segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Voadora

Era um barco no Mediterrâneo, permeando os calenques de Marseille, próximo ao Castelo de If (o do Conde de Montecristo). Uma tarde clara de agosto, a água salgada molhando o vestido na violência de certas ondas. Meus amigos estavam em pé, atentos, saboreando famintos o passeio. Eu não estava mareada, mas sentia o que tradicionalmente experimento depois de sete dias de litoral: “já deu!” – mesmo sendo as praias azuis da Côte d´Azur. Passei a prestar atenção, assim, nas pessoas ao meu redor. Foi quando escutei três pré-adolescentes que conversavam: Pré-adolescente 1: Por que ele te deu aquela voadora? (sim, era em Português, diria mais, em “Brasileiro”, com direito à palavra “voadora”, que eu pensava que nem se usava mais). P-a 2 (contrariado): Pra começar, nem foi uma voadora... O terceiro não falava, só sorria, divertido com o assunto. P-a 1 (desafiador): Ah, não foi, não!? O cara meteu os dois pés no seu peito... P-a 2 (científico): Que dois pés, véi? Isso nem existe... Nem dá pra fazer isso... P-a 1: Mas cê voou longe! Por que que ele fez aquilo? P-a 2 (ainda contrariado, esperando que mudassem de assunto): Nem foi por querer... P-a 1 (incrédulo): Ah, não? E como é que alguém mete os dois pés no peito do outro sem querer? P-a 3 (na torcida, provocativo): É... como? Houve uma pausa curta. E: P-a 2 (resoluto, encarando P-a 1): Olha, quem foi que levou a voadora? Fui eu ou você? P-a 1: Você!! P-a 2: Então, eu é que sei! A discussão terminou ali. Fiquei fascinada. Porque me lembrava exatamente as conversas que ouvia entre os meus colegas na época em que eu também era pré-adolescente, ou mesmo os comentários dos meus ex-alunos pouco tempo atrás. E adorei o menino fechar o assunto com esse argumento de que se utilizam muitos repórteres e pré-vestibulandos em dissertações. Quem pode ser mais especialista num determinado assunto do que quem viveu a situação? E o garoto, a seu modo, virou a mesa, mas paradoxalmente – afinal, não há orgulho algum em se levar uma voadora, ainda mais com os dois pés do oponente no seu peito. O resto da viagem ficou até mais divertido depois dessa pérola da pré-adolescência. (18 de novembro de 2013)

domingo, 3 de novembro de 2013

Diferentes tons de espetáculo

Sexta passada, fui a um show de rock como quem vai ao cinema: conferi o horário da sessão, tomei um banho, troquei de roupa, peguei o metrô, fiz fila, mostrei meu bilhete, comprei um “demi” (como quem compra um pacote de pipocas), troquei meia dúzia de palavras fiadas com uma moça na entrada, encontrei uma boa posição diante do palco, como se fosse de uma grande tela. Tocou a banda de abertura, uma espécie de sequência de trailers e publicidades, que retardam a chegada do filme. Então faz-se escuro, surgem os músicos, um a um, posicionando-se, e você sabe que o espetáculo irá começar. Eu me refiro ao show do Antimatter, grupo discidente do Anathema, que tocou no Divan du Monde, no último dia primeiro. O estranho foi que tudo continuou da mesma maneira, como um filme. O público não se movia, não cantava, não se manifestava. Em geral é assim por aqui e, em determinados momentos, isso é muito frustrante. É como se a plateia assistisse a uma orquestra e esperasse o fim da sinfonia para aplaudir. Eu era a única pessoa que movia os lábios acompanhando a letra das canções – porque, se cantasse em voz alta, certamente me pediriam silêncio. Até aí tudo bem, questões culturais, a gente entende. O problema foi que a banda retribuiu a gentileza e sequer olhou para o público. Tocaram como zumbis e, quando começavam a minha música favorita, ouviu-se um inacreditável “no, no, no, guys! Stop!” Era o toque de recolher para a entrada do grupo seguinte, “Swallow the sun”. Eles não discutiram. Desvencilharam-se de seus instrumentos, disseram um discreto “merci”, recolheram todas as palhetas (claro que eu, na primeira fila, ansiava tantalicamente por uma delas para compor minha coleção) e desapareceram. Fiz o mesmo. Do lado de fora, chovia; eu havia esquecido o celular em casa e não pude tirar sequer uma foto. Sem dúvida, o Antimatter, para mim, ficou com muita cara de anticlímax. *** Uma semana antes, porém, no Nouveau Casino, tive a honra de rever – pela quarta vez! – Anneke van Giersbergen, numa postura muito mais rock do que nas aparições mais recentes, tocando integralmente o último álbum, “Drive”. Os cabelos profundamente vermelhos, a voz ainda impecável, a jaqueta preta de couro, no entanto, não escondem o fato de que a moça está cada vez com mais ares de popstar. Não é uma crítica: ela deixou o The Gathering porque queria, justamente, fazer outro tipo de trabalho. As canções são deliciosas de dançar, os refrões têm aquele jeito saboroso de grudar na língua da gente, mas não vou negar: dá muita saudade do tempo de “Nightime birds” ou do “Mandylion”. Mas fazer o quê? Como entoam quase todas as músicas da nova fase da cantora, o jeito é “to live on”... Afinal, “we start today”... *** Today, graças ao namorado de uma amiga, que nos presenteou com duas entradas, fomos assistir à final do Paris Open de tênis. Eu só conheço do esporte o que aprendi com o vídeo game, mas foi uma experiência extraordinária estar no Palais Omnisport de Paris, em Bercy, assistindo a uma partida entre dois dos melhores tenistas do mundo, David Ferrer e Novak Djokovic. Percebo que o meu vício por futebol me impediu, por tantos anos, de enxergar a beleza na agilidade das raquetes. O que mais será que eu perdi? Vou prestar mais atenção aos outros esportes, nas Olimpíadas de 2016... (03 de novembro de 2013.)

sábado, 26 de outubro de 2013

Praga e o Lobo Mau

Um dos ensinamentos de infância que a gente desconstrói ao longo da vida é aquele do “não conversar com estranhos”, porque, passada a fase em que seus amigos são representados pelos primos e pelos filhos dos amigos dos seus pais, é impreterível falar com desconhecidos para que eles passem a ser conhecidos e, quem sabe, tornem-se amigos seus. Quando se viaja, essa lição, de que também era adepta a mãe da Chapeuzinho Vermelho, é ainda mais posta em prova. Em um território diferente, é preciso dar um voto de confiança aos desconhecidos. Foi por isso que, quase sete anos atrás, comecei a participar do Couchsurfing, que é uma comunidade de viajantes que ajudam viajantes: oferecem um café, um almoço, um passeio pela cidade e até mesmo um canto para dormir, gratuitamente. Ao longo desse tempo, conheci muita gente interessante, fiz amigos, descobri lugares incríveis que só um nativo poderia apresentar, e vivi até uma relação amorosa duradoura – que dura até hoje, embora em outro formato. Mas, claro, às vezes a gente tem que lidar com situações complicadas. Foi o que aconteceu na minha viagem a Praga. Assim que cheguei à casa do meu “host”, não tive como não me sentir desconfortável: pilhas e pilhas – de louça a ser lavada, de roupa suja, de sapatos – decoravam o lugar. Ele explicou que não tinha máquina de lavar e que, por isso, não teria lençóis limpos para me oferecer, e que eu teria que dormir na cama (desarrumada) em que a filha dele, de cinco anos, dorme quando vai visitá-lo. Em seguida, comeu o pedaço de um pão com mel que a menina havia deixado em cima da mesa, quando saíram, pela manhã. Tudo bem, eu pensei, não sou nenhum fiscal sanitário, posso aguentar um dia ou dois assim, vou passar a maior parte do tempo fora de casa mesmo. Então ele foi tomar um banho. E foi aí que comecei de fato a me sentir desconfortável: quando ele saiu do chuveiro com uma toalha vermelha amarrada na cintura; nothing else. É a casa dele, ele tem o direito, pensei, enquanto ia o mais depressa possível para outro cômodo, justamente o do chuveiro. A porta não trancava. Tomei um banho – também desconfortável – e voltei para a sala (que também era o quarto), onde ele continuava com o modelito “toalha-vermelha-amarrada-na-cintura”. Só que agora ele enrolava um cigarro de maconha (que é praticamente legalizada na República Tcheca) e tomava alguns tragos de vodca. Então começou a falar que terminara um relacionamento há pouco tempo, que estava muito feliz com a minha companhia, quis saber se eu tinha namorado, e deu início a uma interminável referência a mulheres. Se eu elogiava o guarda-roupa, ele dizia que queria fazer uma sessão de fotos ali, mas que modelos são tão caras... Se eu começava a falar de um filme, ele falava da atriz principal. Fomos a um bar, ele falava da garçonete. Depois, em outro, ele convidou um colega para se sentar conosco, e os dois passaram em falar em tcheco – sem legenda! (o que me impossibilitou de saber se o assunto continuava sendo mulher). Eram cerca de duas da manhã, eu estava cansada, ele estava embriagado, nós teríamos que caminhar cerca de cinquenta minutos de uma trajeto inóspito até a casa dele, e, claro, eu desconfiava das intenções do sujeito. Foi então que me virei e olhei para a mesa atrás de mim: dessas mesas baixas, como de centro de sala de estar, com um sofazinho ao redor, cheia do que se via serem jovens amigos. Um deles me sorriu. Foi a deixa de que precisava. Agarrei minha taça de vinho branco, dei meia-volta e disse: “Vocês falam inglês? Então posso me sentar com vocês?” Eles eram todos muito simpáticos; dois haviam morado no Brasil, e um deles havia sido jogador do América de Natal! Foi justamente a este que me reportei, quando o meu “host”, dada a partida do colega tcheco, viera se sentar conosco e começara a falar alto e a entoar canções que desconheço também num tom de voz acima do desejável. O pessoal começou a se preocupar com a minha integridade, e eu disse ao ex-jogador do América: “se houver algum problema hoje e eu precisar de outro lugar para ficar amanhã, posso entrar em contato com você?” Ele respondeu: “mas por que esperar haver um problema hoje? Há um quarto absolutamente vazio na minha casa. Nós buscamos suas coisas agora e você fica lá.” De fato, ele tinha um quarto vazio, uma colega de apartamento supergentil, que fazia brownies, e se revelou a melhor companhia possível para conhecer Praga. Meu “host” pareceu um pouco desapontado quando tomamos um táxi, fomos até a casa dele resgatar minha bagagem, mas estava muito bêbado para reagir, coitado. E foi assim que fui salva, por adoráveis desconhecidos, das terríveis garras do Lobo-Mau-de-toalha-vermelha-amarrada-na-cintura. (26 de outubro de 2013)

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Prêmio Nobel

As águas, o céu, os olhos. Tudo era azul na Escandinávia. Da janela do trem, os cervos pastavam e, pelos parques, atravessavam o nosso caminho entre saltos. Os tetos, pinheiros e nuvens atiravam-se inadvertidos na profundidade dos lagos, e se espe/alhavam, liquidos, como os sóis de Munch. A sombria arte dinamarquesa e toda a inquietude do parque Vigeland chocavam-se com a claridade fria que brilhava sobre o outono. Ah, Estocolmo, Växjö, Copenhagen, Oslo!.. Se não fosse o preço da cerveja, eu me mudava praí! (03 de outubro de 2013)

domingo, 15 de setembro de 2013

O ponto de vista dos caleidoscópios

A primeira vez que ouvi a expressão foi a caminho do aeroporto de Lyon, anos atrás. Era uma francesa muito bonita, com ares de alemã e o charmoso nome de Cloë (com o trema de que ela se orgulhava tanto) que me contava que o namorado a havia “laissé tomber”. Primeiro, fiquei estupefata: como alguém poderia terminar com uma moça como ela, que, ainda por cima, era extremamente gentil? Em seguida, fiquei pensando nesse jeito de se referir ao fato: “laisser tomber” quer dizer, literalmente, “deixar cair”. Recentemente, conheci um sinônimo: “larguer”, idêntico ao empregado em português: “ele/ela me largou.” Muito imagéticas as expressões. Por que não é, no fim, isso mesmo que acontece? Como se, escalando uma montanha muito íngreme, alguém soltasse a sua mão, você sentisse subitamente aquela ausência do peso que o sustentava, e passasse à leveza do vazio, ao desequilíbrio e, claro, à queda? “Ele me deixou cair” é muito mais emblemático do que o “ele terminou comigo” do português, porque, a princípio, a ideia é dizer que o cidadão “terminou um relacionamento comigo”, ou seja, é o relacionamento o objeto direto do término. Obviamente, no entanto, se o objetivo for a dramaticidade, dizer que alguém terminou com outra pessoa pode significar que a destruiu, destroçou, reduziu a pó. Gosto de pensar também em como os franceses se referem ao ato de se apaixonar: “tomber amoureux/amourese”: cair apaixonado. É semelhante ao inglês, que, neste caso, consegue ser ainda mais sugestivo: “fall in love” é simplesmente “cair no amor”. Como se este fosse um buraco, um precipício, um fosso repleto de areia movediça, onde se perde aos poucos o domínio dos movimentos, o oxigênio, e se pode cada vez mais afundar. Pois se, no amor, do começo ao fim, tudo é sempre uma questão de queda, gosto de pensar no verbo correspondente em espanhol: “caerse” é algo que se faz a si mesmo, sendo possível, assim, ao menos, dosar o tamanho do tombo. Teoricamente, é claro. *** Pensei nesse assunto enquanto relia “Sem Ana, blues”, um conto do Caio Fernando Abreu, autor de quem gostei muito no final da adolescência. O texto é uma das melhores descrições de fossa pós-término que já vi, competindo com canções como “Eu te amo”, do Chico, “Jumping my shadow”, do Skyclad, “Atrás da porta”, na voz da Elis Regina. Como, hoje em dia, nesses quesitos, eu prefira o bom humor de uma Clarice Falcão e músicas como “Uma canção sobre o amor”, o texto me serviu para refletir sobre outra forma de encontro amoroso: aquele com o nosso idioma materno. Tenho lido a maior parte do tempo em francês, escrito em inglês para congressos, e de repente o sabor de um conto literário em português caiu como uma luva para este domingo em que, depois de dias de chuva, o sol deu as caras num céu lavado e muito azul. Depois ele também foi embora, “nos largou”, mas aí já estávamos nos divertindo com palhaços, carrosséis e acrobatas, no Museu das Artes de Feira, que só abre em datas especiais – como hoje. (15 de setembro de 2013.)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

So let it be rock

Foi um amigo quem me deu o ingresso para o show de Madball, Downset e Biohazard, umas semanas atrás. Pulei muito nos dois primeiros, mas, no terceiro, para fugir dos moshes violentos do público – tinha gente até com protetor bucal, para você ter uma ideia -, fui me sentar numa grade de proteção, de onde tinha uma visão superprivilegiada e próxima do palco. Foi aí que eu bocejei. Eu sei, era um concerto de rock, ninguém esperava aquilo de mim, mas foi mais forte que eu, desculpe. Quando olhei para a plateia, um rapaz me encarava, estarrecido. Ele agitou a cabeça e o indicador, num gesto negativo, depois moveu os braços para cima, ensinuando que eu precisava me animar e curtir o show. Ele, claro, tinha toda a razão, e passou o resto da apresentação conferindo, vez por outra, se eu estava mesmo “agitando”. Acabei me entusiasmando tanto que, quando me dei conta, estava sentada em cima da caixa de som, praticamente sobre o palco, e o guitarrista solava olhando diretamente para mim – cena que se repetiu algumas vezes, até ele pegar a minha mão e beijá-la docemente, como um cavalheiro. Quando o concerto acabou, pulei no palco, acompanhei um menino de uns doze anos que, tímido, tentava se aproximar do vocalista, conversei com ele, ganhei duas palhetas e um abraço apertado do baixista que, vim a saber, é um conhecido ator pornô. Tenho as fotos para provar. E este foi só o começo de uma sequência sensacional de shows de rock, que povoou agosto, o mês do meu aniversário no meu ano parisiense. Exatamente no dia 23, minha data querida, Belle and Sebastian (ah, minha adolescência...), Tomahawk (rever o Mike Patton, sempre um prazer à parte!) e Franz Ferdinand se apresentaram no Rock en Seine, junto a atrações ditas menores, mais ainda muito empolgantes, como Johnny Marr, o ex-guitarrista dos Smiths, que nos brindou com canções dos velhos tempos, como a adorável “There´s a light that never goes out”. No dia 25, foi a vez do System of a Down, e de uma apresentação de pura energia, em que os caras emendavam uma música à outra e só dava tempo de se sentir alegre. Quando estive em Londres, conheci uma inglesa muito divertida, com uma tatuagem muito bem feita de um alien no ombro, que me acompanhou aos pubs da cidade, e que me disse ser roqueira por saber que o rock nunca nos deixa para trás, nunca nos abandona. Tenho a mesma sensação. É uma das minhas melhores companhias. E é como se ele se presentificasse nos concertos, verdadeiras experiências epifânicas às vezes. Hoje é a vez dos Deftones, banda que ouvia muito pouco, mas a que decidi dar uma segunda chance graças aos comentários elogiosos da Anneke. Ela, outro dia, postou uma foto tirada do meio da plateia, em um show deles a que esteve presente, e escreveu: “Incrííííivel Deftones!!!”. Bom sinal, alors! (06 de setembro de 2013)

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O último bar antes do fim do mundo

Descobri um bar em Paris chamado “O último bar antes do fim do mundo”. (Um amigo, que está prestes a retornar ao Brasil, disse que, na véspera da partida, vai lá tirar uma foto, segurando o bilhete de volta...) É um lugar para nerds e geeks, onde só se toca rock, música de video game e trilha sonora de anime. (Quando estava lá, por exemplo, morri de euforia ao ouvir um dos temas dos “Cavaleiros do Zodíaco”.) A decoração inclui Gremlins (aquelas fofuras que viram monstros quando em contato com a água) e Totoros (da animação do Miyazaki). Para completar, há um amplo acervo de jogos de tabuleiro, livros de RPG, histórias em quadrinhos e mangás à disposição dos frequentadores – que, diga-se de passagem, são bem mais simpáticos do que o habitual. O pessoal da mesa ao lado até me convidou para jogar uma partida de qualquer coisa com eles, um gesto nada parisiense. E, como se não bastasse, ainda vendem cerveja lá! É o paraíso. Quando eu frequentava o conservatório, conheci uma pianista, de nome muito bonito, que se destacava para mim por ter algo de Madame Bovary. Ela era uma grande amiga da minha professora de piano, que, certa vez, mostrou-me um álbum de fotografias, uma espécie de book, da primeira. Eram fotos belíssimas – ela tinha um sorriso invejável e olhos de um verde muito particular. Mas havia uma nebulosidade em cada uma daquelas imagens, não importava a largura do sorriso ou a quantidade de dentes alinhados. Então, minha professora explicou que, naquele dia, o noivo – médico com nome de compositor alemão, o dos Nibelungos - rompera com ela um namoro de sete anos. Ela estava absolutamente arrasada e a sessão de fotos fora uma tentativa de reanimá-la – talvez no sentido original, de trazer-lhe novamente a alma. No último domingo, eu também estava triste, e um amigo fotografou-me à beira do Sena, tentando alegrar-me – assim como, anos atrás, outro amigo fizera, com três barras gigantes de Laka e um CD de músicas latinas. Depois fomos ao tal bar, e bebemos até o horário do último metrô. Talvez não fosse, afinal, o fim do mundo; só o primeiro dia depois do fim. PS.: Fui surpreendida esta manhã com o e-mail de um amigo que não vejo há muito tempo, de Lavras. O título era "Every sun is fragile". Ele se referia ao novo álbum do Autumnblaze. Mas, ao mesmo tempo, a afirmação faz todo o sentido. Every sun is fragile. (07 de agosto de 2013.)

terça-feira, 16 de julho de 2013

Ritornello

Depois de tomar uma Guinness em um autêntico pub irlandês, tirar uma foto ao lado da estátua descontraída de Oscar Wilde em Merrion Square e dormir no chão de Londres, fui para a Itália, subir trezentos e vinte degraus até o topo da Basílica de São Pedro. Roma foi uma asfixia: o calor de quarenta graus, a horda de turistas ensimesmados, as caminhadas intermináveis e o sufoco de estar sob o peso de tantos séculos de História. As ruínas, as termas, o Coliseu, a arte antiga, as igrejas e tanto ouro revestindo suas paredes, a luz colorida dos vitrais, os órgãos em sua magnificência de tubos, o enigma de cada quadro da Capela Sistina. A beleza cinematográfica das praças, parques, das esculturas, a Fontana de Trevi, tão felliniana, lembrando a todo o momento o quanto a vida pode ser doce. E, depois, num domingo de abençoada chuva, os estúdios da Cinecittà e o fascínio de estar diante do figurino de Claudia Cardinale em “Era uma vez no oeste”. Mas Roma foi ainda mais que isso: foi o prazer de estar com duas amigas brasileiras, que conheci em Paris, uma antropóloga e uma historiadora, escolta perfeita para uma visita contextualizada aos museus; confidentes, companheiras, nós nos unimos por um mote: allons que allons! E, assim, nós fomos! Tomamos o trem, embevecidas com os campos de girassóis e a paisagem sem adjetivos da Toscana, e chegamos até Florença. E então eu me paraliso para um longo suspiro. Ahhhhh... Florença! As ruas, a arquitetura, o sorvete, a bisteca fiorentina do “Mário”, o pôr-do-sol na praça Michelangelo, tomando chianti e comento cantucci, e rindo muito de uma série de piadas internas que, por muito tempo, só a gente vai entender – porque depois, é possível, nem a gente. :) E em Florença está o David, estátua pela qual merecidamente se derrete de amores, e o paraíso estético da galeria Uffizi. Todo mundo está lá!! Boticelli, Rubens, Tiziano, Caravaggio, Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, Brueghel... Chega a ser estafante de tão bonito. A impressão que fica é a de que é preciso voltar, passar uma tarde inteira em cada sala; voltar, aliás, à Itália, onde todos os dias são domingo, o domingo da macarronada e da família – barulhenta! – reunida, das escadas rolantes vagarosas, em que ninguém ultrapassa ninguém, porque a vida é para ser experimentada como uma refeição de muitas horas e diversos pratos. (16 de julho de 2013).

sábado, 1 de junho de 2013

Portugal: minha grande madeleine

Sempre que falam em comida de mãe, eu penso nas quitandas que faz minha Madrinha, uma pessoa incrível, que entra para o Top 5 dos meus grandes amores. Minha mãe me fez querer ser forte; meu pai, a buscar a inteligência; mas, se há alguma doçura em mim, foi minha Madrinha quem me emprestou. Passou a vida criando filhos, netos, sobrinhos, com paciência e mãos de fada para a cozinha. Cada um de nós tem a sua quitanda preferida: brevidade, bolo de fubá, broa, biscoito de nata... Quando eu era pequena, e ela cuidava de mim enquanto meus pais estavam no trabalho, eu contava os minutos para o café da tarde – literalmente. Uma vez, disse a ela: “já está na hora, Madrinha!” E ela explicou que tomávamos café às 15h, que eram ainda 14h. Sentei-me na cama dela, de frente para o rádio-relógio, e fiquei uma hora inteira vendo os minutos se passarem, os números se transformarem, como diante de uma ampulheta vermelho-brilhante. Essa é até hoje, de todas, a minha maior gula. Posso ficar sem sobremesa pelo resto da vida, mas não me deixe sem café com bolo! E quando, dias atrás, tive a oportunidade de visitar a terra dos nossos colonizadores, senti uma imensa alegria ao descobrir de onde vinham as receitas deliciosas da minha Madrinha. Os doces típicos portugueses, como o “travesseiro”, que se come em Cintra, têm a massa, a cobertura de canela e açúcar, tradicionais no interior de Minas. Foi como a madeleine do Proust, só que em muitas formas e sabores: no peixe que meu tio Jair pescava e levava de presente para minha mãe, no arroz-doce que minha avó fazia e que meu pai adorava, nos pasteis-de-Belém e afins, tão parecidos com as receitas da minha Madrinha. Pensei neles o tempo todo. Porque as belezas ficam mais bonitas quando nos evocam as pessoas que amamos. E quantas belezas há em Portugal! Em Cascais, em Porto, no rio Tejo, em Alcochete, em Lisboa, no Cabo da Roca – lugar em que me esqueci de todos os meus arrependimentos e onde entendi por que os portugueses, naquele sotaque melífluo, dizem que o mar é deles. Foi uma viagem de reencontros: com importantes amigos e fundamentais lembranças. Fez bem – faz bem a saudade. Voltei para casa com um quilo a mais de leveza. (01 de junho de 2013.)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Cada um com sua Pasárgada...

Me encantan as bandeiras amarelas e vermelhas pelas fachadas, lembrando-me de que estou outra vez na Espanha, seis anos depois. Muita coisa mudou nesse tempo, para bem além da cor dos meus cabelos. O espanhol agora está mais melancólico, tocando pela rua tangos argentinos. “Fizeram de nós um grande parque de recreação”, desabafou uma espanhola de Valladolid, que deixou por lá a família e o namorado para trabalhar como enfermeira em Barcelona. Ouvi queixas sobre a precariedade do sistema de saúde, os preços das universidades paradoxalmente públicas, sobre as condições de trabalho, os salários atrasados, as aposentadorias tardias, as incertezas acerca do futuro. E, para onde quer que se vire, tudo é magnífico: as casas, os monumentos, a arquitetura, os grandes generais sobre seus cavalos de patas erguidas. O prédio dos correios, por exemplo, é impressionante. Investiram tanto em turismo que, hoje, falta dinheiro para se construírem escolas e hospitais. E é interessante observar o espaço que ocupa agora o Brasil diante dessa quebra de expectativa europeia: procurando um presente para o meu irmão, na loja do Barça, um vendedor muito simpático me explicava os diferentes modelos de camisa, pensando que eu era argentina. Quando falei que era brasileira, ele se entusiasmou: “oye, dizem que no Brasil há muito emprego, verdad?” Eu não sabia o que responder. Porque, sim, há emprego, mas estamos longe da Pasárgada de Bandeira. Há também muita violência, muita corrupção, muita desigualdade social, muita desorganização. Outro dia, um francês me dizia temer que, apesar de todo o progresso, a falta de ordem pusesse tudo a perder no Brasil. E infelizmente ele está certo. Toda a ostentação com a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 pode vir a ser o estopim da derrocada. E, daqui a poucos anos, estaremos encarando nossos belos estádios como a relíquia de um tempo em que parecíamos, para o mundo, inclusive o velho, um ponto de fuga perfeito. * Mas, escrevendo assim, faz parecer até que estou triste. Impossível. Acabo de voltar do Parque Güell, que é o máximo do modernismo catalão, e onde estão algumas das obras mais bonitas de Antoni Gaudí. Ontem, visitei a Igreja da Sagrada Família e o Camp Nou, o estádio do Barcelona, um espetáculo à parte. Antes havia estado em Valência, onde pude ir ao campo assistir a uma partida da primeira divisão do futebol espanhol, entre Levante e Rayo Vallecano, passear pela inacreditável Ciudad de las Artes y las Ciencias, ver o Real perder a Copa do Rei para o Atlético de Madrid – um acontecimento histórico! – tomando água de valência e comendo polvo asturiano. E o melhor de tudo: nesta viagem, pude reencontrar amigos que não via há muito tempo, descobertas de viagens anteriores, que se tornaram ainda mais queridos, apresentando-me novos sabores de tapas, outras pessoas gentis, lugares increíbles nessa Espanha tão guapa, que espero em breve ver feliz de novo. (22 de maio de 2013.)

terça-feira, 30 de abril de 2013

6 dollars per hour

Em BH, tive, por muito tempo, um lugar favorito: um cinema chamado Usina. Era pequeno, com duas salas discretas, onde se projetavam os ditos filmes de arte, ao lado de um charmoso café/restaurante e uma livraria cara, mas de qualidade. A vida sempre me levava para lá, fosse por causa de empregos, namorados ou candidatos a. Meu prazer maior, no entanto, era solitário: o filme reverbera mais à vontade quando se está sozinho. O lugar foi fechado, no entanto, com promessas não cumpridas de uma reforma e de posterior reabertura em alto estilo. Também, pudera: o lugar vivia à míngua. Em Paris, essa diferença assusta: os eventos culturais, os locais voltados para a arte, realmente lotam. Por isso, proliferam. Um desses espaços, que elegi de cara como, a mim, mais caro do que a Torre Eiffel, é o Forum des Images, dentro da estação Châtelet-Les Halles. Além das salas projeção, há um café, a biblioteca François Truffaut, totalmente voltada para o cinema, além de alguns espaços de convívio, com sofás superconfortáveis, onde se pode simplesmente estar. Há ainda a parte das coleções, em que se tem acesso a milhares de filmes de qualidade. Na última sexta, estive lá para, entre outras coisas, prestigiar o festival “Séries Mania”, dedicado a séries de TV do mundo inteiro. A programação era imensa, difícil saber a que assistir, e acabei diante de uma produção israelita chamada “6 dollars per hour”. Câmera na mão, estética da simplicidade, do chão-a-chão, três protagonistas, faxineiras, com diferentes dramas tratados com muito realismo e intimidade. Adorei. Na saída, um livreiro distribuía suas ofertas sobre a mesa. Parei, é claro, e, por acaso, justamente no meio de duas francesas cheirando a burguesia. Fiquei ali, entre o fogo cruzado das madames, que criticavam a série, chamando-a de “miserista” e “mal-filmada”. Como quem passa por debaixo da cruz e da espada, afastei-me, incrédula, indo buscar um livro de bolso mais à esquerda. Incrível o desejo dos franceses de fechar os olhos para a pobreza, inclusive para a deles mesmos, que se alastra como o zumbido feroz de uma miríada de gafanhotos. Interessante como não basta frequentar lugares de arte para se deixar sensibilizar por ela. (30 de abril de 2013)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Confins, alturas e Países Baixos

Leiden é uma grande universidade, que, a exemplo de Viçosa, possui uma pequena cidade. E, o mais importante: ela se localiza na Holanda, o país de origem do The Gathering. Tudo bem, há muito mais aqui – escrevo ainda de dentro do aeroporto de Amsterdam-, como o parque das tulipas, o museu do Van Gogh, o famoso Red Light District, as bicicletas, os moinhos, o Tribunal Internacional de Haya, a arquitetura moderna e as esculturas nas ruas de Rotterdam, a qualidade de vida de Utrecht, com seus canais, gaivotas e patos coloridos, a beleza plana das estradas vistas pelo vidro limpo dos trens mais pontuais, a gentileza das pessoas... Mas, quando me convidaram a participar de um congresso em Leiden, ironicamente sobre literatura de viagem, a primeira ideia que tive foi a de correr à página do The Gathering e descobrir onde eles tocariam quando eu estivesse nestas terras alaranjadas. Porque era um ideal, bastante simples até, o de vê-los em sua terra natal, em sua homeland. E eis que, quatro dias depois da jornada de estudos, lá estariam eles, em Emmen, na outra ponta do mapa, no norte, quase resvalando para a Alemanha, mas ainda nos Países Baixos. Comprei o bilhete, em holandês, com auxílio do tradutor do Google, para uma casa de show chamada Blanko, que, vim a saber, pertencia a um português. E fui. O lugar era tão pequeno, tão parado em um tempo de singeleza e tranquilidade, que foi difícil encontrar mesmo um local onde me hospedar. Mas achei e era perto: da estação, do concerto, dos realejos no centro comercial da cidade – porque, ali, o conceito de distância era o daquilo que superava quinze minutos a pé. A primeira alegria da noite foi o encontro com uma chilena ultrassimpática, encarregada de comercializar os álbuns do grupo, a qual, além de me fazer uma grande oferta, revelou-me ser a namorada do guitarrista. Dali, foi como um passe de mágica: o pôster autografado por todos eles, a palheta, o agradecimento público, no meio do concerto: “Estamos falando em inglês, porque soubemos que há alguém de fora aqui...”, disse a baixista, Marjolein. “Brasil! Brasil!”, gritei, do privilegiado espaço da primeira fila. Foi como um sonho. O show foi discreto, como o público, quase mórbido – fácil entender por que todo mundo gosta de tocar na América Latina. Focalizou os dois últimos álbuns e, principalmente, o excelente “Disclosure”, com direito, no entanto, a algumas canções mais antigas, como “Broken Glass”, “Eleanor” e “Shot to pieces”. Ao final, a banda desceu diretamente ao solo, sem a frescura dos camarins, e passamos – especialmente a baixista, a vocalista e eu - um bom tempo conversando sobre “que diabos uma brasileira estaria fazendo ali, em Emmen”. Tornei-me definitivamente fã da delicadeza de Silje, essa guerreira que aceitou o desafio de substituir a Anneke, e que tem feito um trabalho apaixonante. Depois passei três dias (até aqui) revendo as fotos, os vídeos, e tentando espalhar pelo resto da Holanda o pólen de uma noite sem igual. (22 de abril de 2013)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Almodóvar - I, II e III

O que eu sempre gostei nos filmes do Almodóvar foi a sensação de que, como para o Lucas Silva e Silva, do “Mundo da Lua”, tudo pode acontecer. E quando eu digo “tudo”, I mean “everything” mesmo. Claro, depois de um tempo, você entende que a receita tem sempre um travesti, dois homossexuais (um deles, enrustido, talvez), uma lésbica, um bissexual, um filho traumatizado, uma canção brasileira, muita cor e muito sexo - as maneiras mais inusitadas de sexo, aliás. Mas, ainda assim, a primeira cena abre sempre um oco de deliciosa curiosidade dentro de mim: o que será que ele vai inventar desta vez? Em seguida, vem a fase do reconhecimento: a mulher do “A flor do meu segredo!”, “la consejala antropófoga!”, o cara do “De salto alto!”, aquela freira do “Maus hábitos!”... e tudo isso com a infantil alegria de quem vê o mesmo filme muitas vezes e sabe, inclusive, repetir alguns diálogos. Aos poucos, minha mente vai listando as circunstâncias dos meus encontros com Almodóvar: “Fale com ela” eu vi no cinema, com o Petrus; “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, na biblioteca da Escola de Belas Artes; “Kika”, foi no curso de Autores e Estilos; “O eu fiz para merecer isso”, eu vi com o meu irmão, num domingo à noite, “Má educação”, foi num sábado à tarde, com a Fernanda, que trabalhava comigo na Reitoria... E, na última quinta, com a Íris e a Natascha, duas novas amigas-vizinhas (e olha que nunca gostei de conjugar essas duas palavras!), fui ao cinema assistir à estreia de “Os Amantes Passageiros”: uma experiência de profundo déjà vu e muito humor escrachado, como se o diretor fizesse questão unicamente de se ater – atar? – a duas palavras: amantes + passageiros. A partir daí, os personagens poderiam ter vida própria e seguir livremente a trilha do nonsense, a seu bel, e intenso, prazer. Deixei o cinema com vontade de dançar, e intrigada com a possibilidade de fazer, a partir da filmografia de Pedro Almodóvar, uma colcha de retalhos de dez anos da minha vida. ALMODÓVAR - II Fui ao Hôtel de Ville, com uma polonesa supersimpática que conheci nos complicados ensaios do Réquiem, assistir à exposição de Haute Couture. Nada entendo de moda, mas os grandes nomes dos estilistas ressoam facilmente na nossa memória, e não é tão difícil achar bonito um vestido bonito. Fora que tantos episódios ao lado de Carry Bradshaw, além do incrível aumento de publicações e sérios estudos a respeito do tema, tenham me feito entender que a moda merece respeito. Não me provoca, porém, suspiro comparável ao do museu de Arts et Métiers, ao dar de cara com os instrumentos precursores da fotografia e do cinema, o daguerreotipo, a lanterna mágica, as primeiras câmeras. Foi um dia depois de conhecer a Biblioteca Nacional da França, numa conferência em homenagem a Julia Kristeva; dois dias depois de visitar a Cinemateca ou de ver um concerto de música argentina na Maison da Bélgica, na Cité Universitaire; um dia antes de assistir à “Antígona”, num teatro em Saint- Michel... Talvez isso explique por que eu esteja dormindo tão pouco e tomando tantas canecas carregadas de café extraforte desde que cheguei aqui. ALMODÓVAR - III Esse sentimento de “tudo pode acontecer”, que me assoma no início dos filmes de Pedro Almodóvar, é semelhante ao que experimentamos no princípio dos relacionamentos: ninguém nunca me disse isso, ou tocou ali, ou contou aquilo, ou fez assim, ou. A nova pessoa é sempre uma fortuna de possibilidades, que nos fazem pensar em casamento, filhos, viagens pelo mundo, temendo, apenas com descrente discrição, desfechos dolorosos, insultos, feridas que demoram a cicatrizar. Não é por acaso que outro filme, o “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, dirigido por Michel Gondry, com roteiro de Charlie Kaufman, figure na lista de preferidos de tanta gente: porque nada se compara aos princípios. Apagando-se a memória de trás para frente, teríamos sempre material bonito o suficiente para querer tentar de novo, se nos sobrassem só os começos. (01 de abril de 2013.)

sexta-feira, 15 de março de 2013

Azul

Há um azul nos olhos europeus, que é simplesmente desconfortável. Ele me faz pensar a cor com tato e me ajuda a compreender a solidez dos olhos negros, castanhos e marrons, que nos encaram com franqueza e precisão. Ele distancia-se ainda do verde, seu matiz-irmão, ao qual estamos mais habituados, e que reserva ainda um traço, um delineamento, que o fazem menos ameaçador. Nesse azul é absolutamente diferente: eles têm olhos líquidos. Espelhos d´água, piscinas circulares, espessas gotas de oceano. Todas essas definições, nem tão originais, seriam válidas. É como encarar uma joia, sem saber se ela se dá conta de sua preciosidade ou de nossa existência. (15 de março de 2013)

domingo, 3 de março de 2013

Entre o Sigur Rós e as pulgas

O Sigur Rós foi uma das bandas mais presentes nos meus fones de ouvido nos últimos meses. Lembro-me bem da minha derradeira visita à UFMG, pensando, nostálgica, no quão rápido esses dez anos na universidade passaram, e suspirando, sonhadora, pelo que ainda havia por vir. A trilha sonora eram as intrigantes linhas melódicas e os surpreendentes arranjos harmônicos desse grupo de islandeses, tão impressionantes quanto a Björk. E eis que eu aterrisso na França e, duas semanas depois, estão eles aqui, em Paris! Eu enlouqueci! Mas um pouco mais logo em seguida, quando descobri que os ingressos estavam esgotados, sold out, aliás, em toda a Europa, pelos próximos três meses, quando, finalmente, haveria bilhetes disponíveis - nos Estados Unidos. Só havia uma exceção: Lille, ao norte, um par de dias depois. E tudo isso junto a mudança de casa, contrato de seguro de saúde, colóquio na Sorbonne, burocracias infinitas... Foi uma correria intensa e eis que as luzes se apagaram, desenhos incompreensíveis começaram a ser projetados sobre um curioso véu, diante do palco, a banda começou a tocar e eu estava lá. O show foi simplesmente "tripante", como dizem os franceses, cada acorde era um espasmo, uma viagem interior para outros tempos, outros encontros, outras passagens. Confesso: deu saudade de assistir às apresentações no Brasil, com um monte de gente empurrando e furando fila, no lugar do medo de esbarrar em alguém e ter que dizer "désolée" a toda hora. Ao mesmo tempo, foi um convite a um prazer intimista e aquele acabou sendo um concerto de arrepios. No dia seguinte, uma hora de estrada e estava na Bélgica, em Brugges, a "veneza belga", um charme... especialmente quando se depara, na esquina, com um violonista como o Tony Haven: http://www.tonyhaven.com/, tocando ali, sentado no chão, na maior simplicidade. Depois vieram as iguarias... as patas de rã, servidas como tira-gosto, os mexilhões fritos e, claro, as batatas fritas gordinhas que os belgas comem no cone. Em seguida, veio Bruxelas, com a Delirium, uma cerveja com quase dez por cento de álcool, que faz jus ao nome, e aquela arquitetura fabulosa, que, em certas partes da cidade, torna-se muito duvidosa. Porque, pelo pouco tempo que estive ali, senti que Bruxelas é uma capital mais realista: com sopão servido no metrô no sábado à noite para uma horda de famintos, com sacolas na mão. Então, na volta, fiz questão de ir ao Mercado de Pulgas, no norte de Paris - onde dizem que a gente não deve ir. Talvez porque é lá onde os imigrantes, com seus sotaques complicados, estão, perigosamente espalhados por todos os cantos. (03 de março de 2013)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A neve

Hoje está nevando. Quando meu irmão e eu éramos pequenos, nós dispúnhamos, como toda criança, de certas crenças fantasiosas, que eram mais, na verdade, esperanças fantásticas: nós rezávamos, esta é mesmo a palavra, para que um disco voador passasse perto de nossa casa e, quem sabe, com sorte, nos abduzisse. Fazíamos pedidos para nuvens de desenhos complexos, por trás dos quais, acreditávamos, escondiam-se seres mágicos e super-heróis da TV. E suplicávamos, insistentemente, a Deus que permitisse que nevasse em nossa cidade brasileira no sul do sudeste. Nunca nevou, é claro, nem um de nós foi levado para o espaço por um extraterrestre ou uma fada, mas um dos sonhos foi, em certo sentido, realizado. Foi preciso, no entanto, vir para longe para ver a neve: eu estava a caminho da Suíça, num ano em que, estranhamente, fazia relativo calor no inverno francês, quando vi aquela barreira branca no canto da pista. Gritei: “arrêtes! Arrêtes! C´est la neige!”, obrigando meu amigo que dirigia a parar imediatamente o carro para que eu descesse e enchesse a palma da mão daquela brancura gelada. Há uma foto para provar, e um sorriso que era quase uma gargalhada. Depois se seguiram aquelas montanhas completamente cobertas, onde os suíços esquiam e comem chocolate, enquanto o resto do mundo guerreia, como disse o Larry David. Agora, nesta quase noite de sábado, nós nos reencontramos e, pela janela, ela dança com essa delicadeza bonita, que faz parecer que nem é de oito graus negativos o frio que faz lá fora. Ficam faltando os OVNIS, as fadas e o meu irmão aqui. (23/02/2013)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Primeiros dias de uma tricordiana em Paris

Estar debaixo da Torre Eiffel e olhar para cima, como um menino levado que tenta descobrir o que há sob as saias de uma mulher. Entrar em uma rua qualquer à procura de um restaurante e dar de cara com o Arco do Triunfo. Perder-se, dobrar e desdobrar o mapa entre esquinas diversas, e tropeçar no Panthéon. Descobrir-se cercado pelos restos mortais de tantos imortais... Baudelaire, Sartre, Robespièrre, Victor Hugo... Encantar-se com as patissêries, com os chaussures, os murmúrios, tantas vezes incompreensíveis, dos franceses, em toda a sua suavidade. E ouvir, em seguida, inextricáveis sotaques, indecifráveis traços, convidativos aromas, tailandeses, chineses, turcos, paquistaneses. Abrir um vinho e outro e flanar pelo neon vermelho das soirées, os boulevares, os parques, os castelos, as bibliotecas, os museus. Saber que há, agora, em cartaz, duas peças de Jean-Paul Sartre, as comemorações do Ano Novo Chinês, o centenário de nascimento do amado Albert Camus. É absolutamente adorável errar por Paris, errar em Paris, trocar nomes de ruas, comprar toalha de papel no lugar de papel higiênico no supermarché. É doce o frio de poucos graus neste fevereiro em que o sol, embora brilhe, é desbotado pelo vento, gelado, que corta. Anos atrás, quando estive aqui, jurei para mim mesma que voltaria, que moraria, que recortaria para mim um espaço em Paris. Agora conto ao avesso este calendário, esperando que os próximos trezentos e sessenta e um dias deslizem com a elegância e a leveza do Rio Sena. (18/02/2013)

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Sobre as plantas e outros seres vivos

Sempre que chego de viagem e subo os cinco degraus de escada para o meu apartamento, meus olhos têm direção definida assim que destranco a porta: viram-se para a esquerda, checando se nossas plantas de estimação sobreviveram aos meus dias de ausência. Há cenas desoladoras, em que as pobres coitadas estão amarelas, secas, murchas, cabisbaixas. Frequentemente, penso que é o fim. Um pouco depois, no entanto, com água e alguns cuidados, elas voltam à vida. São quatro, e duas delas se mudaram conosco para cá, quase oito anos atrás. É muito tempo e, ainda que eu saiba não ter o que na linguagem técnica se chama “mão-para-planta”, satisfaço-me com o fato de ainda estarem vivas, suportando, com tanta constância, vários dias de abandono. Se andassem, provavelmente já teriam se mudado daqui. Se falassem, teriam me proferido uma boa quantidade de palavrões. Mas essa sua passividade inata as mantém ali, caladas, esperando por mim. Muitas vezes, as pessoas fazem isso com a gente, ou vice-versa: em nome de questionáveis prioridades, nos deixam ali, plantadas, somem, desamparam velhos amigos, grandes (possíveis) amores, com a condenável ilusão de que, quando voltarem, quando resolverem X ou Y, tudo estará do mesmo jeito. As pessoas, porém, não são plantas: como triatonistas, nós nos movemos adiante, pedalamos, corremos e nadamos sempre em rios diferentes. (22 de janeiro de 2013).