amáveis, mesmo sabendo que nenhum de nós, nem nós mesmos, somos capazes de sermos o tempo todo bons. É, precisamos repensar nossas desilusões.
12/02/2012

sábado, 4 de fevereiro de 2012

A costa do Sauípe

Ainda me lembro da primeira vez que ouvi alguém me descrever como uma pessoa inteligente. Desse momento em diante, fui tomada por uma inelutável maldição: a de tirar boas notas e dizer coisas certas – como se isso fosse possível o tempo todo. O que pouca gente sabe, porém, embora eu tenha muita dificuldade em disfarçar, é que sou uma completa nulidade em Geografia. Posso jogar a culpa nos meus professores que, armados ora de incompetência ora de pouco caso ora de ambos, formaram um verdadeiro complô que nos desestimulava ao aprendizado dessa disciplina. Mas verdade seja dita: os livros, globos terrestres, atlas, Goople Maps estão aí a serviço de todos, e a culpada sou eu por nunca me esforçar. E essa indolência, como tudo na vida, tem um preço. Dias atrás, passeando por minha terra natal, pegava carona com um casal de amigos que tem o feliz hábito de viajar sempre. A noite havia sido divertidíssima, tudo corria bem, e eles estavam prestes a me deixar em casa, quando resolveram me contar da maravilhosa estadia na Costa do Sauípe. Eu já havia lido aquele nome nas propagandas da CVC, mas jamais me interessara em saber do que se tratava. Eles continuavam a descrição, falando do resort, dos drinks, da mordomia. E eu, no banco de trás, torturava-me com a total ignorância de não ter a mínima ideia de onde ficava aquela merda de lugar. E eu podia ter simplesmente perguntado: “onde fica essa merda de lugar?”. Mas não. Eu vasculhei na minha cabeça, cavei fundo até encontrar a pergunta mais estúpida que poderia ter feito nesse contexto: “E como vocês se comunicaram?”, porque, para mim, um nome assim, com um resort daquele nível, só poderia estar ali por aquela bagunça da América Central, e eu sabia que eles não falavam espanhol. Minha amiga, envergonhada por mim, gaguejou: “Ué... fica na Bahia... todo mundo falava português...” “Ah...”, eu respondi, sem mais nada a dizer, e desci do carro, totalmente desconcertada. Fez pensar em um ditado chinês que diz que quem pergunta é bobo por três minutos; quem não pergunta é bobo pela vida inteira. Só falta acrescentar que, para ser menos bobo, é preciso também fazer a pergunta certa.
(04 de fevereiro de 2012)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Helmet

Vestira a camisa do filho adolescente por falta de roupas limpas no próprio armário. A primeira que vira, uma preta, cor clássica, que ainda contribuía para o disfarce da barriga em processo de saliência. Um pouco amarrotada e, conforme notaria mais tarde, com aquela miríada de minúsculos fiapinhos brancos, de roupa lavada muitas vezes na máquina. Mas nada que chamasse tanto a atenção. No trabalho, de fato, ninguém observou a ausência das tradicionais camisas pólo. E ele também não se incomodou, absorto que estava com o absurdo cobrado pelo mecânico por um carro ainda no conserto. Depois de quase uma semana! Teria que ir até lá mais tarde, fazer uma pressão. Já pagara a tal peça caríssima, que estava em falta, que se tinha que buscar na cidade vizinha e não-sei-o-quê... agora o cara que fizesse a parte dele, ora.
Após o serviço, caminhou então para o ponto de ônibus, para esperar o 803. Depois se lembrou de que não iria para casa, mas sim para a oficina mecânica. Teria que pegar o 512, que passava no sentido oposto. Atravessou a rua. Sentou-se. Ficou lendo um anúncio publicitário ao lado da parada do ônibus.
– Você gosta de Helmet?
Ele não escutou.
– Ei, perguntei se você gosta de Helmet...
Era uma voz feminina, à qual ele não prestaria atenção se a garota, sentada ao seu lado, não lhe tivesse tocado o ombro.
– Ãhn!?
– A sua camiseta. É do Helmet. Tão raro encontrar alguém que goste...
Ela era bonita. Estava de saia e tinha as pernas grossas. Ele adorava mulher de perna grossa.
– Pois é. – respondeu, sem jeito, olhando para baixo. Estava mesmo escrito “Helmet.” Depois emendou rapidamente, com medo de ela perder o interesse. – E desde quando você gosta do... de...?
– Nossa, há muito tempo! Meu irmão mais velho é que escutava... eu cresci com isso lá em casa. Você ouviu o último álbum?
Então o Helmet era um músico. Ou um grupo. Era alguma coisa de escutar, não de comer nem de cheirar. Bom, isso já era um começo. Ele se entusiasmou:
– Claro! Muito bom, né? Adorei...
– Sério!? Ah, não sei... sou meio saudosista, sabe? Gosto da primeira fase, mais distorção, a bateria mais seca... sei lá... sabe?
– Sei. – ele falou e ficou olhando para os joelhos dela, sob as mãos, gordinhas. O esmalte: cor-de-rosa escuro. Ela era uma criança. Devia ter a idade do filho. Mas era tão bonitinha...
– Que outras bandas você escuta?
Ah, o Helmet era mesmo uma banda. Ela falara de bateria, distorção... então, devia ser rock. Ele entendia um pouco disso. Gostava de Beatles. Quem não gosta? E já vira em casa um CD do, do Metal... Metalúrgica... é, devia ser isso. Resolveu arriscar:
– Sou muito fã do Meta...
A sorte dele era que a garota não tinha paciência para esperar o fim das frases.
– Metallica? Eu também, cara, adoro! Aliás, toda a vertente trash tem o seu valor, não é, não?
– E não é!? – ele abriu um sorriso largo.
Ela começou a listar nomes de que ele nunca ouvira falar, tudo em inglês, e ele entendeu menos ainda. Ele tentou enxergar alguma coisa pelo decote dela, mas a blusa era muito fechada, não viu muita coisa. Ela gesticulava o tempo todo e falava de um jeito alegre, e ele logo entendeu que ela estava dando mole para ele. Escutou de repente:
– Você foi naquele show?
– Ãhn!? Não... perdi esse...
– Ah, que pena... foi um showzaço!
Ele não tinha a menor ideia do que ela estava falando. Viu o 512 chegar, mas fingiu não ver, resolveu ficar um pouco mais. A menina tinha um cheiro bom. E ainda bem que ele passara desodorante antes de sair do escritório. Só não sabia se podia chamá-la para tomar um chopp, se fingia brincar com o celular e pedia o telefone dela de uma vez, se ia pegar mal levá-la na casa dele. Essa história de estar separado e morar com a mulher era um saco. A ex-mulher, quase-ex, era um estorvo. Mas um divórcio geraria muitas despesas. Além disso, não tinha nada de mais ele levar a namorada em casa, tinha? O filho não se importaria... Pôs a mão no bolso, tirou o celular. Era novo. Ela ia ficar impressionada. Gente jovem gosta dessas coisas de tecnologia.
– Eu tinha um desses. – ela falou.
Ela “tinha”. Isso queria dizer que o dele era ultrapassado. Droga. Ao menos, ela havia mudado de assunto. Nisso ele podia dar uns palpites, quem sabe. Embora quem entendesse dessas geringonças fosse na verdade o filho. O moleque era um gênio na informática. E estava mais alto que ele, fazendo musculação, forte. Aliás... se ele levasse a namorada em casa, era capaz de ela se interessar é pelo Júnior. Ele vira um filme assim uma vez. Que merda. Uma gata daquelas dando em cima dele e, de repente, o próprio filho ia chegar e... Putz, perder para o próprio filho. Que sacanagem. Moleque safado. Tinha puxado à mãe mesmo. E ele ali, vestindo a camiseta daquele...
– Você tá tão quieto... Desculpa. Eu tô te incomodando, né? Eu falo de mais. Minhas amigas sempre me dizem que. Olha, meu ônibus... – ela fez sinal. – Tchau!
Entrou no ônibus.
– E vida longa ao rock! – gritou da janela perto do trocador.
Ele sorriu um sorriso triste e fez um aceno.
E agora a porcaria do 512 ia levar uma hora para aparecer. A oficina estaria fechada quando ele chegasse. Melhor era ir para a casa.
Atravessou a rua.
Sentiu que alguém o olhava. Era uma garota.
– Você gosta de Helmet?
Inacreditável.
– A sua camisa... Você gosta mesmo dessa banda?
Ele suspirou. Pensou duas vezes e, na terceira, respondeu:
– Não, moça. Eu não sei do que você está falando. Esta camiseta é... é... da firma em que eu trabalho. A Helmet. A gente faz maionese.
E deu sinal para o 803, que se aproximava do ponto de ônibus.

(12 de janeiro de 2012)