domingo, 26 de dezembro de 2010

Marialva

Foi por recomendação médica que passou a frequentar a academia de ginástica, a qual visitava pela manhã – parte destinada às donas de casa, como ela, e aos aposentados e funcionários públicos com expediente vespertino. A tarde, como se sabe, era dos adolescentes e das madames, e a noite pertencia aos fortões e às gostosonas, que disputavam espaço entre os espelhos, desviando-se dos seres humanos comuns, trabalhadores de período integral, que teimavam em manter a forma, qualquer que fosse.
No começo, era muito a contragosto que Marialva vestia a camiseta comprida, com a logomarca de uma loja de material para construção, amarrava os cadarços do velho par de tênis, e ia malhar. Passava, entretanto, grande parte do tempo diante da televisão, pedalando lentamente, enquanto folheava revistas de fofoca e aprendia, com a loiríssima apresentadora, receitas novas com ingredientes de que jamais ouvira falar. Assim, enganava-se, embora o colesterol continuasse alto – no que culpava a genética, sem remorso.
Mas um dia Marialva sentiu o peso saboroso de uma mão masculina sobre o ombro. Era o novo instrutor, que se apresentou, quis saber o seu nome – há quanto tempo, meu deus, um homem não perguntava o nome dela! – e explicou-lhe como fazer o exercício do “Graviton” sem forçar demais a lombar. Então ela percebeu que já estava mais do que na hora de trocar a calça surrada de cotton por um desses suplex, que deixa o corpo mais bonito, e cujo material, de tão bom, até brilha, dependendo do ângulo. Aproveitou para comprar blusas coloridas, curtas, de telinha, que era para favorecer a transpiração. E, claro, trocou o velho par de tênis, que aquilo era um atentado à coluna vertebral.
Marialva passou, então, a usar perfume e a pintar os olhos pela manhã, detalhe que o marido não percebeu, mas que ela tinha certeza de que, Rodrigo, o instrutor, notaria. Rodrigo e aquele sorriso e aqueles bíceps e aquela pele bronzeada e o jeito simpático de cumprimentá-la e chamá-la pelo nome todos os dias, assim que entrava na academia. Ela já não sabia se fazia os exercícios corretamente, para ouvir seus elogios, ou se errava de propósito, só para que Rodrigo viesse alertá-la, apoiar as mãos entre seu pescoço e os ombros, puxá-la suavemente para trás, mostrando como trabalhar os músculos escapulares com eficiência no “tríceps corda”.
Ali, diante do espelho, vendo refletida a sua imagem, que começava a ficar bem torneada, junto à de Rodrigo, o instrutor, o pensamento de Marialva dispersava-se: percorria cada músculo perfeitamente distinguível do corpo do rapaz, cuja beleza uma camada leve de suor só intensificava, e bendizia a mágica dos espelhos, que permite que se olhe sem ser imediatamente notado. Marialva, por segundos, perdia-se no calor de seus batimentos cardíacos acelerados, em fantasias que jamais se permitira, ela sempre tão maria e tão alva, tão casada e mãe, tão por baixo em todas as ocasiões. Sentia-se, naqueles poucos instantes, personagem central de um romance de banca de revista, impresso em papel-jornal, dos mais baratos, mais chulos, mais excitantes.
Depois lavava o rosto com água gelada, despedia-se, passava no supermercado, no açougue, na feira livre. E, vez por outra, também diante das construções, onde os operários, com seus comentários e sinceras ereções, estendiam, um pouco mais, o seu prazeroso protagonismo.

(24/12/2010)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Como no título do livro de Charles Dickens

O problema com a expectativa é que todo o mais vira um mero coadjuvante diante daquilo que se espera. A gente não pensa simplesmente “Faltam nove dias.” A gente pensa: “Eu ainda TEREI QUE VIVER nove dias até lá.” Sinto isso desde muito nova, porque, na minha casa, sempre levou-se muito a sério que os presentes só chegavam nas datas especiais – a saber: Páscoa, aniversário, dia das crianças, Natal. (Por sorte, meu aniversário, que é em agosto, equilibrava bem a sequência de dádivas anuais.) Mas era o Natal a data mais esperada, não apenas porque, com o décimo-terceiro salário, o presente tendia a ser bem melhor do que os outros, mas por toda a ritualística: como uma saga, vencíamos a parte chata da missa, esperávamos ansiosos a chegada do Papai Noel, assim como, dias antes, havíamos aguardado a vinda de nossos primos de São Paulo; e então havia toda aquela comilança, e adultos bebendo e rindo alto na casa dos meus avós, enquanto nós corríamos pelo quintal, entre as árvores, exibindo o que tínhamos ganhado horas antes, ainda com perfume de novo. Lembro, porém, do quanto me sentia triste no dia seguinte. Com nitidez, recordo-me de um ano em que me sentei na escada de casa, fiquei olhando para o nada, e pensando, justamente, que ainda teria que viver um ano inteiro até que o próximo Natal chegasse. E isso tinha um peso insuportável à época. Mais tarde, aprendi a saborear a espera mais do que a conquista... porque, como num conto da Clarice Lispector, ficava a pergunta: “E o que é que a gente faz depois que é feliz?” Hoje, não sei, talvez tenha aprendido a agir com equilíbrio diante da questão. O dia está bonito, independente da espera. E garanto que, este ano, não me sentirei triste quando o Natal passar.

*
Ainda falando do tempo (e de “great expectations”)... Demorei meses para compreender o álbum novo do Anathema, “We´re here because we´re here”, o primeiro trabalho de estúdio lançado desde 2003. Demorei, claro, porque esperei encontrar um Anathema que já não existe mais; em contrapartida, deparei-me com canções de uma tocante euforia, tão etéreas que chegam a lembrar os islandenses do Sigur Rós. É possível ver pelas capas dos discos o quanto a banda se modificou ao longo desses vinte anos de estrada: pense no soturno e quase tenebroso “The Crestfallen Ep” (1992), passando pela penumbra de um “The Silent Enigma” (1995), até a claridade panteísta desse novo CD, que, na capa, ilustra um indivíduo apoiado sobre o horizonte, amplamente iluminado entre o céu e o mar. Até a estilização da fonte no nome da banda se alterou, simplificando-se. O som ganhou leveza, melodias suaves, mais teclados e sequências de acordes maiores que sugerem uma abertura, um aparente otimismo por parte do grupo inglês que, após passar por uma fase de penúria, em que precisaram pedir contribuições aos fãs pelo site, consegue, finalmente, lançar outro CD. As letras falam de amor, energia, comunhão, eternidade e soam a autoajuda, em certos momentos (“Only you can heal your life”), o que se compensa com a poesia despretensiosa de outros versos (“Love stills my mind like the sunrise”). Destaques para “Thin Air” (faixa que abre o disco), “A Simple Mistake” e a belíssima "Dreaming Light".

(18/12/2010)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

“Ratos, homens e folhas de relva”

Ainda me lembro de meu primeiro poema de Walt Whitman... entregue na praça, numa noite bonita de primavera, copiado com letra caprichada no verso de uma xérox da foto do poeta. Tornou-se um vício por muito tempo. Por muito tempo, aliás, namorei, da maneira mais terna, a literatura norte-americana, com seus beatniks, lagos e campos de centeio. Depois, porém, escolhi outras trilhas. Mas sempre pensei que, se me garantissem que os EUA têm ainda um quinto da poesia atribuída a eles nos poemas de Whitman, eu me mudaria para lá imediatamente.
Pois bem. Semanas atrás, falaram-me de John Steinbeck. E falaram de novo. E uma terceira vez, então numa livraria, quando percebi que aquilo só podia ser um sinal. O autor, que eu desafortunadamente não conhecia, integra o cânone literário norte-americano, foi Nobel em 1962, e escreveu obras como “A Leste do Éden” e “As vinhas da ira”, que espero ler em breve. Comecei, porém, por “Ratos e homens”, de 1937. Um livro de pouco mais de cem páginas, publicação da L&PM Pocket. Nada de mais, a princípio. Levei cerca de uma semana para concluí-lo, em minha tradicional leitura demorada, de saboreios e vésperas de sono. E, Deus, há muito tempo não chorava como ontem. Não que o choro sirva como medida para a qualidade de um livro, mas este, em particular, merecia... por ser simplesmente magnífico. As lágrimas representavam, mais do que o lamento pela triste trajetória dos personagens, o encanto por ter sido enredada em uma trama tão extraordinariamente construída, com tanta simplicidade, mas com uma maestria que só se revela no final, quando começamos a compreender os detalhes borrifados com discrição ao longo história. Claro, há, em toda adoração, algo de duvidoso. A grandiosidade do livro para mim relaciona-se a outras associações – como minha doce experiência com a literatura norte-americana ou a semelhança dos protagonistas com dois personagens comoventes de Akira Kurosawa, no filme “Dodes´ka-den” (1970), a que assisti recentemente. Mas há, sem dúvida, algo de fascinante em “Ratos e Homens”, de um fascínio tão puro, que só posso querer agora deitar-me sobre as “folhas de relva” e sonhar com o Mississipi.

(13/12/2010)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Desconsiderações futebolísticas

Um time que não dá conta de ganhar da equipe reserva do Goiás simplesmente não merece o título. O Corinthians perdeu o Brasileirão – assim como os demais campeonatos que disputou este ano – por pura incompetência. Salários bilionários a craques do passado, importantes desfalques como a saída de Mano Menezes, fatídicas contusões... podem servir como desculpa, mas a verdade é que jamais apresentamos o futebol à altura de um campeão este ano. A partida de hoje serve como metonímia de nossa desorganização, da fé no acaso, da cega ingenuidade que nos alimentou ao longo do ano todo. O trágico vai ser sair na rua amanhã e ver o desfile azul dos vice – que, no fim, são tão perdedores quanto todos os outros – arrotando a arrogância típica das marias, falsos justiceiros recobrando os chorados três pontos perdidos naquela partida contra o time que, em outro momento, eu chamaria de Timão. Mas não dá para ficar triste. O Corinthians não merece isso hoje.

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Campeonato de segunda categoria, é inegável. Como naquelas gincanas de TV aberta, ao estilo do lendário “Passa ou repassa”, a última prova decidiu tudo, como se valesse mais pontos que as brincadeiras anteriores. Porque, como diria o bom e velho Capitão Nascimento, os times este ano foram um bando de fanfarrões: brincaram de “cai, cai, balão”, de “vou, não vou”, mas, principalmente, brincaram com a cara do torcedor. Até o Botafogo deu um jeito de perder feio para o Grêmio e mandar, provavelmente, mais uma vez, o tricolor gaúcho (carrasco antigo) para a Libertadores de 2011. E o São Paulo, que nada fez o ano inteiro, conseguiu golear o Atlético-MG... uma piada este Brasileirão, uma piada de muito mal gosto.

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Só não foi pior porque deu Fluminense, que não ganhava há vinte e seis anos, e que, coincidentemente, é o time do meu pai. Na minha família – como já disse – ninguém gostava realmente de futebol, mas, por influência minha e do meu irmão, meu pai começou, certa época, a acompanhar os jogos conosco e a ativar o amor pela equipe das Laranjeiras. Na maioria das vezes, ele se deitava no chão e dormia a partida toda, acordando vez por outra com os meus gritos de fúria, alívio ou comemoração. Mas, nesse período, houve um domingo em que eu o vi muito feliz: foi quando o Fluminense ganhou o Campeonato Carioca sobre o Flamengo, com o inesquecível gol de barriga do Renato Gaúcho, em 1995. Então, por outro momento de felicidade do meu pai, talvez eu consiga ver certo sentido no resultado do Campeonato Brasileiro deste ano.

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Apenas mais uma coisa: nos últimos dois jogos, torcendo contra o Fluminense e o Cruzeiro, acabei vivenciando algo que jamais, em toda a minha vida, esperei que acontecesse: eu torci para o Palmeiras. Gritei “Porco!” e tudo, fiz um coraçãozinho com as mãos para o Dinei, quando marcou gol, na última partida. E – pasme! – fiquei emocionada com o vídeo do japinha, lamentando-se por nunca ver o “alviverde imponente” ganhar. Pois é. Sorte que a gente recobra rápido os sentidos e volta a reconhecer um rival como tem que ser. Vou folhear o livro “Piadas para zoar palmeirense” que ganhei, recentemente, de um aluno querido, e rever, com outros olhos, o vídeo do japinha, que é para me divertir um pouquinho: http://www.youtube.com/watch?v=HGWsqAOAElY&NR=1
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Droga, fiquei com dó do menino de novo...

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

One

O que aconteceu comigo ontem,
eu jamais imaginara,
nem nos meus melhores sonhos,
nem naqueles que imitam
a busca do tempo perdido de Proust.
E mesmo que hoje,
como na velha canção,
o mundo tenha voltado
a andar complicado,
com tropeços e amargas surpresas,
vou inverter o conselho,
o provérbio,
e viver o ontem.
Porque ontem eu estava feliz,
tanto quanto
raras vezes me senti.

(01/12/2010)

sábado, 13 de novembro de 2010

Les Choses

Eu gosto de coisas. Não por acaso, admiro o temido – para muitos, execrável – Alain Robbe-Grillet, em sua primeira fase, a conhecida como “chosiste” (coisista). As coisas nos dizem: roupas, acessórios, livros, quadros, móveis, revistas em quadrinho, CD´s e DVD´s. E, às vezes, deixam de dizer. Algumas semanas atrás, uma colega de trabalho criticou os meus brincos. Na hora, fiquei irritada. “Será possível que, ao acordar, às 5h da manhã – o que, por si só, já é sofrimento suficiente –, eu ainda terei que pensar com calma na escolha do que penduro na orelha?” Dias depois, remexi o porta-joias: meus brincos realmente não tinham mais nada a ver com a “eu de hoje”. Já tiveram, claro, na minha fase hippinha. Mas isso ficou para trás e os brincos também deveriam ter ficado. Não tenho, porém, coragem de jogar as coisas fora, assim, a sangue-frio. Então peguei uma caixa bonita, e guardei ali os brincos que não mais me traduziam. Dei à senhora que lava a minha roupa, sempre tão cordial e caprichosa. Ela tem filhas e sobrinhas, e alguém poderia, quem sabe, gostar de alguma das bijuterias. E vi que tinha acertado quando, ao entregar a sacola de roupas limpas, a senhora veio acompanhada da filha, de uns oito anos... assim que abri o portão, a menina me esperava, com os braços na cintura, o peito estufado, como uma super-heróina, exibindo-me um par de brincos vermelhos, compridos, outrora meus, e um sorriso indescritível. Fiquei feliz por uma semana por causa daquilo. (...) Outra coisa que me faz pensar nas coisas: o supermercado. O Veríssimo (o Luís Fernando) já escreveu sobre como o lixo descreve nossas personalidades. Mas antes do lixo vem a lista de compras. É um dos meus passatempos favoritos: tentar adivinhar as rotinas por aquilo que as pessoas colocam no carrinho de compras. Dias atrás, entretanto, notei que estava sendo vítima do meu próprio veneno: o caixa que costumeiramente me atende, um moço bonzinho lá de Barbacena, começou a querer puxar conversa através dos itens na esteira. Primeiro foi o bolo que comprei no meu aniversário, as velinhas, a idade, se ia ter festa; depois, os sacos de pirulitos que distribuí para os meus alunos no centenário do Corinthians... e mais conversa, indo e vindo, assim, sucessivamente. Até que, para arrematar a curiosidade e calar as pretensões possivelmente amorosas do rapaz, comprei um vinho chileno e um par novo de taças. Seu olhar triste para a garrafa foi de dar dó. É, as coisas, por si mesmas, podem ser só coisas, mas como dão margem à imaginação...

*

Só para constar: duas semanas atrás, em Três Corações, minha madrinha contou que o Juninho (veja postagem anterior) sempre assiste aos jogos do Corinthians, e a chama: “Vem, Vó, vem ver, é o Corinthians. A Gelly deve estar lá torcendo, né?” Achei comovente. Resultado: dei a ele, no dia seguinte, a prometida camisa do Timão.

*

Todo mundo vai falar que não foi pênalti, que foi roubado, que o Corinthians – sabe-se lá por que – é o queridinho da mídia, da arbitragem, do governo, do Bope, da Interpol... Mas a gente ganhou. Estão lá os três pontos, vamos dormir na liderança, estamos felizes (assim como o Galo que, merecidamente, goleou o Luxemburgo). E, pelo menos por enquanto, como diz o filósofo James Hetfield, “nothing else matters”.

sábado, 30 de outubro de 2010

Juninho

A gente bem que tentou criar o menino, como o filho que não tivemos e que, juntos, jamais teremos – meu irmão e eu. Com pretensões didáticas, em cada visita à terra natal, nós o ensinávamos a jogar damas, xadrez e a usar desodorante. Chegamos mesmo, ao notar suas tendências flamenguistas, a chamá-lo para uma conversa séria, em que eu disse: “Você pode escolher entre o time que quiser, qualquer um... entre São Paulo e Corinthians.” Ele nos fitou, indeciso, e (eu sei, tenho mais cara de brava) acabou respondendo: “Corinthians.” “Então eu vou sustentar o seu vício.” E prometi uma camiseta que ainda não comprei, visto que não há vício nenhum ali além do vídeo game. E, quando dissemos, empolgados, que em breve teria início a Copa do Mundo, e que haveria futebol o tempo todo, por um mês de indizível felicidade, ele ficou desconcertado, querendo saber se o SBT continuaria exibindo a sua série favorita, “Supernatural”, a que ele assistia com a cachorrinha, a Sasha, com o medo que tinha do excitante sobrenatural. Há uma porção de narrativas sobre o Juninho, um arquivo gigantesco de fotos e uma sequência de vídeos (porque, todos os anos, nós o entrevistamos, para acompanharmos a mudança de seu ponto de vista sobre o mundo com o passar do tempo), mas a melhor história talvez seja a das contas matemáticas. Quando estava prestes a começar a 1ª série, decidimos ocupar o tempo de suas visitas frequentes à nossa casa ensinando-lhe as quatro operações básicas. E o menino, que sofria de déficit crônico de autoestima, passou a se orgulhar de si mesmo por conseguir fazer “contas de cabeça”. E com toda a razão, porque ele era bom nisso. Mas o que o incentivava era o que vinha junto com os números... Sabendo das preferências alimentares do garoto, a gente dizia: “Você tem vinte salgadinhos...” E ele, ansioso, perguntava: “Qual salgadinho?” “Coxinha. Aí ganha mais quinze...” Ele emitia uma série de gulosas interjeições, e respondia: “Trinta e cinco! Trinta e cinco coxinhas só pra mim!?” Acertava todas as adições, multiplicações, e, num tom mais melancólico, também as subtrações e divisões. Dias atrás, ele me falou que, agora com dez anos, é um dos melhores alunos da sala, e que isso é por causa daquele verão que passamos juntos, fazendo contas de cabeça. E, o melhor, quando me assistia ensinando as tais operações para o seu primo mais novo (só com algarismos, sem acréscimos alimentícios), ele, notando a dificuldade do menino, aconselhou: “Faz as contas com pão de queijo, Gabriel!” Ironia: da matemática, o que ele mais gostava era, no fundo, o sonho, o abstrato, o literário.

(30/10/10)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Starts with you...

Faz mais de uma semana que voltei do SWU, em Itu – aquela reedição do Woodstock sobre a qual escrevi em julho neste blog – e ainda estou bendizendo diariamente o prazer de deitar na minha cama quentinha, com edredom e travesseiro. Porque, numa boa, ir a festivais só nos faz pensar no quanto seu formato deveria ser repensado. Claro que há algo sublime, meio wagneriano, nas proporções gigantescas do evento, com 160 mil pessoas, 74 atrações musicais, em uma fazenda, a céu aberto, no meio do nada... Tudo isso fora a ideia “starts with you” da coisa: é isso aí, vamos salvar o mundo! Estavam lá as lixeiras (cujo conteúdo seria quase integralmente reciclado), as exposições de arte, as frases de efeito no telão e as instalações interativas – como um labirinto construído com lixo prensado, bastante sugestivo. Mas o tempo fez questão de mostrar que o descaso de séculos com o planeta não vai ser revertido com três dias de festa supostamente consciente. O clima era de deserto: de dia, um sol insuportável, de queimar, arder e descascar a pele; à noite, o pior frio que eu já senti na vida. E olha que eu já senti frio! A sensação térmica chegou aos sete graus. Havia momentos em que eu torcia para que os shows acabassem logo ou para que alguém no palco me olhasse, ali, tremendo, sem agasalho, indefesa, e dissesse: “Por favor, alguém empreste uma blusa de lã pra essa menina! Um casaco de soft? Pode ser, pode ser.” Jamais vou me esquecer da madrugada congelante, durante o show do Linking Park (a que não assisti, ávida que estava por uma minipizza de oito reais, depois de doze horas sem comer), e da gentil senhora de Macapá, que, junto a três manauaras, enrolava-se em um cobertor cor-de-rosa que por alguns instantes me aqueceu também. E o ônibus da excursão só apareceria às 4 horas da manhã, porque algum playboy queria ver o show (?) do Tiesto. Outro inconveniente, aliás, é a mistura de públicos, que, com diferentes objetivos no mesmo lugar, não sabem respeitar o espaço do outro, vaiando bandas ancestrais como Yo la tengo, transformando brindes em pilhas de lixo, emporcalhando o já nojento banheiro químico. Porém, dramas à parte, o show perfeito do Queens of the Stone Age, o prazer indizível de assistir ao encontro dos irmãos Cavalera, a doçura do Pixies e, claro, o belíssimo (!) show do Incubus fizeram valer esses sacrifícios. E ano que vem tem mais... Anunciam-se Alice in Chains e o retorno das cinzas do System of a Down. Mas, desta vez, eu levo um poncho, um cachecol e uma garrafa de conhaque.

*

E por falar em Incubus, o vocalista, Brandon Boyd, que também é escritor e artista plástico, foi preso dias antes de embarcar para o SWU, ao encontrarem um canivete em sua bagagem de mão, no aeroporto de LaGuardia. Por coincidência, foi exatamente sobre o que me alertaram meus estimados alunos quando souberam que os acompanharia em uma viagem a Petrópolis (dois dias após voltar de Itu): “A viagem é de ônibus, mas os canivetes continuam proibidos.” Uma doce referência, óbvio, à minha linhagem corintiana. O passeio por Petrópolis foi memorável, é claro. Rendeu, por exemplo, o texto cujo trecho transcrevo a seguir, de autoria de Mateus Nardelli:
“Fedor, vômito, e uma eternidade assentado. Essas são as mais temidas sensações das viagens de ônibus, pelas quais a maioria das pessoas já passou.
Quem nunca usou um banheiro químico? Utilizar um banheiro no qual só se pode urinar. E essa urina fica acumulando na água até o produto químico a diluir. Não sei se vocês concordam comigo, é no mínimo nojento. Mas não é só a questão sanitária que traz insatisfações naquelas horas. O pior é chegar até lá. Essa arriscada epopeia que vivemos para nos aliviar é mais perigosa do que qualquer esporte radical. Uma única freada em momento errado e podemos transformar nosso simples instante de alívio em um traumatismo craniano e um cotovelo ralado. Não vamos nos esquecer da hora H, que para os homens é um emocionante jogo de tiro ao alvo e, às mulheres, um touro mecânico.”

E ainda me perguntam se gosto do que eu faço...

domingo, 10 de outubro de 2010

E não é que foi bom!?

É, galera, e eu fui a São Paulo ver o Bon Jovi esta semana. E o Bon é bom, naquilo que se propõe a fazer – sejam baladas grudentas, refrões otimistas ou cantadas a repórteres femininas. Mas havia outros significados em estar ali, mais uma vez no “La Bambinera”, espremida entre sessenta mil pessoas que gritavam histericamente a cada vez que o telão exibia o sorriso cheio de dentes desse moço (sic) de New Jersey. A verdade é que o Bon Jovi, por causa da “Always”, foi quem abriu as portas para as outras bandas de rock na minha vida. Parece piada, mas, quando ouvi pela primeira vez um CD inteiro dele, percebi, estarrecida, no auge dos meus magrelos 11 anos, que eu gostava das músicas “pesadas” – e você entenda com generosidade o peso no Bon Jovi, claro. E foi para aprender as letras dele que decidi estudar inglês. E o elegi como ídolo – a ser substituído, pouco tempo depois, pelo simpático Eddie do Iron Maiden –, desses pelos quais a gente chora, pensando na injustiça da vida que fez impossível o encontro de vocês. Foi, sim, para provar a essa menina de 11 anos, do interior de Minas, que, em certa medida, encontrar o Bon Jovi não era impossível, que embarquei na missão “Bon: o som da sexta série”. O outro motivo foi o imenso prazer de estar lá com meus amigos de colégio, que dividiram comigo a febre “I´ll be there for you” one of “these days”. A terceira razão é, óbvio, o espírito de aventura. Acho que, se tivesse ganhado, em um desses concursos de rótulo de margarina, o direito de ser levada ao concerto por um helicóptero, que me buscaria em casa e me deixaria lá, no camarote VIP da Globo, não teria sido tão legal. Ir direto do trabalho para o aeroporto, pegar em Guarulhos uma carona com uma santa desconhecida do interior do Espírito Santo... aí entrar num táxi com três recifenses (tão desconhecidos quanto) torcedores do Sport (que ficavam recordando a Copa do Brasil que ganharam sobre o Timão)... depois encontrar meus amigos de TC – que estavam com o meu ingresso! – na porta do estádio (o melhor abraço de toda a minha vida)... e sair de três horas intensas de show para o aeroporto e do aeroporto para o trabalho (quase a lei do eterno retorno)... Isso, sim, foi o show do Bon Jovi. Quase como descreveria o galã, se isso fosse uma canção: “Hey, man, I´m alive, I´m taking each day and night at a time. I´m feeling like a Saturday night” em plena quarta-feira gorda. E que venha, daqui a pouco, o SWU!
(10/10/10)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Homenagem sans titre

A

Quando meu pai chegava em casa, ouvia-se o estalar de seus joelhos ao subir a escada, e sua barba roçava calada o espaço vago dos corredores. Sem dormir, eu fingia. Pesada e atenta, ganhava, de todo o seu cansaço, um carinho móvel – abraço guiado entre estreitos de portas e vãos – até o meu canto, sem notas. Meu pai sabia de cor o nome das capitais, meia dúzia de constelações e certas canções sertanejas de filhos que voltam, bules de café e fogões de lenha. Eu soube sempre esperá-lo sem palavras.

B

Minha mãe me disse que o homem era o culpado pela morte dos dinossauros, tantos anos antes de nós duas no mundo. Sabia que era mentira, mas não queria contrariá-la. Tinha perguntas demais em mim, que não rimavam com seus olhos, os mais graves, nem com a sua atenção sem dono. Nunca descobri a que alegria minha mãe pertenceu por inteiro, sem horários ou normas. Contou-me três histórias de fadas e uma série de fábulas, que reconto até hoje, costurada para sempre a seus provérbios e finais felizes. Minha mãe ensinou-me a honestidade e a gratidão, e mostrou-me o quanto é forte a fraqueza, nos lobos, nas peles e nos cordeiros.

C

Quando rezava a oração do anjo da guarda, dizia, contraditória e sem egoísmos: meu anjo da guarda, minha doce companhia, me proteja e me guarde – eu, minha mãe, meu pai, meu irmão – de noite e de dia, amém. Era como se soubesse que, em mim, carregava os três, inseparáveis, partes do mesmo pronome pessoal. Mais tarde, incluí o Corinthians, meu time do coração, que me fez sofrer muito mais do que todos os meus namorados e amores de papel.

D

Aprendemos a nos proteger juntos, com paredes claras e bom-humor mordaz, das guerrilhas domésticas e do gosto musical malogrado dos nossos vizinhos. Soubemos sempre dividir ao meio chocolates, esperanças e bandas de rock. Dos roedores sorrateiros e das noites sem luz elétrica, salvaram-nos vozes, nossas, com seus cavaleiros e nuvens atados a elas, brilhantes. Dos medos do mundo, de todos e tantos, o meu, mais verdadeiro e triste, é perdê-lo de mim.

E

Antes seriam cinco e teriam nomes estrangeiros. Depois, três; as meninas em maioria, com pliets e elevets. Em seguida, meia década, mais realista, quis um só: Johann, como o compositor alemão, mas, de preferência, sem fugas. Hoje, transito entre um e zero: Heitor, nome pelo qual me apaixonei na dedicatória de um livro bom; ou Zero, como o cachorro fantasma de um tétrico stop motion. Se tiver um filho, quero pedir-lhe para ser do mundo, desde o início, para que não haja dor nem adeus. Só o vento forte das tempestades na tarde seca, arrancando, das flores, perfumes íntimos, seus.
(fev./2009)

domingo, 19 de setembro de 2010

Baby, o porquinho

Deram uma paulada na cabeça do porco que, com as patas amarradas, tentava escapar do inevitável. Era uma tarde de sol, dessas de verão precipitado, numa cidade de médio porte. Quem tirava um cochilo de depois-do-almoço acordou assustado. O grito do porco arranhava o raciocínio, derrubava as paredes, entrava no ouvido como a faca debaixo da pata esquerda, o sangue que saía em jatos. O sangue tinha mesmo que escorrer ou estragava a carne, dizia um entendido. Devia ter cortado a jugular, dizia outro, assustado com o olho aberto do bicho, que ainda se estrangulava num ruído agudo, um guincho, desesperado, insistente. A dor do grito do porco é o mais legítimo som do sofrimento. Um dos homens, o mais assassino de todos, afundava mais fundo o facão, já cego de tanto vermelho, sem saber onde nem como nem quanto. E alguém chegava agora com a água fervendo, que era para escanhoar o animal, tirar o pelo áspero, abrir caminho para a pururuca, pro torresmo. Aos poucos, o bicho foi morrendo, com seu rabo torcido e seu focinho de tomada cor-de-rosa. E o eco do grito do porco deu lugar ao martelar dos prédios em construção, numa cidade de médio porte, tão cheia de fé em si mesma.
(19/09/2010)

sábado, 11 de setembro de 2010

Allons-y, à la plage!

Ir à praia sempre pareceu algo pouco natural para mim: afinal, representaria torcer contra a chuva e ouvir axé sem ficar analisando – e criticando – a letra. Mas não era só isso: a intromissão da areia, o sol, a pele descascando depois, e aquela série de coisas que as pessoas costumam achar “superlegais”, como pular onda (ah, que divertido!) e depois ficar “secando”, estirado sobre a canga colorida, com tantas partes do corpo à mostra, na ânsia de voltar para casa bronzeado, com “marquinha de biquíni”... bem, tudo isso me cansava só de imaginar, e eu escolhia mesmo era perseguir os lugares frios – de preferência, com possibilidade de geada e neve. Mas as coisas mudam, e a gente muda também. Poucos anos atrás, comecei a achar bonito o mar e a gostar do sol – um pouco por influência das “Núpcias”, de Camus, que é um livro belíssimo sobre essa riqueza dos litorais. E a ir à praia em situações inevitavelmente empolgantes, com grupos de pessoas bem entusiasmadas, dessas de quem você precisa fugir, sorrateiramente, e se esconder no banheiro, se quiser ler um livro sem que pensem que você está triste, com princípios de depressão ou algo assim. Com o tempo, a gente aprende a se deixar contagiar. A ver que não há mal nenhum nisso. E passa até a gostar dessas férias solares de si mesmo. Foi o que aconteceu no último feriado, quando fui para Ubatuba com meus amigos de colégio. Nós nos conhecemos há uns dezessete anos, sabemos uma tonelada de coisas uns dos outros, a ponto de podermos prever nossas reações a tais e tais situações, e, mesmo assim, ainda nos gostamos, sentimos saudade, queremos ficar perto. Porque a amizade tem que ser assim, uma piscina de almofadas, sobre a qual você possa se atirar sem medo, podendo dividir suas expectativas, seus segredos e mesmo suas inevitáveis irritações. Choveu todos os dias em que estivemos na praia, e não pude trazer para casa a famigerada “marquinha de biquíni”... Porém, ninguém teve dúvidas de que se divertiu, de que havia, sim, algo de ensolarado nessa viagem entre amigos, que a gente queria fazer há pelo menos dez anos, mas que não podia, porque nossos pais não deixavam antes. Pois é: mais uma prova de que envelhecer faz bem.

(11/09/2010)

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O Ser e o Nada

Um amigo, também leitor de Camus e Baudelaire, e constantemente arrebatado pela náusea sartreana, disse-me uma vez que palavras como “migalha”, “prosaico” e “frugal” haviam sido inventadas por mim. Discordo: quem as criou foi Woody Allen. Depois de assistir a seu mais novo filme, “Tudo pode dar certo” (“Whatever works”), fico ainda mais maravilhada com a maneira pela qual esse diretor norte-americano consegue transformar em cinema de qualidade quilos e quilos de neuras, que renderiam, na melhor das hipóteses, muitos anos de terapia e meia dúzia de antidepressivos ingeridos de oito em oito horas. Porque os filmes de Woody Allen, além de nos garantirem boas gargalhadas e a imensa vontade de pegar o primeiro voo para Nova York, resumem-se, no final das contas, a diálogos mordazes intermináveis, recheados de referências niilistas, políticas, religiosas – que nem sempre a gente consegue acompanhar –, que refletem as neuroses comportamentais mais cotidianas e pessoais do diretor. No caso do último longa, a sensação de prosaísmo se intensifica pela presença, no papel principal, de Larry David. Para quem não sabe, David é o roteirista e produtor de uma das séries de maior sucesso em todos os tempos, "Seinfeld" (1989 – 1998), e, mais do que isso, inspirou-se na própria personalidade para criar o personagem George Costanza (interpretado por Jason Alexander). Costanza é, simplesmente, o cara mais adorável e detestável do mundo dos sitcoms, em toda a sua perturbadora “humanidade” (que, neste caso, nada tem a ver com altruísmo e generosidade; muito pelo contrário), nesse seriado que se define como “uma série sobre o nada”. Parece, então, que não é de hoje essa moda – visível pela proliferação de blogs, twitters, podcasts e outras invencionices do gênero – de se falar sobre o nada. Ou o tudo: o dia-a-dia, o frugal, o prosaico. E faz todo o sentido. Assim como declara o personagem de David no filme de Allen, “pouco importa se os EUA têm agora um presidente negro. Pegar um táxi em Nova York continua sendo impossível.” Ou seja, no fim, o que interessa para cada um de nós – sendo agora um tanto benjaminiana – é a história dos esquecidos, a nossa, a que não sai nos livros de História nem na capa da revista “Caras”.
(03/09/2010)

domingo, 29 de agosto de 2010

Arthur Bernardo

Por duas vezes, dei de presente – a um então-amigo e a um então-namorado – um peixe beta azul. No primeiro caso, o peixe ganhou o nome de “Rumble”, em homenagem àquele que veio a ser o primeiro filme do Coppola a que assisti. No segundo, o nome (composto) era uma homenagem ao então-casal que formávamos, e recebeu, posteriormente, uma peixinha que lhe fizesse companhia – mas em aquários separados, que é como funcionam os relacionamentos modernos dessa espécie aquática. Segui pensando que um peixe combinaria muito bem com a decoração do meu pequeno apartamento, mas, sabe-se lá por que, jamais comprei um para mim. Talvez pensasse que faria mais sentido se fosse um presente. Porque oferecer a alguém um peixe ou uma planta é um voto de confiança, como se disséssemos: “eu confio na sua capacidade de cuidar.” Ao menos, sempre foi assim para mim. Pois bem. Cerca de um mês atrás, ganhei, de dois alunos meus – Arthur e Bernardo –, um peixe beta que, coincidentemente, é azul. Agora, Arthur Bernardo – ou Tutubê, como apelidou outra aluna, a Lara – enfeita o móvel da sala e, mesmo na sua limitada euforia, dá à nossa casa um significado novo, como o terceiro habitante que, de fato, é. Foi com ele, afinal, o meu primeiro encontro no dia do meu aniversário. Convenhamos, fazer aniversário nunca é fácil, porque, como o Natal e o Ano Novo, é uma data que nos recorda de que mais um ano escorreu invisível diante de nossos olhos, nos arrastando com ele, em suas frustrações, vitórias e apatias, e que é hora de virar mais uma vez a ampulheta, e torcer para que a areia caia mais devagar desta vez. Mas, felizmente, este ano foi mais fácil do que muitos outros. E grande parte disso se deve ao beta azul no aquário pela manhã: porque ele me fez pensar nos meus alunos, e não só neles, mas em todas as pessoas que me são importantes, de que eu gosto e pelas quais me sinto “gostada”. E tudo foi ficando ainda mais simples à medida que o dia passava, com a festa linda do 8º ano – com direito a torta de limão, pudim de pão, brigadeiro, cartaz e balões preto-e-brancos, em homenagem ao “Curíntia”–, os telefonemas, os e-mails, as palavras, os abraços e tantos presentes recheados de significados os mais bonitos. Juntar carinhos é um jeito excelente de sentir o tempo passar – mas que passe lentamente, por favor, que a vida é boa, e é só uma.

(29/08/2010)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ouvindo Calamaro e Soda Estereo

“Pessoas foram feitas para serem deixadas, como apartamentos alugados e pequenas cidades do interior.” Assim começava um texto a que dei início há muito tempo e que nunca consegui terminar. Talvez porque, se não me falha a memória, se parecesse bastante com alguma coisa que eu lia na época, Caio Fernando Abreu ou algo assim. Volta-me, às vezes, como um estribilho, mas a que não consigo dar continuidade sem engastalhar em clichês e pieguices. Volta-me, agora, por associação: falaram-me, há poucos dias, sobre dois filmes que não revejo há muito tempo: “Antes do amanhecer” e “Antes do pôr-do-sol”, com aquele casal belíssimo, a Julie Delpy e o Ethan Hawke. Os dois se conhecem por acaso em um trem para a Áustria, vivem um romance intenso como um poema feminino, depois se despedem – para se encontrarem, uma década depois (no segundo filme), casualmente, em Paris. É, a princípio, uma história sobre a beleza das coisas passageiras, sobre “as coisas findas que (muito mais que lindas)” ficariam... Mas o roteirista não dá conta: ele insere essas confortáveis reticências, essa parte dois, esse “e eles decidem ficar juntos no final”. Porque nós, na maioria das vezes, também não damos conta: a gente fica esperando as cenas do próximo capítulo, o reencontro, o dia seguinte. E não entende que há coisas na vida que só podem durar um instante, que enferrujam no segundo amanhecer, que logo viram pôr-de-sol. Faço aniversário daqui a alguns dias e, enquanto alguém num lugar distante diz pensar em mim ao assistir a esses filmes românticos, peço que a idade ímpar que alcanço agora traga-me sobretudo a inteligente desesperança na parte dois de certas coisas.

(17/08/2010)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A sexta história

Despertou-me a balada antiga, desconhecida, que exalava o rádio-relógio em voz baixa. No visor, em vermelho, as sete horas com vinte e cinco eram desmentidas pelo escuro da noite que ainda pesava do outro lado da janela sem cortinas. Estendi a mão até o celular, a fim de certificar-me: não, não havia perdido a hora, eram ainda quatro da manhã, uma hora e meia até o momento de me levantar. Fui até o rádio-relógio para tentar, em vão, desligá-lo. O som continuava. Puxei o fio da tomada. Deitei-me. Não consegui, porém, conciliar o sono. Formigas. Amarelas, espaçosas. Havia visto, dias antes, um casal desses insetos escalando a cômoda. “As formigas estão partout, como os chineses”, pensei, com descaso. Agora, porém, a certeza me atingia como uma bofetada: eram elas as culpadas pela insanidade do rádio-relógio que, por mais de vinte anos, nos despertara, a toda a nossa família, sem aflições ou demoras. Remexia-me, como um ilustre cadáver desonrado, buscava a tranqüilidade em pensamentos bons. Mas era tarde demais: sentia a sujeira do de dentro daquele aparelho, barulhava a devassa população de formigas, vivas, festejantes, zombeteiras. Haviam tomado posse dos azulejos brancos, dos cantos mais íntimos da casa, e agora, também, da minha madrugada. Não pude me conter: arranquei o rádio-relógio do quarto, misto de pena e ira, e o levei até o tanque. Lavei-o. A torneira aberta, a pressão ruidosa da água, as gotas que molhavam meu pijama leve de verão. E o desespero: aos montes, as formigas corriam para fora do aparelho inundado; frenéticas. Eu enchia o tanque, como a uma piscina, e depois esperava que os corpos inertes descessem pelo ralo, em rodopios. Então, quando parecia estar oco daquelas pequenas monstruosidades, enrolei o rádio em uma sacola plástica e atirei-o à lixeira do condomínio. Tomei um banho demorado, tentando tirar de mim o rastro daquela violência doméstica. Mais tarde, no trabalho, queixei-me de formigas – e esperei que alguém me passasse a receita de um elixir da longa morte, talvez açúcar e gesso, talvez um veneno qualquer, vendido na Araújo drugstore.
(04/08/2010)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Hasta pronto – yo espero

Quando tinha uns quatorze, quinze anos, costumava ler a coluna do Gustavo Ioschpe no Folhateen. Na época, ele tinha apenas dezenove anos, e fazia uma das suas duas graduações (uma em Ciência Política, outra em Administração Estratégica) na Universidade da Pensilvânia. E escrevia muito, muito bem. Ainda não era o economista renomado que veio a se tornar, mas já exibia uma maneira cosmopolita e crítica de ver o mundo. E eu morria de inveja dele. Porque o cara costumava escrever acerca de sua experiência de vida fora da terra tupiniquim (e ele gostava muito de usar esse adjetivo) e sobre como a gente só conhece o nosso país quando o vê do lado de fora, quando se está distante dele. No entanto, eu, àquela época, estava longe da oportunidade de sair do Brasil, mesmo que fosse para buscar muamba no Paraguai. Minha boca enchia d´água só de pensar em tomar um avião, cruzar oceanos, ficar perdida no centro de Paris. Mas era financeiramente impossível, cronologicamente impraticável. Anos depois, afinal, acabei inaugurando a viagem ao exterior na minha família. Fui a primeira, de todas as gerações, de ambas as procedências (paterna e materna) a cruzar uma fronteira. Depois outras. E ainda virão muitas, eu espero, porque agora, felizmente, consigo compreender o que aquele colunista lelesque queria dizer: a gente só aprende a entender o nosso país, com amabilidade e um tantinho de sarcasmo, quando passa dias tendo que se comunicar em uma língua estrangeira (que você descobre na prática que não sabe falar), cercado por pessoas que passam por você sem o notar – ou que, quando o fazem, nem sempre têm boas intenções. Depois de duas semanas na terra daqueles que perderam de quatro para a Alemanha, sozinha, tentando falar aquele “castechano” chiado, lendo Borges e Fontanarrosa, ouvindo o rock de Patrício Rey e sus Redonditos da Ricota (ah, esse “rrrrr” impronunciável), é muito bom voltar para casa. Claro, sentirei falta das belas praças e monumentos, de estar cercada pelos guapísimos porteños (o metrô parece mais uma agência de modelos!), de desayunar alfajores, tomar fernet com cola... Mas, devidamente guardadas as recordações, saboreio com prazer o meu sotaque (sem culpa), o clima agradável da manhã, a impagável sensação de estar de volta a um lugar onde é um pouco menos difícil confessar, pedir, xingar. É muito melhor ser a gente mesmo no nosso próprio idioma.

(27/07/2010)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Escrevendo como o Tostão (ou: Por que ele está na Folha e eu não?)

Eu não quis escrever sobre a Espanha antes da final, embora os amigos mais próximos soubessem que era dela o meu coração desde o princípio, para não agraciar certos alunos (queridos alunos, claro) com uma piada pronta: se a Espanha perdesse, diriam eles que era por culpa minha, porque ter corintiano na torcida dá azar, que todos os times para os quais eu torço sempre perdem etc. Pois é. Provavelmente, surgirão agora com um “até que enfim você escolheu um vencedor” e algo do tipo. A verdade, creiam ou não, é que torci pela Fúria na Eurocopa de 2008 – quando eles apresentaram um futebol simplesmente memorável – e já admirava (nos dois sentidos) o goleiro Casillas desde a Copa de 2002. Mas houve momentos em que, confesso, titubeei: o exagerado toque de bola espanhol, que, muitas vezes, resultava ineficaz, dava uma certa canseira. O Fernando Torres – El Niño Torres! – passou longe do espetáculo avassalador que seu apelido sugere. E a campanha surpreendente do Uruguai, com o bloqueio inesquecível de Suárez, deram uma desviada no rumo da minha torcida. Uma coisa é certa: não torci pelo Brasil, apesar de ficar feliz quando faziam gols os fabulosos e afins. Nem pelo Maradona, embora admire o futebol raçudo dos nossos hermosos hermanos. Concordo que a Copa do Mundo apenas eleja a seleção que jogou melhor neste mês, sendo arbitrárias demais as classificações dos melhores do mundo. Porém, frente ao resultado deste ano, há de se reconhecer que há mais de dois anos são os espanhóis e os holandeses que têm apresentado o futebol mais estável, com destaque para a atuação, especialmente quanto aos primeiros, de grande parte de seus craques dentro de casa, sem trocar a cor da camisa por um milhão a mais na conta bancária. Mas isso já é uma questão de oportunidade. O que representa poder atuar no próprio país, defendendo um Real Madrid, é bem diferente das opções duvidosas dos nossos jogadores no Brasil: pode-se até pagar (estrondosamente) bem a um dos nossos jogadores, mas ele precisa ter feito uma excursão pelo exterior primeiro. E olha que o Bruno estava quase indo pro Milan... Bandido! Se tivesse sido preso antes, não teria defendido aquela falta perfeita do Chicão, meses atrás, e o Timão ainda estaria na Libertadores. Mas essas já são outras histórias. Por ora, celebremos La Fúria!, que é o que dá para fazer por enquanto.
12/07/2010

domingo, 4 de julho de 2010

Woodstock – ou “Que será, será”

Vem aí a versão pós-moderna do Woodstock, que, segundo as boas línguas, acontecerá entre os dias 10 e 12 de outubro, em uma fazenda em Itu, interior de São Paulo. O evento – que possivelmente ganhará outro nome – tem sido o tema favorito das conversas entre roqueiros ou aspirantes a, que afirmam estar indiscutivelmente dispostos a dar as caras por lá, independente das intempéries dos acampamentos, da possível desordem e da grande probabilidade de a chuva enlamear certos riffs de guitarra nessa época do ano. Os ingressos, ao que parece, começam a ser vendidos já neste mês de julho, e as presenças quase confirmadas incluem nomes como Incubus, Pixies e Limp Bizkit. Mas, para falar a verdade, o que se tem até agora é uma dose cavalar de deliciosas especulações, que possibilitam, em teoria, a realização de vários dos nossos sonhos de roqueiros. A gente fica levantando hipóteses e tentando desvendar enigmas. O Pearl Jam, por exemplo, incluiu, na sua lista de seus shows, o ano de 1969 (quando, é claro, a banda nem havia surgido, mas quando aconteceu o primeiro Woodstock), como se desse uma dica aos fãs do que viria por aí – ou de que viriam por aqui. Da outra vez, em 2005, antes de anunciar os shows no Brasil, puseram “Garota de Ipanema” para tocar no site, grupo criativo que eles são, com seus encartes especialíssimos, anti-monopólio. Bem, serão cerca de sessenta bandas: é espaço suficiente para que muitos de nós façamos nossas apostas, imaginemos uma sequência de grupos e de setlists... Rage Against the Machine, Alice in Chains e sabe-se lá quem mais. Sonhemos. Enquanto tudo é sonho, tudo é possível.

(04 de julho de 2010)

domingo, 20 de junho de 2010

Para Augusto dos Anjos

Um dia acordou e havia envelhecido. Não mais trabalhava como antes, com a força necessária para empurrar carrinhos de cimento e subir paredes de tijolos. Procurou no jornal os classificados. Jamais pensara que seus braços teriam sido feitos com essa finalidade, a de enterrar os mortos. Mas não era assim mesmo? Não era assim que fazíamos todos os dias, com tudo aquilo que precisava ser esquecido, deixado para trás? Foi ser coveiro. Havia algo de romântico naquela profissão: a mise-en-scène do velório, da roupa preta, as viúvas e as condolências, as flores, a bandeira do time do coração estendida sobre o féretro. Era bom: no cotidiano, a solidão, o silêncio e o céu, que era de inverno eternamente, enquanto varria as folhas secas e as pétalas, por entre túmulos sujos de velas que se apagaram. E, pela noite, o vento gelado, os jovens de sobretudo e vinho barato, que pulavam os muros para tocar violão, violando a lei e evocando sugestivos sobrenaturais. Mas havia também a exumação. Anos depois do espetáculo melancólico do enterro, os ossos enegrecidos, a madeira carcomida, o fedor e o abandono de um corpo que nem os vermes desejam mais. Então pensava, com tristeza, que não havia parado de envelhecer, que não tinha jeito mesmo, que isso só piorava. Atravessava a rua e tomava uma cachaça ou duas no botequim da esquina.

(20/06/2010)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Z

Um amigo, fã de Rage against the machine e “O dia em que a Terra parou”, tinha duas frases inseparáveis. A primeira: torça pelo melhor, mas espere sempre o pior. A segunda: tenha sempre um plano de fuga em mente. Eu era adolescente e não internalizava esses alertas, entretida que estava entre todas as trocentas possibilidades dos meus anos vindouros, mas jamais as esqueci. Meia década depois, um outro amigo, compositor contemporâneo, afeito a filosofias e ao horóscopo chinês, estranhou quando eu disse que, ao abrir os olhos pela manhã, não listava a quantidade de desastres que poderiam me acometer naquele dia. “Se eu fizer isso, eu não levanto da cama!”, respondi, tanto quanto fortalecida por uma certa crença no positivo.
Acontece que, com o tempo, a gente aprende sim a tentar antecipar o pior. Aprende a não divulgar esperanças, só certezas; a respeitar a natureza dos segredos, que é a de serem secretos; a aceitar que as coisas ruins podem nos acometer, embora escovemos os dentes após as refeições e cortemos os cabelos na lua certa.
Porém, na semana passada, eu não resisti: divulguei neste blog um show que ainda iria acontecer, uma viagem que eu ainda faria... e, pior, prometi contar os detalhes depois. Quase morri de pavor, em seguida. Lei de Murphy, lei de Murphy, eu pensava, para tudo. Foram dias de intensa felicidade, mesclados a lapsos de temor: eu achava que sofreria um acidente, um assalto, que a reserva do hotel teria sido sinistramente cancelada, que nos atrasaríamos para o show, que nossos ingressos seriam considerados falsos, que a polícia apareceria e fecharia a casa de espetáculos (como, você sabe, já aconteceu antes), que os músicos teriam algum colapso nervoso e não subiriam ao palco... enfim. E, pasme: foi tudo perfeito. É raríssimo poder empregar essa palavra sem soar um entusiasta sem causa, mas não posso definir de outra forma a viagem a São Paulo, os passeios pelos museus, as aquisições fantásticas na Galeria do Rock, o show da Anneke e do Danny Cavanagh, a palheta dele que conseguimos, como souvenir... e, óbvio, os segundos em que conseguimos trocar “dois dedos de prosa” com nossos ídolos (ah, aquele sotaque inglês!..) e tirar algumas belas fotos ao lado deles. Claro: voltar para o hotel foi outro suplício. Cheguei a dizer que, naquela noite, poderiam levar a minha roupa, mas não levariam aquela câmera. Porém, nenhum meliante se aproximou, nem houve qualquer acidente na estrada... nem o Corinthians perdeu aquele final de semana (arrancou um empate aos quarenta e sete do segundo tempo!). E as fotos foram salvas no computador, enviadas por e-mail (é sempre bom garantir), e algumas enfeitam o porta-retratos da sala. É, de vez em quando – torcendo pelo melhor e esperando o pior - a gente consegue ser perfeitamente feliz.

(14/06/2010)

sexta-feira, 4 de junho de 2010

In Parallel

Se você está em dúvida entre casar e comprar uma bicicleta, ignore as duas possibilidades e vá a um show de rock. Não precisa ser de heavy metal, em que, eu admito, o público costuma ser menos perfumado, menos simpático e mais, digamos, entusiasmado do que o de apresentações de british rock e afins. Mas, se você não se importar em levar uma cotovelada ou outra, valem os shows de heavy metal também. A questão é: vá. Nada limpa mais a alma, descarrega as energias negativas e rejuvenesce! A gente verdadeiramente – perdoe-me o clichê – nasce de novo. E eu sei do que estou falando. À espera do quarto grande show do ano – após Metallica, Guns e Placebo -, sou a prova viva de que nada pode transformar tão bem a perspectiva nublada de uma noite de inverno em um estado de genuína felicidade antecipada. Eu simplesmente não consigo parar de sorrir! Só de pensar que irei rever a Anneke e, finalmente, conhecer o Danny Cavanagh... Sim, eu me refiro à ex-vocalista do The Gathering (“a banda da minha tatuagem”) e o guitarrista do Anathema (do show a que quase fui e que quase aconteceu, anos atrás). Ou seja: partes essenciais das minhas duas bandas favoritas se uniram e irão fazer um show no Brasil em minha homenagem! – e ainda escolheram, para isso, um feriado, para que eu possa estar presente sem transtornos no trabalho...rs! Agora, falando sério: eles estão divulgando o CD que gravaram juntos, chamado “In Parallel”, que reúne canções de cada uma das bandas, algumas do novo grupo da Anneke, o também já comentado “Agua de Annique”, além de uns covers inusitados, como “The Blowers´s Daughter”, do Damien Rice (aquela música que a Ana Carolina e o Seu Jorge nos ensinaram a detestar com sua risível versão intitulada “É isso aí”). Serão quatro shows no Brasil: Campinas, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo (ao qual estarei presente). Não posso, infelizmente, convidá-lo a me acompanhar, leitor, porque os ingressos estão esgotados, mas prometo contar direitinho como foi! Ah, e, para retornar ao paralelo de abertura deste texto: shows de rock valem mais do que casamentos ou bicicletas, porque, embora exijam certos gastos e incluam expectativas e preparativos, mantém o romantismo da eterna recordação, não se tornando, com o tempo, parte integrante do cenário – como pode vir a acontecer com os bens materiais adquiridos e os nossos tão estimados cônjuges.

(03/06/2010)

sábado, 29 de maio de 2010

ETC.

A verdade é que o “livre arbítrio” acaba sendo só mais uma expressão bonita que a gente aprende na vida. Ninguém escolhe nascer, pra começo de conversa. E a gente já nasce sendo metade do pai metade da mãe, com tendência pra ter varizes ou cabelo branco na adolescência, conforme a condenação da porra dos genes. E têm ainda os traumas de cada um dos nossos pais, e o fato d´a gente ser o irmão mais velho que todo mundo cobra, o mais novo que é um mimadinho, ou o do meio, que se sente um zero à esquerda, sem identidade... essas coisas. Ou ser o filho único, que é geralmente um egoísta e não sabe dividir nada etc. E depois, na medida em que a gente cresce, vem a política dos resultados, do tirar nota boa para passar de ano, ser aprovado no vestibular pra chegar na faculdade, estágio, aí ser efetivado, promovido... ou, pra quem leva jeito pra traça, fazer mestrado, doutorado, pós... Fora a matemática das conquistas amorosas, de ser 39% cafajeste, 21% sensível etc. No fim, a gente tá sempre amarrado a uma corda, uma queda de braço, um cabo de guerra, que te derruba por ser alguma coisa de mais ou de menos, por ainda não ser x ou por já ser y... e sobra, de fato, muito pouca escolha de verdade nessa vida.
Mas há a pelada de terça à noite. Quando a gente se reúne com meia dúzia de amigo e faz uma vaquinha pra pagar a quadra. Joga, depois vai pr´um boteco, tomar uma, ou faz um churrasquinho na casa de alguém, e fala de futebol e de mulher. E fica tudo bem.
E fica melhor ainda quando a gente sabe jogar. E é o meu caso. Eu sempre fui daqueles que decidem a partida, que não têm frescura e quebram o zagueiro que vem encher o saco, e que chutam de fora da área no ângulo, que humilham o goleiro, que dão paradinha na hora de bater o pênalti. Eu sempre fui o cara que todo mundo quer ter no time. E um adversário chato pra caralho também.
Aí, na última partida, era uma terça-feira como as outras. Eu tinha dado um duro danado na empresa, mas tinha fechado um negócio com um cliente pica grossa e tava me achando. Fui pra pelada ainda mais confiante do que de costume. E, de cara, marquei um golaço, de peixinho. O lançamento veio direto na cabeça do papai aqui... aí foi só correr pro abraço. Uns dez minutos depois, a mesma coisa: o lançamento perfeito da esquerda – o Clóvis anda batendo um bolão também, acertou duas vezes seguidas – e eu só matei no peito e chutei com a direita, a boa. Pá! Forte, no fundo da rede. “Indefensável”, como dizem os locutores de rádio – ou os de TV, que gostam mais de falar difícil. Mas aí o mané do Luiz Otávio – Luiz Otário! – veio correndo pro meu lado, cuspindo na minha cara, dizendo que eu tava impedido. Impedido o caralho! Eu ri, empurrei ele, a turma do deixa-disso veio separar a gente... Babaquice. Na pelada a gente não tem tira-teima. A bola entrou, tava dois a zero pra nós e pronto. Bichice brigar por causa disso... viadagem. O cara não joga nada e vem encher o raio do saco.
Bom, o babaca falou que não ia jogar mais. Descalçou a chuteira, falou que tava cansado, que meu time era sempre favorecido. Conversa fiada de cruzeirense. A partida recomeçou e eu já fui buscar a bola no meio de campo. Dei uma de ladrão, tirei do lateral direito, driblei o Toninho, que até que não é ruim de bola, não... E eu já tava quase na grande área... A gente nem ia pensar no viado do Luiz Otário – ninguém tava dando falta dele –, se ele não invadisse o campo, fazendo cara de macho... Mas todo mundo continuou jogando, lance de perigo, quem ia ligar pr´aquele cara? Eu chutei, a bola tirou tinta da trave. O goleiro foi buscar pra bater o tiro de meta. E aí, nesse meio tempo de bola parada, o Luiz Otário chegou perto de mim, enfiou a mão dentro do calção, tirou o revólver, e me deu dois tiros no peito, “a queima-roupa”, como eles dizem no jornal.
E foi assim que eu morri.
Sem livre arbítrio.

(28 de julho de 2009.)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Nada é mais triste do que um corintiano triste – ou não

Ninguém entendeu por que eu fui parar no meio da torcida do São Paulo, na última quarta-feira, no Mineirão. “Fazer parte de um grupo vencedor”, eu respondi, meio brincando, meio falando sério. A verdade é que foi divertido estar ali, perto da bateria, ajudando a estender o bandeirão que a gente vê na TV e acha o máximo, olhando pro campo dali de baixo, naquele espaço esquisito reservado aos torcedores visitantes. E, de fato, ter decorado, na pré-adolescência, todos os hinos dos grandes clubes (com exceção do Palmeiras, a que me recusei) ajuda a me camuflar entre as principais torcidas. Não foi a primeira nem terá sido a última vez. Mas, na realidade, a minha presença ali se justifica pelo fato de ser o meu irmão um são-paulino. Ele era uma criança ainda, devia ter uns quatro anos, quando, vendo o Jornal Nacional, pediu ao meu pai que programasse o despertador para que ele assistisse à final do Mundial, que aconteceria de madrugada, no Japão. Na manhã seguinte, ele anunciou: “eu sou são-paulino”. Morar no sul de Minas, onde ninguém se sente pressionado entre a bipolaridade Cruzeiro X Galo, a TV influencia muito mais do que a certidão de nascimento, e ainda por cima integrar uma família em que ninguém gostava de futebol, tinha dessas vantagens: a gente podia escolher o time que quisesse. Eu demorei ainda uns anos a me decidir pelo meu – e é uma longa história o porquê de ter sido justamente o Corinthians – mas, confesso, vez por outra me pergunto por que não fui escolher uma equipe que trouxesse menos sofrimento e piada pronta. Porque havia essa desvantagem também: não tínhamos quem nos prevenisse dos apelidos maldosos, que se separam entre alcunhas homofóbicas ou as relacionadas ao preconceito social (ou são “bibas” ou marginais os torcedores de qualquer time do país, segundo a teoria), ou nos alertasse sobre o quanto é difícil gostar de verdade de uma coisa tão abstrata quanto um clube de futebol a ponto de ficar perplexo diante de uma derrota – o que é, estatisticamente, uma coisa tão óbvia. Depois do jogo, e do Mineirão calado, descer a Av. Abrahão Caram, com aquele bando de cruzeirense desanimado em volta, foi quase um “dejá vu” em relação à semana anterior e a eliminação do Timão da Libertadores. Mas foi, também, uma experiência redentora: porque é impressionante como tudo, no fundo, é tão parecido: os hinos com seus “salves” e epítetos sem sentido, os gritos de guerra com as declarações de amor clichê, os insultos, as paródias, os salários milionários a jogadores de qualidade duvidosa e, claro, o torcedor... que, depois do jogo, esperava para tomar a lotação para algum bairro distante, à meia-noite de uma quarta-feira, para dar o maior duro no dia seguinte e ganhar um salário e meio no fim do mês. Ou que ia de carro ou a pé ou... tanto faz. Se olhados de perto, todos são, na realidade, muito parecidos; e, na aridez da busca do pão nosso de cada dia, o circo do estádio não pode durar muito tempo.


(17 de maio de 2010.)

domingo, 9 de maio de 2010

Condicionadores

Quando dou aula sobre anúncio publicitário, sempre comento que a propaganda acaba nos vencendo por alguma de nossas sete fraquezas capitais. A minha, eu confesso, é a vaidade: não posso ver comercial de condicionador! Aquele fio de cabelo danificado que, de repente, é coberto por uma camada brilhante de restauração, seguido da imagem da modelo chacoalhando as madeixas iluminadas, simplesmente me conquistam. Eu tenho total consciência de que é uma ilusão das grandes pensar que meus caros cabelos longos ficarão assim deslumbrantes como os da moça da TV. Mas não consigo resistir e acabo, digamos, arriscando.
Esta semana se encerrava o primeiro módulo do curso de empreendedorismo em que eu estava trabalhando. Então, lá fui eu para o último dia de aula, munida de câmera para registrar os rostos bonitos dos meus alunos, chocolates para me despedir dos meus colegas, e aquela tristezazinha que a gente disfarça dizendo que vai ficar feliz em ter umas tardes livres na semana cheia. Estava, então, compenetrada, somando as notas em uma das turmas – a que se autoapelidou de “Classe A” – quando, subitamente, ouvi um barulho abafado sobre a mesa. Olhei para a frente e lá estava um condicionador de cabelo, trazido por algum dos alunos. No segundo seguinte, então, todos os outros foram se levantando, sincronizados, e depositando sobre a minha mesa o presente que haviam trazido para mim. Quando acordei do susto, havia cerca de vinte condicionadores em cima da mesa, o sorriso de todos aqueles adolescentes tão queridos para mim, e seus aplausos efusivos. Fiquei totalmente comovida. Só não desabei a chorar porque alguém teve a ideia de gritar “abraço coletivo!!” e aí só deu foi para rir mesmo.
Mais tarde, num dia que parecia ser um dos mais legais da minha vida – por uma série de razões –, o meu time do coração foi eliminado da Libertadores e eu fiquei profundamente decepcionada. Mas, ao mesmo tempo, os condicionadores de cabelo amaciaram a frustração. E certamente amaciarão outras e outras vezes... porque uma lembrança dessas a gente carrega consigo para sempre. Mesmo que me cortem os cabelos ou que eu vença a minha vaidosa obsessão.


(09 de maio de 2010.)

domingo, 25 de abril de 2010

Cinema (homenagens) nº1

Encontrei, no bolso da calça,
um ingresso de cinema
que me perguntava:
– Onde vivem os monstros?
– Tão longe, tão perto. – respondi pensando
na Vida secreta das palavras.

(25/04/2010)

domingo, 11 de abril de 2010

Obtuso

Tenho trabalhado tanto nos últimos tempos que, ao atravessar a rua, torço para que o sinal fique vermelho, só para que eu me sinta obrigada a ficar parada por alguns segundos. Sério. Porém, na semana passada, houve um feriado! – o que não significou nada para mim, que viajei, mas levei uma mala a mais, cheia de “para casa”. O bom mesmo foi a volta: viajei de madrugada e tive nada mais nada menos do que cinco horas inteiras com a obrigação de ficar parada, deixando apenas que o ônibus se movesse por mim e o motorista se preocupasse com as intempéries do caminho. Viajar de madrugada é absolutamente fantástico, porque você não pode ler nem estudar e mal consegue ver a paisagem pela janela. Assim, restam-lhe poucas opções – para mim, no momento, tão desejáveis – como dormir, ouvir música e pensar. Fiz um pouco das três. E, enquanto unia-as, letárgica, pensei no obtuso. O obtuso, de acordo com Barthes, é algo que escapa à linguagem; é uma imagem, uma cena que diz o que não se consegue traduzir. Bem, pelo menos é o que eu consigo captar – atire a primeira pedra aquele que nunca teve dificuldades para entender Roland Barthes e sua inteligência tão francesa! Pois enquanto ouvia Morphine, começava a cochilar e refletia, fiz uma pequena lista mental de cenas, para mim, obtusas. Segue o resultado (não necessariamente nesta ordem):
1) A expressão de Juliette Binoche quando, em “A liberdade é azul”, devora um pirulito da filha, encontrado na bolsa que usava no dia em que sofre o acidente que mata toda a sua família;
2) O olhar inquieto do menino filmado em uma espécie de ‘fotografia viva’ no final de “Diários de motocicleta”;
3) O abandono de Gael García Bernal, de muletas, na estação de trem, desprezado mais uma vez pela mulher que amava, em “Amores Brutos”;
4) A sensação de ´prestes a chorar’ da menina de “O balão branco”, quando os encantadores de serpente roubam-lhe o dinheiro com que ela compraria seu peixinho dourado;
5) A alegria de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), no brinquedo giratório, em “Os incompreendidos”;
6) (e, por último – mas não menos nobre que os demais): A fênix no céu, quando Ikki vinha salvar seu irmão mais novo, Shun de Andrômeda, em “Cavaleiros do Zodíaco”.

(10/04/2010)

domingo, 28 de março de 2010

Na ordem usual das coisas

Maicom acordou cedo. Nada para fazer em casa, foi até a rua, sentar-se no primeiro pedaço de meio-fio que encontrasse. O céu tinha um azul ralo e as janelas dos prédios do arredor ainda estavam fechadas. Era domingo. Também poderia, como os outros, dormir até mais tarde. Mas a mãe roncava alto. A irmã menor acordava sempre, aos berros, pedindo algo que tapasse a fome. E o irmão mais velho, que escancarara a madrugada com tropeços trôpegos e garrafas pela metade, sacolejantes, xingava a menina com palavrões que ele não podia repetir na escola. Mas repetia mesmo assim, escondido.
Não tinha espaço para brincar dentro de casa e, aos domingos, não havia desenho animado nos canais abertos de sua televisão de poucas polegadas. Então ficou ali, sentado, esperando alguém chegar, assim como – descobriria anos mais tarde – fazemos durante boa parte de nossas vidas.
O pai não chegaria. Há algum tempo conhecera uma moça que trabalhava à noite, na rua Guaicurus: salto plataforma, tinta verde no cabelo, batom violeta. Nunca havia visto coisa parecida; não voltou mais desde então. O pai, sujeitinho ordinário, como no verbete do pequeno Aurélio:
ordinário adj. 1. Que está na ordem usual das coisas; habitual, comum. 2. Regular, frequente. 3. De má qualidade; inferior. 4. De baixa condição; baixo, grosseiro. 5. Bras. Sem caráter; reles, ruim. 6. O que é habitual.
O pai tinha uma sociedade com o filho mais velho, algo como “Jorge & filho LTDA”. Negócio bem localizado, na Praça Sete, Avenida Afonso Pena. Ele, banguela e magrelo, vestia o colete amarelo berrante: “Compra-se ouro”. O cliente se aproximava, mostrava a corrente, o anel, a aliança de um amor desalmado. Ele avaliava, ar de especialista, oferecia um preço reles. O freguês praguejava e partia. Então o filho mais velho, Elvis, surgia correndo, arisco, como se não surgisse, passadas de guepardo, e levava o ouro por um preço menor ainda. 0800. Depois vendiam para a matriz. Trabalhavam com franquia. Mas os negócios iam bem. Quanta gente ingênua no mundo, Meu Deus!
Um tempo depois, quem sabe, Maicom também entraria para a equipe.
Por enquanto, olhava as pessoas que caminhavam em torno do córrego fétido e raso.
Quanta gente ingênua, Meu Deus!
Dona Nair, secretária de dentista, uma vez quis vender um colar de ouro, herança de tia-avó, para ajudar o caçula a comprar um carro de segunda mão. Foi freguesa de “Jorge & filho LTDA”. Nem viu o menino chegar nem partir. Só viu o arranhão de sua unha preta, felina, depois. Teve nojo. Mas não disse isso a ninguém. Apenas repetia, trêmula, fingindo calma, “vai-se o colar, fica-se o pescoço.” Ficou triste, mas ninguém percebeu.
Dona Nair também caminhava em torno do córrego fétido. Não era gorda, mas o culote a incomodava. E alguns pneuzinhos que a blusa de malha, larga, disfarçava. Ela caminhava, taciturna. Também um senhor de camisa pólo, e mais dois, com ares juvenis, óculos escuros, poucos fios de cabelo, calvície bem resolvida.
Maicom não era bom com esportes. Tão pequeno, tão mirrado, acabava sendo sempre o último a ser escolhido para o time. Nem para goleiro servia. Desgostou de jogar bola, só jogava se fosse de gude. Não via a hora em que fosse grande e pudesse tomar cachaça no botequim. Um dia tentara, com o boné fazendo sombra nos olhos de menino ansioso. O homem do bar riu, deu um guaraná. Ele ficou com raiva. Se estava pagando, tinha que ser atendido. Bebeu o refrigerante mesmo assim, jogando, antes, um pouco para o santo, como o avô falecido lhe ensinara.
Tinha só 12 anos, mas já lhe eram suficientes.
O azul do céu era ralo. O ralo de seu banheiro estava entupido com biras de cigarro e cabelo. A casa era um quarto e uma privada, um chuveiro com fios à mostra, e todas aquelas pessoas. Nomes de artista. E ele tão pequeno que nem para jogar bola servia. E tão ruim em matemática que dava o troco errado quando vendia bala no sinal. Saía no prejuízo. Queria comer pão com manteiga e tomar pingado de boteco. Queria ser grande. Queria poder um pouco mais.
Tinha só 12 anos, mas suas vontades já lhe eram suficientes.
Os senhores corriam em torno do córrego. Só Dona Nair é que não. Nem dava conta, coitada. Só andava, lenta. Trazia um porta-moedas. Depois iria à padaria, trazer uma rosca-rainha para o filho e dois reais de pão-de-queijo.
Sua vontade cresceu, cresceu o olho para cima do porta-moedas, visão de raio X.
Fome de pão com manteiga, preguiça de esperar, preguiça de descobrir que não tinha nada para comer de novo, preguiça de esperar ser grande para ser gente.
Maicom pegou uma pedra.
Era pequeno, mas uma pedra grande o agigantava.
Nada para fazer, a mãe roncava, o pai com a mulher da rua Guaicurus.
Era apenas uma pedra, porém não era tão apenas assim: tinha sido a primeira arma do mundo, a de Caim e Abel.
─ Me dá o dinheiro! – ele gritou, com a voz aguda e desafinada de um menino com medo.
─ Não. – Dona Nair desacreditou da força do moleque magricela mal vestido.
─ Dá sim! Agora! – e ele mostrou a pedra, ameaçador.
O senhor de camisa pólo correu mais depressa. Queria ser herói no domingo de manhã, contar a história para os colegas, enquanto comesse o tropeiro do Mineirão mais tarde.
─ Para com isso, menino! – gritou.
Maicom atirou a pedra. Errou. Não tinha mira, não tinha força. Só tinha vontades.
O homem deu-lhe um tapa na nuca. E gritou, como se grita com um cachorro, como se grita com suas pulgas e sarnas:
─ Vai embora! Anda! Vai embora, moleque filho da puta!
Era o herói da semana.
Dona Nair estava aliviada. Ainda existiam homens como antigamente.
A mãe de Maicom não queria ter outro bandido em casa, por isso ele ia ao colégio. E o bolsa-escola era sempre uma ajuda muito bem vinda.
Mas o pai já contava com o auxílio dele para ampliar os negócios.
E Maicom só tinha vontades.
Foi para casa, rabo entre as pernas, moroso, pequeno, mirrado, fracote.
Tinha que crescer antes da hora, tornar-se um homem, deixar de ser só vontades, correr atrás, realizar. Na semana seguinte – prometeu-se – levaria um canivete.
(03/06/2007)

domingo, 21 de março de 2010

Sobre o Anathema e a chuva de domingo

Faz tempo que quero escrever sobre o Anathema. É quase como um tributo a uma das top five da minha lista de the bests. E hoje eu quase desisti de novo, porque saí para caminhar – uma dessas manhãs de domingo, ruas vazias, o mundo quase exclusivamente seu – e choveu. A chuva aumenta aquela sensação de monopólio do mundo, porque todos somem por detrás das paredes de concreto quando chove. Eu estava ouvindo Faith no More, depois Metallica... e, sim, foi muito bom correr sob a chuva ao som de “From whom the bells tolls”. Então, por isso, eu quase mudei o tema do texto. Mas, não, vamos falar de Anathema. Ou talvez nem tanto: você pode procurar informações mais precisas se entrar no site oficial deles: www.anathema.ws
Enfim. Eu ouço Anathema há mais de dez anos, e foi sempre aquela banda que trazia sentido a tudo. Foi por isso que quase enlouqueci quando eles vieram ao Brasil, cerca de quatro anos atrás, para duas únicas apresentações: uma em Brasília, outra em São Paulo. Era uma fase complicada, de muito trabalho e estudo intenso para a prova de Mestrado, e eu estava tentando economizar para fazer uma viagem maior... mas nada disso era desculpa. O Anathema viria ao Brasil! Só faltava arrumar alguém que gostasse deles tanto quanto eu... ou alguém que ao menos conhecesse a banda, o que já era bem difícil. Porém, como há gente demais no mundo, havia também um amigo querido que estava disposto a ir ao show comigo. (Só para constar: esse amigo é uma das pessoas mais cultas da face da Terra, só escuta música erudita, mas ele abre exceção para o Anathema – isso lhe diz alguma coisa sobre a qualidade do grupo?) E, para melhorar, esse meu amigo querido é ninguém menos que o tecladista do Tuatha de Dannan (se você ainda não conhece, não perca tempo: www.tuathadedanann.com.br), o que gerava uma certa esperança de que acabasse acontecendo uma jam session, uma pizza depois do show ou algo assim, quando eu teria a mágica oportunidade de ouvir de perto o sotaque desesperadoramente bonito do Vincent Cavanagh. Nos dias que antecederam o show, eu só pensava em inglês, falava inglês, fazia xixi em inglês. E assistia a vídeos do Anathema, ouvia Anathema, sorria Anathema. Reorganizei minha vida toda, consegui substitutos no trabalho, consegui a grana de que precisava e estava entusiasmadíssima. O show ao qual eu iria aconteceria no sábado. Eu viajaria para o interior, encontraria o pessoal do Tuatha, e nós partiríamos para São Paulo. Tudo assim, no futuro do pretérito mesmo: na sexta, o meu amigo querido telefonou, dizendo que não mais iria, porque o pai estava no hospital, muito doente, internado em uma dessas siglas como CTI ou UTI, não sei ao certo. Felizmente ele se recuperou – e passa bem, obrigada –, mas não a tempo de eu viajar para São Paulo. Lembro-me daquela noite de sábado, daquele vazio, olhando para a parede e me perguntando como é que teria sido estar lá, o que eles deveriam estar tocando naquele momento, e pensando na sorte triste que eu tinha. Então, na segunda-feira, meu amigo querido me enviou um e-mail: “você viu o que aconteceu no show do Anathema?” e seguia um linkizinho azul, como os que espalhei por este texto (que, entretanto, não ficaram azuis), pelo qual soube que o concerto simplesmente não acontecera. A casa de show onde eles tocariam não possuía alvará de funcionamento. Assim, enquanto a banda de abertura se apresentava, o organizador subiu ao palco, transtornado, dizendo que o Anathema tentaria tocar antes que a polícia chegasse. Mas a polícia chegou no início da primeira música e o concerto foi encerrado. Claro, ninguém devolveu o dinheiro e nem reparou a frustração dos fãs que ali estavam – e eu poderia estar entre eles. É claro, frustrada eu já estava, mas ao menos estava dentro de casa... Minha sorte, afinal, não era tão triste assim.
No meio do ano passado, o Anathema voltou à América Latina, e se apresentou em vários países vizinhos, menos, obviamente, no Brasil. O interessante foi que, às vésperas do show em Buenos Aires – ao qual cheguei a cogitar estar presente – conheci um cara (amigo de um amigo) que, nos primeiros trinta segundos de conversa, revelou adorar Anathema. Eu não acreditei. “Anathema!? Você gosta de Anathema? Eu amo essa banda!”, respondi. Ele me olhou assustado e disse: “Não. Você não gosta. Ninguém gosta de Anathema, ninguém conhece Anathema. Só eu.” “Pois então, gigante Polifemo, eu sou Ninguém...” O resultado foi uma madrugada inteira rodando a cidade à procura de um bar legal – o que era, na verdade, desnecessário, porque ele tinha a discografia completa do Anathema dentro do carro, as caixas de som eram potentes, e nossos amigos tiveram que nos aguentar cantando bem alto todas as músicas do “Alternative 4”, o meu favorito. Por fim, vale dizer que, para ser ainda mais apaixonante, o Anathema ainda gravou uma balada linda, lindíssima, com o meu nome no título: http://www.youtube.com/watch?v=2RG_n8v_fz8&feature=related

sábado, 13 de março de 2010

As consolações do rock-farofa

Alain de Botton, um filósofo pop, autor dos livros “Como Proust pode mudar sua vida” e “As consolações da filosofia” (que virou série da BBC, anos atrás) escreveu, certa vez, que, quando estava triste, costumava ir a aeroportos e ficar lá, sentado, olhando as pessoas que chegavam e partiam. Para ele, a prática garantia o alívio de pensar num mundo cuja vastidão nós desconhecemos quando ensimesmados em nossas dores e frustrações. Imaginar, portanto, que o lugar presente é apenas um dos tantos destinos imagináveis, e que nossa alma-gêmea pode estar esperando por nós, sorridente, em uma cidadezinha no interior da Noruega, a qual não tivemos a sorte de visitar ainda, era o suficiente para trazer-lhe uma dose de satisfação e esperança no dia seguinte, no voo vindouro. Gosto do raciocínio de Botton, mas tenho um outro método para minhas consolações: eu vou a concertos de rock. É claro que os shows não possuem a estaticidade dos aeroportos, que permanecem lá, parados, com suas lanchonetes caríssimas, embora decolem os aviões e as bagagens. É preciso esperar que os produtores tragam grandes bandas e aceitem pagar o cachê exorbitante de cada uma delas e se submeter às exigências escandalosas de seus integrantes. Porém, como a gente sempre tem um motivo para estar triste mesmo, vem a calhar um bom show de rock a qualquer hora, em qualquer mês do ano. Além disso, na pior das hipóteses, há sempre uma banda local se apresentando no porão da Obra Bar Dançante, agora com ar condicionado. Enfim, propagandas à parte... Quarta passada, foi a vez de o Guns n´ Roses me fazer extravasar uma fase ruim em cada refrão de seus hits pegajosos, enquanto, no palco, explodiam luzes e imagens em alta definição. Sinceramente: o Guns está longe de ser um dos expoentes mais significativos da história da música; eles ficam ali no limbo entre o pop e o rock, e foi-se o tempo em que o Axl supria essa carência musical com seu shortinho de ciclista e sua bandana sexy. O sex appeal foi transferido para o guitarrista tatuado sem camisa, mas o buraco na qualidade musical, que é o que interessa, só se alargou, com a saída de Slash e companhia, e a perda de alcance vocal de Axl Rose, proporcional ao acúmulo de peso na região de seu abdômen. O show foi aquilo mesmo: um espetáculo pirotécnico, com canhões que cuspiam fogo a cada clímax sonoro, e com direito a chuva de papel vermelho em “Paradise City”. Mas houve a banda de abertura, ou o Sebastian Bach, que, diferentemente de Axl, passou os últimos anos em plena “atividade” – mesmo que essa palavra resuma sua participação em séries de TV como Gilmore Girls, reality shows e, louvável!, “Jesus Christ Superstar” na Brodway. Mas ele ainda tem vigor, e isso é inegável. Berrou, pulou, correu do começo ao fim, e falou português o tempo todo – uma simpatia! Resumindo: fui ao show para me sentir feliz, e valeu a pena. Afinal, ninguém resiste a baladas cafonas e adoráveis como “I remember you” e “Sweet child o´mine” ao vivo, no meio da multidão alucinada. Impossível ficar triste, apesar de todas as brutalidades dessa vida.

(13 de março de 2010.)

domingo, 7 de março de 2010

Flúvio

DESCULPEM, SEI QUE O TEXTO É GIGANTE E INADEQUADO AO FORMATO DE BLOG... MAS HOJE NÃO CONSEGUIRIA POSTAR ALGO DIFERENTE.

Flúvio é um garoto muito esperto, que tem agora seus sete anos, um nariz arrebitado e uma imensa capacidade de deixar extenuadas todas as pessoas que se oferecem para brincar com ele. Não sei de onde vem esse nome, nem a procedência do dono do nome, a cidade em que ele nasceu, ou vila ou município, e acredito que nem a mãe dele saiba de verdade a origem do espermatozóide que fez metade do trabalho de criação. Ou um terço: porque a Mãe Natureza tem lá sua contribuição.
Enfim, um dia ele surgiu, como esses bebês que vêm num cesto, com um bilhete dizendo “Cuide dele”, e um ursinho velho e malcheiroso. Minha família se afeiçoou do seu jeitinho de bicho do mato e de um dente seu que já nasceu torto. Aos poucos, fomos ensinando a ele o nome das cores e as letras do alfabeto e a olhar para os lados antes de atravessar a rua. E agora ele vive correndo de um lado para o outro no asfalto que separa a minha casa da dele. Ele chega lá, acorda meu irmão, pulando violentamente sobre o coitado, e pede que grave um CD para ele – do Slipknot, da Xuxa ou de algum funkeiro qualquer.
Por dedicar a meu irmão essa preferência descarada, sempre pensei que não gostasse de mim. Sempre, até o dia em que, uns três anos atrás, ele pediu à sua avó (minha tia) que comprasse um presente para mim. Ela comprou: um par de brincos cor-de-rosa, em forma de flor. Florzinhas. Ele foi lá me entregar e me foi muito feliz receber aquele presente dele. Tanto que eu, embora tenha perdido um dos brincos (descuidada!), ainda guardo o outro como lembrança do dia em que descobri que ele me amava – apesar de não me acordar com um pulo todas as manhãs.
Também foi há uns três anos que o vi ter sua primeira cãibra. Ou talvez tenha sido um simples adormecimento do pé, mas, enfim. Ele tentou se levantar e não conseguiu e notou que algo estava errado. Contorcia-se e olhava para o teto e para mim, dizendo “meu corpo! Meu corpo!” Eu o toquei nos ombros e ri de nervoso e falei que logo iria passar, que ficaria tudo bem, como, de fato, ficou. Mas o desespero dele foi meu também, porque descobri que não conseguia explicar a dor a uma criança, e muito menos fazê-la parar de doer. E achei também muito estranha, um misto de caricata e abominável, a sua constatação de seu corpo, de seu pequeno e raquítico corpinho, que ainda lhe produziria muitas coisas. Inclusive dores. Inclusive prazeres.
Um dia, meu pai me apresentou as amoras. Estávamos passeando perto da casa de meu avô paterno e então ele avistou uma amoreira. Apanhou um dos frutos e me disse: “isso é uma amora”. E eu a pus na boca e pensei, enquanto o suco escorria pela minha língua: “olha só! Isso é uma amora”. Foi uma das únicas apresentações formais que tive das coisas do mundo. Porque, em geral, elas nos atropelam, nos derrubam, nos carregam, e mal conseguimos distinguir o tempo de localizá-las ou chamá-las pelo nome.
Depois vi um filme em que as amoras salvavam a vida de um homem (ironia: o filme se chama “Gosto de cereja” e o super-herói da história é a amora! Idiossincrasias da tradução...). E li também um livro, o “Zorba”, em que o protagonista, também o Zorba, empanturra-se de amoras para começar a detestá-las. E aconselha que façamos o mesmo com tudo na vida, para que nada tenha efeito devastador sobre nós.
(Ingenuidade.)
Mas acabei precisando mudar de cidade e deixar o Flúvio lá. Mesmo assim, às vezes o visito. E tenho a oportunidade de vê-lo enfrentando cachorros, empinando a bicicleta, saltando largos buracos, e me dizendo, orgulhoso, “olha, eu não tenho medo de nada!”.
(Quem dera, Flúvio, pudéssemos todos dizer o mesmo!)
Além disso, sempre recebo notícias dele. Dele e das outras crianças que vieram, por obra da cegonha e não do cesto, engordar a família. Diz meu irmão que, dia desses, o menino teve um sangramento nasal. Disse que ficou sossegado depois, pedindo à minha prima que ele chama de mãe que se deitasse com ele. Imagino a surpresa que sentiu ao, de repente, ver o sangue escorrendo pelo nariz. É claro, ele já é bem crescidinho, e já caiu da bicicleta muitas e muitas vezes, e sabe conceituar o sangue. Mas, acredito, entendia que sangue saía de joelho esfolado, de cotovelo, de ferida aberta de carrapato. Não de nariz.
Dias atrás, uma amiga minha me deu amoras de presente. Fiquei bastante alegre com a lembrança, mas não consegui me empanturrar delas, como o Zorba. Porque eram, sim, doces e suculentas, mas não eram a amora da minha recordação. Não se empanturra de mundo inteligível no mundo sensível.
E, às vezes, tenho vontade de dizer isso ao Flúvio. Pedir que seja um menino-rio, que escorra pela vida, que toque, que molhe e prove as coisas todas. Mas que não se demore, que não se demore o tempo de um longo abraço sem retorno. Que não deixe que nada o prenda. Que ele seja sempre o mesmo, mesmo na ausência de qualquer coisa.
(Ingenuidade das ingenuidades!)
A verdade é que sei que ele vai crescer. Vai aprender a trocar lâmpada e colar na prova de geografia. E vai descer no ponto errado do ônibus e caminhar muitos quarteirões de volta. Ou terá um pneu furado numa estrada solitária ou um tombo da motocicleta. Talvez leve uma surra dos colegas do colégio. Talvez bata neles e se sinta “o foda”, e depois não entenda por quê. Pode ser que se candidate a vereador. E perca. Talvez, não. Pode ser que seja craque de time de várzea. Ou advogado. Ou mecânico. Ou dentista. Ele vai crescer e vai se apaixonar. E ela será o eixo de toda a sua vida por semanas, meses ou anos. Até que um dia ela diga que ele é uma pessoa legal, mas que ela precisa ir. É, talvez ele se apaixone e nunca ouça a frase preferida dos amantes sequer uma vez. E ele vai querer morrer, mas aí vai encontrar também uma pessoa legal. E eles se casarão e terão filhos legais. Ou não: talvez não se casem; talvez não tenham filhos; talvez os tenham, mas eles não sejam legais.
Enfim, como as memórias que envelhecem, os sabores que se destoam, confundidos por novas realidades mais palpáveis, também Flúvio vai crescer. E talvez leia um livro que a professora mandou. Talvez me dê presentes outra vez. Talvez perca o emprego. Talvez o seu time perca o campeonato, caia para a segunda divisão. E ele descobrirá que o enredo dos episódios de Scooby Doo é o mesmo, que só se mudam o nome dos fantasmas e os locais de investigação. E Flúvio perceberá que, sim, há coisas das quais ele tem medo. Muito medo.
E haverá um dia. Daqui a muito tempo, eu espero. Quando ele já tiver experimentado todos os tipos de sensações, toda a sorte de sinapses e alterações cardíacas. E estiver morando sozinho, ou em uma república, ou quando sua esposa legal tiver viajado. Um dia em que, quando sentir fome, ele irá até a cozinha para preparar o seu Nissin Miojo Lamen. E, depois, Flúvio irá comê-lo em frente à TV, assistindo a algum programa de esportes. E quando der a quarta garfada, ou pode ser a quinta, ele olhará para o teto e perceberá que a vida está bem distante da salvação pelas amoras. A vida é um grande prato de Nissin Miojo Lamen: por mais que você incremente, mude o tempero ou tempo de cozedura do macarrão, ela continua insossa, prosaica, previsível.
Ele se perguntará por que ainda olha para os lados antes de atravessar a rua – quem foi que ensinou isso a ele, Meu Deus? E dará a sexta garfada no macarrão instantâneo.

(01/11/04.)

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Saudade, substantivo concreto

Era uma aula de 5ª série (cujo termo politicamente correto agora é “6º ano”) e nós fazíamos oralmente uma revisão para a prova. Substantivos, de todas as espécies, artigos, definidos e indefinidos. Básico dos básicos. Eu perguntava, os alunos respondiam, titubeavam uns, sopravam as respostas outros, e eu anotava no quadro os acertos, separada a turma entre “Chicos” e “Chicas” (assim, com som de xis mesmo, em bom brasileiro). Então, resolvi pedir ao aluno novato, com toda a minha boa intenção de integrá-lo à turma, fazê-lo participar e tal, que me enumerasse três substantivos próprios. Todos olharam em sua direção, os meninos esperançosos por um ponto a mais no placar – que não valeria nada, a não ser o prazer de ganhar – e as meninas torcendo para que ele errasse. E ele não fez nenhum dos dois: ele só começou a chorar. Assim, de verdade, com lágrima e tudo. Eu me aproximei, perguntando-me “que é que eu fui fazer? Por que não deixei o menino quieto no canto dele?” e fui dizendo, tentando acalmá-lo, “tudo bem, é fácil, a gente te ajuda; só nesta sala há umas trinta respostas possíveis...” Ele continuou chorando e, aos soluços, falou: “Não é isso, não. Eu sei responder... eu sei... Vem cá.” Nós nos afastamos dos olhares diretos dos chicos e das chicas, e ele me contou que, contra sua vontade, havia se mudado de cidade por causa do divórcio dos pais, e que, agora, quando eu lhe pedia para dizer três substantivos próprios, ele só conseguia se lembrar dos nomes dos amigos que tinha deixado para trás. E dos quais sentia muita, muita saudade.

(27 de fevereiro de 2010.)

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Sobre o The Gathering e a Agua de Annique: considerações sobre o peso etc.

Não foi, definitivamente, o peso que fez do The Gathering uma das melhores bandas do mundo. Na verdade, enquanto faziam doom metal cavernoso nos Países Baixos, ao estilo de Samael e Morbid Angel, ninguém ligava muito para o par de irmãos bem intencionados René e Hans Rutten. Foi certamente a entrada da vocalista Anneke van Giersbergen, quando da gravação do terceiro álbum, "Mandylion", com sua afinadíssima voz aguda, misto de força e doçura, que desviou o trajeto pantanoso que percorria o grupo, para um caminho, digamos, mais estrelado. O rock do The Gathering ficou mais alternativo, continuou pesado, mas ganhou velocidade e passou a soar mais leve, já que os vocais suavizavam qualquer sequência mais carregada ou distorcida. E os holandeses ganharam ainda um diferencial muito rentável: a imagem; isso não só por se tratar Anneke de uma moça bonita, com feições de musa da segunda geração romântica, mas por fugir ao clichê “dama do rock”, dessas que aparecem flutuando em videoclipes finlandeses, se é que vocês me entendem. Ao contrário: ela estava muito mais para skatista, bermuda e tênis, roqueira sem firula, dessas que chacoalham as madeixas por aí sem o menor pudor. E com um carisma inconfundível. Simplesmente não dá para não gostar da Anneke, querer chamá-la para tomar um café ou uma cerveja, mostrar-lhe a sua coleção de mangás, querer saber como vai o filhinho dela, o pequeno Finn. Experimente assistir a um DVD como “A sound relief” e tente me dizer o contrário! Mas, simpatia à parte... é notável a evolução do The Gathering desde o seu surgimento, em 1989, até os dias de hoje. Por fim, a banda passou a tocar em um estilo denominado trip rock, assim bem viajado mesmo, quase cósmico, com longas sequências instrumentais, e letras sensíveis, algo panteístas em certos momentos, culminando em canções belíssimas, uma atrás da outra, como acontece no excelente “How to measure a planet?”, de 1998. É, mas sabe aquela história de que o que é bom dura pouco? No início de 2007, Anneke anunciou sua saída da banda para montar um projeto solo, o Agua de Annique. Os meninos do The Gathering (e a baixista, Marjolein Kooijman) encontraram outra cantora, Silje Wergerland, para compôr “The West Pole”, trabalho de imensa qualidade, capaz de surpreender os grandes fãs da antiga vocalista, que pensavam que, sem ela, não haveria The Gathering. Quanto ao trabalho solitário – ou nem tanto – de Anneke, eles lançaram, no final do ano passado, seu segundo álbum, “In your room”. Escapa do mosaico sonoro do primeiro disco, heterogêneo demais, mas perde o peso; com um toque retrô, o trabalho é colorido, alegre e extremamente otimista. Não deixa de haver duas faixas tristinhas, bem ao estilo de “Day after yesterday” (do “Air”) ou “Saturnine” (de “If then else”, gravado ainda com o The Gathering). Porém, em geral, o álbum carece de harmonia mais elaborada, viradas surpreendentes de bateria, enquanto sobram sóis e “all right´s”. Há faixas em que você se sente literalmente com pompons nas mãos, liderando uma torcida qualquer. Mas, sinceramente, não encontrei até aqui melhor trilha sonora para começar o dia de bom humor. O que prova que, no rock, como em quase tudo, os chamados defeitos e as ditas qualidades são sempre relativos.

(20 de Fevereiro de 2010.)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Raios partam o ladrão de raios!

Aproveitei o fato de minha viagem de Carnaval ter dado errado para ir ao cinema assistir ao “Ladrão de Raios”. O filme é baseado no romance homônimo de Rick Riordan, livro que veio parar nas minhas mãos nas já comentadas mal-sucedidas férias de janeiro, e, a princípio, ficou relegado à pilha de obras que me emprestaram, sugeriram ou impuseram, mas que eu não tenho a menor vontade de visitar. Parênteses: o fato de todo mundo saber que você gosta de ler gera problemas como esse que, às vezes, resultam em boas surpresas. Foi o caso desse que é o primeiro volume da saga “Percy Jackson e os Olimpianos.” O livro é simplesmente delicioso, com excelentes pitadas de bom humor e ironia, sequências de frases muito bem escritas e um inteligente diálogo com a Mitologia Grega. Em certos momentos, o autor tenta resolver as situações de maneira meio forçada, por exemplo ao atribuir ao protagonista uma dislexia supostamente relacionada a sua facilidade em compreender o grego antigo, ou ao oferecer como endereço do “novo Olimpo” o Empire States Building. Mas, tudo bem, a gente engole, pensa que não conseguiria fazer nada muito melhor mesmo, e pronto. Na época, fiquei tão empolgada com a história, com a maneira como vamos associando as pistas para concluir a que personagem da Mitologia o capítulo se refere, ou o modo como vibramos com a ousadia de um pré-adolescente que envia de presente a cabeça da Medusa aos deuses, mostrando sua insatisfação por integrar uma batalha com a qual nada tem a ver – exceto, é claro, por ser um semideus. Pensei até em escrever ao autor e dar os parabéns. Outro parêntese: leio muita literatura infanto-juvenil, e é preciso reconhecer quando surge algo de qualidade. Foi quando descobri que havia o filme, prestes a estrear no Brasil. Todo mundo sabe que as transcriações (porque vão muito além de adaptações) de literatura para o cinema costumam ser decepcionantes. Claro: não há limite de páginas publicáveis (há somente um bom senso), enquanto o cinema hollywoodiano há muito já encontrou a fórmula numérica de minutos suportáveis das sessões. Assim, de página para minuto, perdem-se detalhes, somem personagens, descarta-se a ironia ou a poesia ou o bom gosto. Pois bem: o filme “O Ladrão de Raios” foi além: ele decepou o enredo. Excluiu algumas das cenas mais interessantes do romance – como quando Poseidon se manifesta, revelando-se pai de Percy; ou quando das aparições hilárias de Ares e seus malcriados rebentos – e, pior, trocou um desfecho ameaçador, em que Cronos, o Titã pai dos seis grandes deuses, é o grande culpado por toda a desordem, apresentando como vilão o filho de Hermes, um ladrãozinho bonito e limpinho, de cabelo loiro penteado para o lado. Ah, isso também: os protagonistas passam de crianças incompreendidas para adolescentes de olhos azuis, com hormônios saltitantes, para fazer saltitar os da platéia também. Típico. Quando o filme acaba, dá vontade de ser Caronte por um dia, e levar para o inferno as almas de certos diretores e produtores de Hollywood...

(16 de fevereiro de 2010.)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quem me dera partir ao meio um relâmpago

Havia um rato dentro de casa.
Ele roubava a liberdade do pé descalço e da escuridão.
Conseguia estar em qualquer parte,
roendo,
rabiscando,
com suas saliências
de unhas e dentes
uma coragem de duas décadas e meia.

Mataram-no.
A miragem do queijo gratuito.
O impacto da ratoeira enferrujada.
A frustração mais dolorida do que a morte.

Depois,
um banquete servido às formigas
na lixeira.

Também você,
às vezes,
uma miragem de dias felizes,
e o impacto das palavras enferrujadas,
o muro do seu não,
o peso do seu talvez.

Depois,
o meu coração:
um banquete
servido às formigas
na lixeira.

(10 de abril de 2009)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

The Get Up Kids

Sabe, eu não tenho uma página no Orkut, Facebook ou afins, não sigo ninguém no Twitter, etc. Mas eu tenho um Flork. Trata-se de um site de relacionamentos famoso na Europa, que poderia ser descrito como um “Orcult”. Com o layout dos mais simples, espaço para apenas uma foto, e total privacidade na troca de mensagens, o espaço é ideal para pessoas que querem discutir música, literatura e cinema. Até hoje, raramente me frustrei com os membros do site. Muito pelo contrário. Outro dia, por exemplo, recebi uma mensagem de um compositor americano, que se dizia fascinado pelo fato de eu ter os Get Up Kids integrando minha lista de favoritos. Isso porque, segundo ele, o grupo lhe havia sido uma grande influência, tendo jamais alcançado o reconhecimento que certamente mereciam. Eu concordo. A banda, que surgiu em 1994, em Kansas City, e cujo som se define como “indie rock”, “lovecore”, ou “emo de primeira fase” (a respeitável!), me acompanha há cerca de dez anos, em formatos que servem de marco para uma série de transformações por que passou a indústria fonográfica nesse período. Pois bem: eu ainda era uma adolescente melancólica no sul de Minas, em Três Corações, quando um amigo gravou uma fita para mim, de cujo conteúdo bruto eu simplesmente não me lembro, mas em que ele, para aproveitar os minutos virgens do lado B, inserira três faixas do álbum “Something to write home about”. As canções eram adoráveis. Depois de ouvi-las repetidamente (sem chegar à exaustão), pedi que ele gravasse um tape exclusivamente com The Get Up Kids para mim. “Vou conseguir com um colega de trabalho”, ele respondeu, “o CD é dele”. Ótimo. Aguardei ansiosa a sua próxima visita, para descobrir que o tal colega, que respondia pela esdrúxula alcunha de “Cebolão”, havia dado um golpe na empresa em que trabalhavam, e fugido, naquela semana. Para compensar, meu amigo trouxe uma fotocópia que havia feito do encarte, para que eu me consolasse com as letras – que eram muito boas, diga-se de passagem. Por sorte – foi o que pensei –, outro amigo começou a namorar a esposa abandonada do fugitivo, uma moça de cabelos vermelhos bem ao estilo “Corra, Lola, corra”, e me prometeu que conseguiria o referido CD. Acontece que, antes de desaparecer totalmente do mapa, o tal Cebolão havia passado em casa e recolhido alguns artigos de sua grande estima, tendo, dentre eles, o álbum dos Get Up Kids. Fazer o quê? Eu teria que me contentar com as três adoráveis canções e a xérox do encarte. Entretanto, meses depois, talvez mais de doze até, comecei a namorar um rapaz de Lavras, fã de Cannibal Corpse, para o qual apresentei a tríade das músicas de lovecore. Então, em uma viagem a São Paulo, hospedado na casa de um primo, ele se deparou com a maravilha das maravilhas: a internet a cabo, “speed” ou algo que o valha. Na época, internet discada era um luxo, especialmente em cidades do interior. Só as metrópoles mesmo podiam gozar da rapidez de uma conexão que não deixasse ocupada a linha telefônica. Ele voltou, disse que tinha uma surpresa e, diante da minha ansiedade esperançosa, enviou os CD´s (eram quatro) por uma amiga lavrense com a qual eu me encontraria em Varginha. Ele não disse do que se tratava, mas escreveu sobre o embrulho pardo-claro: “Suicidal Tendencies”. Eu gostava de Suicidal Tendencies, mas não era exatamente com isso que eu sonhava... Mesmo assim, quando cheguei em casa, numa hora qualquer perto da meia-noite, coloquei o CD para tocar. Dez segundos depois, eu era a pessoa mais feliz do mundo! The Get Up Kids!!! Assim, completo, uma canção melhor do que a outra, mais alegre, mais triste, mais bonitinha, mais visceral, mais Get Up Kids. Perdi a conta de quantas vezes eles foram a trilha sonora dos meus grandes momentos. Mas lembro que, no exato dia em que me mudei para Belo Horizonte, e fui tomar o meu primeiro banho na república nova – casa nova, cidade nova, vida nova –, fiz questão de colocar “Four Minute Mile” para tocar, porque se encaixava com aquele gosto de liberdade que eu começava a descobrir. Depois, com as novidades nem sempre felizes de uma vida independente (cheia de contas e obrigações), deixei de acompanhar a evolução da banda – sem parar de ouvi-los, é claro. Até que, pouco tempo atrás, um aluno me presenteou com um DVD, que condensava a discografia completa do grupo – somada a todos os álbuns de outros queridos afamados, como Galaxie 500 e Elliot Smith. Pois é: das três musiquinhas daquela delicada fita, aos acessíveis vídeos do Youtube, os fáceis downloads de raridades e a troca de opiniões e elogios pelas mensagens do Flork. De fato, “something to write home about.”

(06 de janeiro de 2010)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Felicity

Definitivamente, eu não gostaria de escrever uma redação com o título “Minas férias” no início das aulas este ano. Foi o janeiro mais hospitalar da minha vida, contando duas intervenções cirúrgicas, muitas agulhadas, anestesias, sedativos, três dúzias de exames, uma vesícula a menos, incontáveis medicamentos e restrições alimentares. Simplesmente inacreditável, principalmente se pensarmos que pratiquei atividades físicas regularmente no ano anterior – no mínimo três vezes por semana –, não exagerei na bebida nem nas calorias, ingeri equilibradamente as quantias de potássio e cálcio de que necessita o organismo, e tomei copos e copos de água todas as manhãs, tardes e noites. Mas também não vou apelar para uma conclusão fatalista ao estilo “ser saudável mata”. Nem tanto. O que mata é pensar de mais. Isso sim. No último sábado, quando tive que esperar nada menos que seis horas para a minha cirurgia, totalmente vestida para ela, estirada sobre a maca, com a devida touca no cabelo e o “pró-pé’, destituída de lentes de contato ou brincos ou mp4´s, com aquele avental indecente, que poderia ser sexy se não fosse humilhante... eu não tive outra escolha a não ser pensar. Porque, com toda aquela demora, a operação que era simples começou a se agigantar em importância e horror, e eu passei a temer que o pior estivesse destinado a acontecer, e que aquelas horas me tivessem sido dadas a fim de que eu passasse minha vida a limpo, refletisse sobre a balança de conquistas e fracassos, reavaliasse o meu caráter etc. E, quer saber?, que preguiça! Tudo o que eu fiz foi organizar mentalmente uma lista dos filmes do Almodóvar, do Hitchcock e do Woody Allen a que eu já assisti, cantar em silêncio trechos de canções do The Gathering, lembrar do sabor do risoto de açafrão que eu havia experimentado duas noites antes, e pensar na Felicity.
Para quem não se lembra, Felicity é a protagonista de um seriado homônimo que alcançou certo sucesso da década de 1990, e que ainda vai ao ar na TV a cabo. O enredo é, na realidade, muito simples: uma jovem de cabelos crespos que se muda para Nova York, onde inicia a faculdade e vive uma série de impasses: Medicina ou Belas Artes?, em quais disciplinas se matricular?, namorar o imprevisível Ben ou o bonzinho Noel? Enfim, são quatro temporadas de indecisões para um final feito às pressas, que a deixa feliz e realizada ao lado daquele com quem a gente esperou que ela ficasse desde o início. Simples. Ou assim seria, se não fosse tão verossímil, tão próximo daquilo que os nossos dias acabam sendo na maioria das vezes: enxerto, pilhas de dúvidas, obrigações que se cumprem sem querer. Porque a gente vive sérias catástrofes e inexplicáveis explosões de euforia vez em quando, mas, em suma, a vida é feita de dias de indecisão e marasmo, com uma trilha sonora insossa e um penteado bem parecido com o da mocinha da série, assim sem escova ou chapinha, ao natural.
Mas, então. Fui operada aquele dia, tiraram a vesícula com uma pedra dentro dela, e depois passei mal por dois dias ininterruptamente, sem forças para absolutamente nada... Agora, que o meu organismo começa a se habituar à sua nova configuração, sinto o prazer aparentemente imbecil de poder me mover pela casa, tomar banho sozinha, e conseguir que algum alimento pare dentro do meu estômago por algum tempo. Pois é: os nossos dias de enxerto, de suspiros e indecisões podem não ser tão ruins assim – daí, talvez, o curioso nome dessa série tão aparentemente sem graça.

(26 de janeiro de 2010)