quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Crianças - I e II

Muitos acontecimentos, este ano, mereciam uma crônica. Algumas viagens se transformaram, de fato, em palavras; certas pessoas viraram poemas. Mas nada, talvez, tenha me trazido de volta tanta vontade de escrever como o que aconteceu no último sábado – assim, nos derradeiros minutos do segundo tempo.
Eu voltava de Três Corações quando o ônibus parou para os quinze tradicionais minutos de pausa. Estava sonolenta e escutava o “Disclosure”, no fone de ouvido. Perto do banheiro, reparei em um pai que trazia uma criança em cada uma das mãos. Na hora, pensei: “e o que ele vai fazer com a menina quando entrar no toilette masculino?” Na mesma hora, ele se virou para trás e me perguntou, como se lesse meus pensamentos: “Você pode acompanhar ela no banheiro?” A garota tinha uns cinco anos, os cabelos muito compridos, desgranhados, e me olhava ansiosa, de óculos. Em um instante, milhares de coisas me passaram pela cabeça: acompanhar quer dizer o quê, exatamente? Eu preciso limpá-la? Ensiná-la a usar o banheiro público, essa acrobacia insólita, mesmo para as mulheres adultas, de não tocar em nada, não sentar, não subir na privada, mas, ainda assim, dar descarga e lavar as mãos? Ou é só estar com ela no interior do banheiro, mas não por trás da portinha? E se ela sumir? E se o pai fugir? E se...?” Suspirei e disse: “O senhor se incomodaria de pedir a outra pessoa? É que eu não tenho muita habilidade com criança.”
Era e não era verdade. Porque eu adoro crianças, de conversar com elas, de maravilhar-me com suas descobertas, mas, de fato, não sou mãe e não entendo muito desses detalhes práticos. E parece que, quanto mais tempo a gente leva para se transformar em pai ou mãe, mais a criança vai se tornando um ser assustador, misterioso e barulhento, porque mais nos afastamos das lembranças de nossa própria infância, quando tudo parecia, e devia mesmo ser, fácil.
Por isso, no momento em que disse “não”, achei que havia feito a coisa certa: afinal, alguma mãe experiente viria logo atrás de mim e acompanharia a menina com muito mais competência do que eu. Contudo, um segundo depois, comecei a me arrepender. Cheguei a ter alucinações auditivas, nas quais a pobre menina choramingava, estupefata: “ela não quis entrar comigo, você acredita?” Não tirei isso da cabeça por cinco dias.
Penso em uma dessas anedotas didático-religiosas, em que o mestre caminhava com seu discípulo na proximidade de um rio. Uma bela jovem perguntou se algum dos dois poderia atravessá-la em suas costas. O mestre aceitou e teve que passar o resto do trajeto ouvindo o discípulo recriminá-lo por se deixar seduzir pela mulher, por ter o contato de suas pernas em torno do corpo etc. O mestre, então, dizia: “Eu a carreguei por quinze minutos. Você a está carregando há duas horas.”
Pois é: seja pela razão que for, por não ter ajudado a pobre menina de quem não sei e nem nunca saberei o nome, irei carregá-la pela vida inteira. Deixo aqui, publicamente, o meu pedido de desculpas.

II

Pedro, de quatro anos, é um dos meus primos mais novos. Ficamos muito tempo sem nos vermos, como ele mora em São Paulo; eu, em BH; e nosso local de encontro é Três Corações, nos feriados prolongados. Por isso, no último Natal, foi como se nos víssemos pela primeira vez.
Ele jogava video game e nós conversávamos. Elogiei o tênis novo dele e ele me explicou que havia ganhado para ir à festa de seu priminho Miguel, no dia seguinte, em Ribeirão Preto. Lamentei que não poderia ir, porque só tinha um par de chinelos. Brinquei que minha mãe só tinha dinheiro para me dar um único presente e ela optara pelo vestido que eu usava naquele dia. Ele não hesitou: “Tenho mil moedas. Posso te comprar um vestido novo e sapatos – de salto! Aí você vem comigo na festa.”
Fiquei agradecida, mas quis lembrar-lhe: “Não, vestido, eu tenho. Só preciso do sapato.” Ele me olhou de cima a baixo, como um crítico de moda, e continuou em silêncio.
Meu irmão, que assistia à cena, falou por ele: “Você não gostou do vestido dela, não é?” Ele sacudiu a cabeça, negativamente: “Não. Eu compro o sapato e o vestido também.”

É isso aí. E Feliz Ano Novo para todos, crianças ou não! (31 de dezembro de 2014).

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Voltar

Voltar é muito mais do que descer do avião, tirar da mala coisas e as histórias que elas contam. É, em primeiro lugar, mais do que estar aqui, não estar lá. É recolher da carteira documentos e notas que não servem mais, cartões de biblioteca, velhos tickets de cinema, filmes vistos na companhia de pessoas que não mais o acompanharão. É ouvir a todo o momento a sua própria língua e travá-la quando cruzam-lhe expressões que são da outra, daquela que a custo quase chegou a ser familiar. Voltar é se lembrar que faz calor, e muito, e que as pessoas por isso se vestem como se se despissem, exalando um tom de pele que é quase um delito, uma depravação. É perceber que existem cores, muitas, e que elas se arregalam à luz do sol. É de novo saber que as frutas têm gosto, cheiro e não apenas um nome marcado na etiqueta com o preço. É redistribuir as ruas no mapa mental da cidade. É revê-las, recaminhá-las e encontrar lugares que não estão mais lá. Voltar é descobrir que seus amigos ainda o amam, mas ainda assim se atrasam, e verificar na prática da espera que se o Google Maps indica um trajeto de uma hora e meia, é porque não conhece a destreza veloz dos motoristas de BH. Voltar é revisitar a Lagoa como se fosse o mar, e olhar do alto da Contorno a avenida Afonso Pena como quem admira a Champs-Elysées. Porque voltar é um exercício lento e doloroso de ressignificação – do espaço, de si e do sonho. (17 de fevereiro de 2014

sábado, 25 de janeiro de 2014

A TESE

A tese é um monstro que a gente alimenta com palavras, e vão lhe crescendo cabeças e surgindo bocas. E é preciso se ter muito cuidado, porque cada novo parágrafo, nova teoria, pode ser uma fileira de dentes afiados prontos a devorá-lo, entre a baba verde do superego acadêmico, em uma banca de defesa ou de qualificação. Pois é por isso que, escrevendo a tese, acabei subnutrindo o blog. Um velho amigo apareceu esses dias, inclusive, para saber se eu estava viva, já que quase não envio e-mails e porque a última atualização datava de meados de novembro. Nesse meio tempo, muita coisa aconteceu: fui a um jogo do Paris Saint-Germain, a um show do DAF numa festa da embaixada alemã, comecei o ano novo em Berlim e tomei cerveja com o The Gathering em Paris. Mas tudo isso, e algo mais, eu conto ao vivo, entre um copo de Serra Malte e uma porção de torresmo, no Churrasquinho do Manuel, daqui a pouco – "trop" pouco, aliás. (25 de janeiro de 2014).