quarta-feira, 13 de julho de 2011

The boy done wrong again

Tenho um piano. Grande, marrom, como um elefante. Foi fabricado em 1810 e devo conseguir um bom dinheiro por ele se algum dia tentar vendê-lo a um antiquário – ou o antiquário o conseguirá, depois de inventar uma boa história sobre seu país de origem e seu primeiro dono. Enfim, tenho um piano, mas ele está a quilômetros de distância de mim, na casa onde passei minha infância e onde, durante a adolescência, arrisquei algumas Invenções de Bach e uma sonata de Mozart – aquela em Dó Maior. Há anos não toco sequer uma escala com as duas mãos. A vida vai se afunilando e, um belo dia, somos especialistas em especialidades especialíssimas nas quais apenas outros especialistas especiais e específicos estão interessados. E fica no álbum fotográfico o arco-íris que a gente chegou a ser um dia.

Mesmo assim, tenho ciúmes do meu piano. Sempre que o visito (por tabela), tiro o pó da madeira, das teclas e dos porta-retratos que minha mãe colocou sobre ele. E digo aos meus priminhos curiosos que o piano está trancado, embora nunca tenha tido uma chave. As pequenas e delicadas mãos deles se transformam em dolorosos martelos quando tocam meu piano. E os convenço a procurarem peixinhos no aquário vazio da sala de jantar. Um dia nós tivemos lindos peixes, diversos, de várias cores e com nomes de pessoas famosas. Hoje o aquário vive a saudade de seus velhos tempos, enquanto serve de suporte para begônias e violetas.

O piano, então, ficou mudo. Se ninguém o toca, ele nada fala, nada canta, nada declama. O piano enfeita a sala de visitas, com a imponência de quem pertenceu a Napoleão Bonaparte, e o silêncio de quem perdeu, por causa do imenso funil das especializações, as mãos brancas que o acarinhavam, assim, sem jeito.

Mudas também ficariam as folhas, se o vento não as movimentasse. E a cascas de semente de sibipiruna, se não pisássemos nelas para ouvir sua voz onomatopaica, no meio do outono. E os livros, se os mantivéssemos fechados. Madame Bovary ainda estaria viva, mas Werther nunca me teria feito chorar.

Meu piano é uma caixa de madeira que guarda as mais belas canções. E nunca irei ouvi-las dele se não atravessar os tantos quilômetros que nos separam e desamassar as partituras certas. Assim também são as pessoas. Algumas delas seriam as melhores convidadas para as festas das quais não foram avisadas. As melhores mães, cujos ventres não foram fecundados. Os melhores escritores que ainda assinam o nome com a impressão digital borrada do polegar. Os melhores amantes que não receberam o telefonema no dia esperado. Porque às vezes há, do lado de dentro, tanta cor e tantas fragrâncias à espera apenas de um olhar mais corajoso, dos dedos certos no teclado, uma seqüência adequada de números, notas organizadas com cuidado em um par de versos brancos.

Vezes em que somos como meu piano: esperando que arranquem de nós a canção mais triste para que possamos assim nos sentir um pouco menos miseráveis, desperdiçados, mudos.

PS.: ESTE RELATO É DE QUASE CINCO ANOS ATRÁS, MAS, DIA DESSES, MOSTREI A UM AMIGO QUERIDO, QUE ME INCENTIVOU A GOSTAR DESSE TEXTO DE NOVO... http://oalbergue.blogspot.com/

terça-feira, 5 de julho de 2011

Melhor deixar para envelhecer mais tarde...

Quando assisti a “Alta Fidelidade”, fiquei com mania de listas. E lembro que, naquela época, na lista de “melhores profissões do mundo”, escrevi: vocalista do The Gathering. Na verdade, eu queria era ser a Anneke van Giesberg, mas, como isso não era profissão... Pois bem: algum tempo depois, meu irmão me recebeu em casa com o seguinte comentário: “Lembra daquela sua lista de profissões? Você terá a chance de realizar o seu sonho.” Era um eufemismo bem-humorado para me dizer que a minha querida, adorada vocalista deixaria a minha querida, adorada banda favorita. Já escrevi sobre isso antes, e não há razão para me estender sobre o assunto agora. O que acontece de novo nesse cenário é que, nesse final de semana, fomos a São Paulo, assistir, pela primeira vez no Brasil, à apresentação do The Gathering com os novos vocais: Silje Wergeland. Mas, antes: São Paulo, que vale por si só, pelo cinza, pela Avenida Paulista, pelo MASP com uma vídeo-exposição belíssima de Yann Arthus-Bertrand, além do acervo “Romantismo”, que é mesmo apaixonante. E, antes ainda, meu irmão, que também vale por si só, espécime raro de inteligência e bom gosto. A gente se perde de tal maneira nas nossas conversas que, apesar de termos chegado com uma hora de antecedência à rodoviária na noite de sábado, só não perdemos o ônibus, que partia apressado às 23h45 em ponto, porque eu corri e gritei, fazendo com que alguém o parasse. Tudo isso porque nós estávamos comentando um filme de Walter Salles... Bem, mas vamos ao show, que é o tema deste post. Foi bonito, viu? Uma casa de eventos pequena, duas centenas de pessoas, talvez, e muita devoção. Foi tocante a maneira como tanto o grupo holandês quanto o público brasileiro pareceram acolher a nova vocalista, que carrega o peso gigantesco de substituir uma vocalista, que é simplesmente o símbolo vivo do carisma. Ainda não deu para entender o que a moça espera, com o cabelo e as roupas idênticas à de Anneke no DVD “A sound relief”. Os trejeitos, os movimentos, também, em muitos momentos, remetiam à antiga cantora. Porém, mais delicada, com a voz mais suave e sua beleza particular, a moça bem que poderia deixar de vez a tentativa de ser o “cover” que sempre soa a frustração. Porque, quando consegue se desamarrar das imitações, Silje mostra que tem talento e luz própria. O show, com duas canções inéditas, três do último álbum – “The West Pole” e uma porção das antigas e mais pesadas do grupo – como “Eleanor” e “Shot to pieces” – agradou à maioria e terminou com a inacreditavelmente bela “Travel”, que, ao vivo, é mesmo de chorar. Bem, terminou, terminou não. Porque, aparentemente, a saída de Anneke fez com a banda se motivasse a ser mais extrovertida e se rendesse às atenções do público após o concerto. Muito marmanjo saiu de lá encantado com a baixista, Marjorlein Bastin, que desceu do palco para tirar fotos, distribuir autógrafos e até discutir a qualidade da cerveja brasileira com os fãs. Eu me fantasiei, sem o menor pudor, de tiete, e consegui o autógrafo de todos – todos! – os integrantes da banda, além de várias fotos, alguma conversa fiada e a palheta, que o guitarrista, René Rutten, entregou diretamente na minha mão. Ele, muito simpático, mostrou-se lisonjeado ao saber que havíamos passado quase dez horas viajando de ônibus, madrugada gelada afora, só para vê-los – e, pior, que não era a primeira vez que fazíamos isso. E precisa dizer que eu faria tudo de novo amanhã mesmo se fosse possível?!

(05 de julho de 2011)