sábado, 30 de outubro de 2010

Juninho

A gente bem que tentou criar o menino, como o filho que não tivemos e que, juntos, jamais teremos – meu irmão e eu. Com pretensões didáticas, em cada visita à terra natal, nós o ensinávamos a jogar damas, xadrez e a usar desodorante. Chegamos mesmo, ao notar suas tendências flamenguistas, a chamá-lo para uma conversa séria, em que eu disse: “Você pode escolher entre o time que quiser, qualquer um... entre São Paulo e Corinthians.” Ele nos fitou, indeciso, e (eu sei, tenho mais cara de brava) acabou respondendo: “Corinthians.” “Então eu vou sustentar o seu vício.” E prometi uma camiseta que ainda não comprei, visto que não há vício nenhum ali além do vídeo game. E, quando dissemos, empolgados, que em breve teria início a Copa do Mundo, e que haveria futebol o tempo todo, por um mês de indizível felicidade, ele ficou desconcertado, querendo saber se o SBT continuaria exibindo a sua série favorita, “Supernatural”, a que ele assistia com a cachorrinha, a Sasha, com o medo que tinha do excitante sobrenatural. Há uma porção de narrativas sobre o Juninho, um arquivo gigantesco de fotos e uma sequência de vídeos (porque, todos os anos, nós o entrevistamos, para acompanharmos a mudança de seu ponto de vista sobre o mundo com o passar do tempo), mas a melhor história talvez seja a das contas matemáticas. Quando estava prestes a começar a 1ª série, decidimos ocupar o tempo de suas visitas frequentes à nossa casa ensinando-lhe as quatro operações básicas. E o menino, que sofria de déficit crônico de autoestima, passou a se orgulhar de si mesmo por conseguir fazer “contas de cabeça”. E com toda a razão, porque ele era bom nisso. Mas o que o incentivava era o que vinha junto com os números... Sabendo das preferências alimentares do garoto, a gente dizia: “Você tem vinte salgadinhos...” E ele, ansioso, perguntava: “Qual salgadinho?” “Coxinha. Aí ganha mais quinze...” Ele emitia uma série de gulosas interjeições, e respondia: “Trinta e cinco! Trinta e cinco coxinhas só pra mim!?” Acertava todas as adições, multiplicações, e, num tom mais melancólico, também as subtrações e divisões. Dias atrás, ele me falou que, agora com dez anos, é um dos melhores alunos da sala, e que isso é por causa daquele verão que passamos juntos, fazendo contas de cabeça. E, o melhor, quando me assistia ensinando as tais operações para o seu primo mais novo (só com algarismos, sem acréscimos alimentícios), ele, notando a dificuldade do menino, aconselhou: “Faz as contas com pão de queijo, Gabriel!” Ironia: da matemática, o que ele mais gostava era, no fundo, o sonho, o abstrato, o literário.

(30/10/10)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Starts with you...

Faz mais de uma semana que voltei do SWU, em Itu – aquela reedição do Woodstock sobre a qual escrevi em julho neste blog – e ainda estou bendizendo diariamente o prazer de deitar na minha cama quentinha, com edredom e travesseiro. Porque, numa boa, ir a festivais só nos faz pensar no quanto seu formato deveria ser repensado. Claro que há algo sublime, meio wagneriano, nas proporções gigantescas do evento, com 160 mil pessoas, 74 atrações musicais, em uma fazenda, a céu aberto, no meio do nada... Tudo isso fora a ideia “starts with you” da coisa: é isso aí, vamos salvar o mundo! Estavam lá as lixeiras (cujo conteúdo seria quase integralmente reciclado), as exposições de arte, as frases de efeito no telão e as instalações interativas – como um labirinto construído com lixo prensado, bastante sugestivo. Mas o tempo fez questão de mostrar que o descaso de séculos com o planeta não vai ser revertido com três dias de festa supostamente consciente. O clima era de deserto: de dia, um sol insuportável, de queimar, arder e descascar a pele; à noite, o pior frio que eu já senti na vida. E olha que eu já senti frio! A sensação térmica chegou aos sete graus. Havia momentos em que eu torcia para que os shows acabassem logo ou para que alguém no palco me olhasse, ali, tremendo, sem agasalho, indefesa, e dissesse: “Por favor, alguém empreste uma blusa de lã pra essa menina! Um casaco de soft? Pode ser, pode ser.” Jamais vou me esquecer da madrugada congelante, durante o show do Linking Park (a que não assisti, ávida que estava por uma minipizza de oito reais, depois de doze horas sem comer), e da gentil senhora de Macapá, que, junto a três manauaras, enrolava-se em um cobertor cor-de-rosa que por alguns instantes me aqueceu também. E o ônibus da excursão só apareceria às 4 horas da manhã, porque algum playboy queria ver o show (?) do Tiesto. Outro inconveniente, aliás, é a mistura de públicos, que, com diferentes objetivos no mesmo lugar, não sabem respeitar o espaço do outro, vaiando bandas ancestrais como Yo la tengo, transformando brindes em pilhas de lixo, emporcalhando o já nojento banheiro químico. Porém, dramas à parte, o show perfeito do Queens of the Stone Age, o prazer indizível de assistir ao encontro dos irmãos Cavalera, a doçura do Pixies e, claro, o belíssimo (!) show do Incubus fizeram valer esses sacrifícios. E ano que vem tem mais... Anunciam-se Alice in Chains e o retorno das cinzas do System of a Down. Mas, desta vez, eu levo um poncho, um cachecol e uma garrafa de conhaque.

*

E por falar em Incubus, o vocalista, Brandon Boyd, que também é escritor e artista plástico, foi preso dias antes de embarcar para o SWU, ao encontrarem um canivete em sua bagagem de mão, no aeroporto de LaGuardia. Por coincidência, foi exatamente sobre o que me alertaram meus estimados alunos quando souberam que os acompanharia em uma viagem a Petrópolis (dois dias após voltar de Itu): “A viagem é de ônibus, mas os canivetes continuam proibidos.” Uma doce referência, óbvio, à minha linhagem corintiana. O passeio por Petrópolis foi memorável, é claro. Rendeu, por exemplo, o texto cujo trecho transcrevo a seguir, de autoria de Mateus Nardelli:
“Fedor, vômito, e uma eternidade assentado. Essas são as mais temidas sensações das viagens de ônibus, pelas quais a maioria das pessoas já passou.
Quem nunca usou um banheiro químico? Utilizar um banheiro no qual só se pode urinar. E essa urina fica acumulando na água até o produto químico a diluir. Não sei se vocês concordam comigo, é no mínimo nojento. Mas não é só a questão sanitária que traz insatisfações naquelas horas. O pior é chegar até lá. Essa arriscada epopeia que vivemos para nos aliviar é mais perigosa do que qualquer esporte radical. Uma única freada em momento errado e podemos transformar nosso simples instante de alívio em um traumatismo craniano e um cotovelo ralado. Não vamos nos esquecer da hora H, que para os homens é um emocionante jogo de tiro ao alvo e, às mulheres, um touro mecânico.”

E ainda me perguntam se gosto do que eu faço...

domingo, 10 de outubro de 2010

E não é que foi bom!?

É, galera, e eu fui a São Paulo ver o Bon Jovi esta semana. E o Bon é bom, naquilo que se propõe a fazer – sejam baladas grudentas, refrões otimistas ou cantadas a repórteres femininas. Mas havia outros significados em estar ali, mais uma vez no “La Bambinera”, espremida entre sessenta mil pessoas que gritavam histericamente a cada vez que o telão exibia o sorriso cheio de dentes desse moço (sic) de New Jersey. A verdade é que o Bon Jovi, por causa da “Always”, foi quem abriu as portas para as outras bandas de rock na minha vida. Parece piada, mas, quando ouvi pela primeira vez um CD inteiro dele, percebi, estarrecida, no auge dos meus magrelos 11 anos, que eu gostava das músicas “pesadas” – e você entenda com generosidade o peso no Bon Jovi, claro. E foi para aprender as letras dele que decidi estudar inglês. E o elegi como ídolo – a ser substituído, pouco tempo depois, pelo simpático Eddie do Iron Maiden –, desses pelos quais a gente chora, pensando na injustiça da vida que fez impossível o encontro de vocês. Foi, sim, para provar a essa menina de 11 anos, do interior de Minas, que, em certa medida, encontrar o Bon Jovi não era impossível, que embarquei na missão “Bon: o som da sexta série”. O outro motivo foi o imenso prazer de estar lá com meus amigos de colégio, que dividiram comigo a febre “I´ll be there for you” one of “these days”. A terceira razão é, óbvio, o espírito de aventura. Acho que, se tivesse ganhado, em um desses concursos de rótulo de margarina, o direito de ser levada ao concerto por um helicóptero, que me buscaria em casa e me deixaria lá, no camarote VIP da Globo, não teria sido tão legal. Ir direto do trabalho para o aeroporto, pegar em Guarulhos uma carona com uma santa desconhecida do interior do Espírito Santo... aí entrar num táxi com três recifenses (tão desconhecidos quanto) torcedores do Sport (que ficavam recordando a Copa do Brasil que ganharam sobre o Timão)... depois encontrar meus amigos de TC – que estavam com o meu ingresso! – na porta do estádio (o melhor abraço de toda a minha vida)... e sair de três horas intensas de show para o aeroporto e do aeroporto para o trabalho (quase a lei do eterno retorno)... Isso, sim, foi o show do Bon Jovi. Quase como descreveria o galã, se isso fosse uma canção: “Hey, man, I´m alive, I´m taking each day and night at a time. I´m feeling like a Saturday night” em plena quarta-feira gorda. E que venha, daqui a pouco, o SWU!
(10/10/10)