terça-feira, 21 de abril de 2015

A Patrulha da Noite

Voltava do aniversário de um amigo querido, na Savassi. Cansada e sem humor para sair, pus um vestido preto para dar um pouco de glamour e sinceridade à minha noite, que acabou sendo divertida. Na volta, uma amiga me deixou na Praça 7. Querendo economizar o dinheiro do táxi, pensava em pegar o 5401, última linha capaz de me deixar perto de casa, após as tortuosas alterações causadas pelo Move no sistema público de transporte em Beagá.
Caminhei até o ponto de ônibus da São Paulo, próximo às lojas Americanas, desviando-me de ratos que mais pareciam as capivaras da Lagoa da Pampulha. A poucos minutos da meia-noite, pouca gente se aventurava pelas ruas, além de um casal de bêbados e um rapaz de camisa azul. Ao fundo, em um castelo de caixas de papelão, os moradores de rua, aparentemente, dormiam – bocas ao ar. Perguntei ao rapaz-de-camisa-azul que ônibus ele esperava. “O 5201”, ele disse, “mas acho que já não passa mais. Vou ter que pegar o 5401.” Quase chorei de emoção. No mostrador – outra novidade trazida pelo Move –, dizia-se faltarem 15 minutos para a chegada do “nosso” (!) ônibus.
Eis que surge, no entanto, para a satisfação de meu colega de espera, o maldito 5201. “Que sorte!”, ele falou, “deve ser o último.” E se foi na penumbra. Atrás dele, um homem de preto fazia sinal para o ônibus que vinha em seguida. Dentro de mim, uma voz nada polida falou: “Fudeu!”.
Foi então que o tal homem-de-preto me perguntou: “Que ônibus você vai pegar?” Ao ouvir minha resposta, ele transformou o sinal que fazia, indicando ao motorista que seguisse em frente sem ele. “Vou ficar com você senão você vai ser assaltada”, sentenciou. “Minha irmã foi assaltada neste mesmo ponto há uma semana. Se eu for embora agora, não vou dormir tranquilo, deixando você aqui.”
Agradeci milhares de vezes, um pouco ressabiada com aquela gentileza. Algo, porém, fazia-me confiar naquele estranho – que podia, na verdade, ser um bandido muito pior do que aquele assaltante que ele criava com as palavras: o homem-de-preto se parecia com dois primos meus, irmãos, que morreram há mais de uma década, quando tinham menos de quarenta anos. Todos eles – os três – compartilhavam a postura natural às pessoas magras, o modo de se expressarem, repetitivos, e uma certa bondade heroica difícil de explicar, mas fácil de ser percebida.
Ele insistia em afirmar que não precisava agradecer, mas que deveria, sim, tomar mais cuidado. “Com todo o respeito, moça, mas você precisa rever seus horários. É muito perigoso. Pede para o seu pai, para o seu namorado, para qualquer pessoa vir te buscar, mas não fica sozinha à noite assim.” Tentei explicar que era um caso atípico, que, quando necessário, eu voltava para casa de táxi... Mas ele só sabia repetir a bronca e enfatizar o risco que eu corria estando à mercê da noite e de seus predadores.
Outros dois homens chegaram: um senhor de óculos e camisa pólo verde-clara; um jovem cabeludo, que trabalhava no SUS e dizia trazer uma faca na mochila, para se proteger dos “noia”. Ficaram os três analisando o meu caso – e todos concordavam ser de uma irresponsabilidade tremenda estar sozinha àquela hora na rua. Em seguida, passaram a listar os problemas do país e a narrar casos de assalto de que haviam sido vítimas – ou quase, segundo o jovem-do-facão.
Fui sentindo um medo tão grande de tudo: mais do que por mim, um medo alheio, por aquelas pessoas que não estavam ali por acaso, que precisavam correr riscos diários, voltar do trabalho à meia-noite em todas as sexta-feira, porque disso dependia o sustento delas e de suas famílias. Falei ao homem-de-preto-que-se-parecia-com-meus-primos: “Que medo... do mundo!” E ele me disse, inesquecivelmente: “Não pode ter medo do mundo, não, moça... senão você não vive... senão você nem pinta a unha para sair de casa”, completou, olhando para o esmalte vermelho na minha mão.
O 5401 finalmente chegou e todos entramos nele, como um grupo que éramos, que havíamos formado, por acaso, aquela noite. Também, ninguém queria ficar sozinho naquele ponto sinistro.
Já dentro do ônibus, vi que meu salvador estava com problemas para atravessar a roleta. Corri até lá, julgando que precisasse de dinheiro. Não: a roleta só travara. Pouco depois, ele já se preparava para descer. Repetiu o conselho. Agradeci. Perguntei o seu nome: “Robson. E o seu? Qual é a sua graça?”, ele perguntou (juro que foi assim, que não estou colocando expressões antiguadas na boca de ninguém). Respondi e acrescentei: “Prazer, Robson!”. E, para arrematar com bom humor, uma piscadinha de olho ou um toque de bateria, ele ainda me corrigiu: “ ‘Prazer’, não! ‘Satisfação’. Prazer... quem sabe um dia!?” E desceu.
Tenho certeza de que tomar um táxi teria sido mais seguro. Mas eu ficaria sem esta história.
(19 de abril de 2015)