domingo, 26 de junho de 2011

Roça n´Roll – (porque não pode haver título melhor)

Dez anos me separam do meu primeiro Roça n´Roll, quando dancei alucinada e inesquecivelmente ao som da então promissora Tuatha de Dannan. Naquela noite, choveu. Houve lama, vento gelado e microfones que davam choque. E houve também longas conversas num balanço de criança e o amanhecer mais bonito que já vi: com o voo ininterrupto de centenas de garças, brotando sabe-se lá de onde, em direção ao sol. Talvez por isso – mais pela poesia do que pelo amadorismo –, tenha criado coragem para retornar ao evento este ano, trazendo, a tiracolo, um amigo belo-horizontino que não gosta muito de metal, e meu irmão, tradicional companheiro de aventuras. Viajamos ao som de canções de poucas notas e muitas sutilezas; depois experimentamos os pontos turísticos de Três Corações, que se resumem a prazeres alimentícios com o nome de seus criadores – como “X-tudo do Valdir” e o “açaí do Igor” – e nos deslocamos até Varginha. Ou quase. Porque os shows aconteceram numa fazenda no meio do trajeto, com placas que não indicavam a direção, mas que surgiam apenas quando você já estava, por dedução, no caminho certo. No entanto, era já possível adivinhar o percurso, devido aos mata-burros, à poeira, ao céu estrelado e, à medida que nos aproximávamos, ao som pesado, claro. A primeira coisa em que a gente pensa quando chega, num inverno absolutamente gelado, a um lugar no meio do nada, cheio de metaleiros juvenis que passaram o dia inteiro bebendo e que agora estão capotando sobre a grama, é: o que é que estou fazendo aqui? A pergunta que vem em seguida seria o que pensam os pobres nativos ao assistirem àquele bizarro desfile de tachinhas e roupas pretas? De minha parte, porém, é rápido o período de transição entre a perplexidade e a euforia. Primeiro, porque começam a aparecer os velhos conhecidos, com seus sobretudos e cabelos compridos; segundo, porque as bandas de black metal são muito engraçadas, e não dá tempo de pensar em mais nada. Além disso, poucas queixas se podem fazer ao evento este ano, que se organizou bem ao formato de um SWU ou afins, com tendas variadas, dois palcos grandes – entres os quais, as atrações se revezavam – e a tentativa de conscientizar o público acerca da proteção do meio ambiente – a começar, por exemplo, pela esdrúxula marca de cerveja à venda, a Ecobier. E, dentre as grandes atrações, tocou o Genocídio, banda brasileira das antigas, com apenas um integrante da formação original. A Tuatha fez um show melancólico, ao estilo de quem “morreu e se esqueceu de deitar”, mas ainda cheio de fãs, de certa forma esperançosos... Foi empolgante a apresentação de André Matos, com canções de seu novo projeto, além de hits do Viper e do Angra (sim, ainda é emocionante cantar “Carry on”, mesmo que a letra nem faça mais tanto sentido). O grande momento da noite, pelo qual a maioria de nós estava lá, no entanto, foi o doom metal dos ingleses do Cathedral. Primeira e última apresentação no Brasil – não apenas porque o público, àquela hora da madrugada, era formado por um bando de zumbis –, mas também porque o grupo encerra sua carreira este ano, depois de uma dezena de excelentes discos de estúdio, com capas ao estilo de Hieronymus Bosch. A performance psicodélica, o som extremamente alto, a potência lenta da bateria... simplesmente perfeitas quando se espera que um show mude as coisas de lugar dentro d´a gente. Depois veio o som belíssimo da guitarra de Eduardo Ardanuy, do Dr. Sin. Mas aí nossos pés já estavam congelando, e a gente veio para a casa. O evento, que completou este ano sua 13ª edição, começa a entrar para a História dos festivais do rock na América Latina. E, cada vez menos artesanal, compensou a poeira e os poucos graus de temperatura no meio do nada.
(26 de junho de 2011)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O ser e o nada

Há coisas que só acontecem comigo. Um amigo disse que eu nasci errada. Maldade. Talvez “gauche”; errada, não. Mas isso que vou narrar aconteceu há muito tempo, quando eu tinha 13 anos e tendências suicidas – como muitos que, àquela época, sentiam ainda o peso da morte recente do vocalista do Nirvana. Eu estudava em um colégio público, pela manhã; e me intrigava pensar que “a minha carteira” seria, à tarde, ocupada por outra pessoa e, à noite, ainda por uma terceira. Foi então que, um dia, apareceram aquelas frases melancólicas rabiscadas ali, na tal carteira, a lápis. Depois, vieram os desenhos tétricos. Fiquei empolgada. Comecei a interagir com o indivíduo, fosse quem fosse, a comentar as frases, desenhar também minhas caveiras com serpentes e espadas – sim, bem ao estilo tatuagem de presidiário. A pessoa, que compartilhava da minha insanidade, gostou da ideia, e começamos a escrever ali bilhetes diários, a discutir bandas de rock – ele gostava de Pink Floyd – e a compartilhar teorias pessimistas. Durou pouco tempo aquilo, mas como era excitante acordar e saber que, no colégio, além das aulas, haveria a carteira e o que ela tinha a me dizer. Aconteceu que o indivíduo – que vou chamar aqui de A., no intuito de respeitar privacidades – passou a estudar pela manhã, na mesma sala que eu. Resultado: nos tornamos amigos. Não sei dizer quando nem como nos apresentamos. Sei que foi assim, simples, natural. E quantas aulas nós passamos conversando. (Sim, porque, em uma escola pública no interior, passar a aula batendo papo é absolutamente inofensivo para o seu desempenho escolar.) Eu puxava uma cadeira e ia me sentar ao lado dele, no fundo da sala. E nós falávamos de rock, literatura, filosofia, nossas famílias e relacionamentos e amigos em comum. Tínhamos, diga-se de passagem, o mesmo guru intelectual, que nos emprestou nossos primeiros romances existencialistas e gravou para nós as canções dos Smiths e do Velvet Underground. Mas A. gostava era de Prodigy, Radiohead e R.E.M. E de camisas xadrez, mesmo sem pensar no grunge. Foi assim por anos: essa amizade cheia de afinidades e boas discussões, em que eu ficava ali admirando a crueza do olhar dele para as coisas e o jeito dele de dizer “Sartrê”. Só isso, mais nada. Depois nós crescemos – ele, mais do que eu. E nos tornamos pessoas diferentes das que éramos. Então, dias atrás, ele colocou no MSN: “Nada mais será tão simples.” E eu pensei num monte de coisas, e nessa amizade também. E, durante esta semana, suspirei muitas vezes ouvindo o eco desse vaticínio: “nada mais será tão simples.”

(16 de junho de 2011.)

terça-feira, 7 de junho de 2011

A fine day to exit

Na semana passada, deixei o Colégio onde trabalhei por mais de cinco anos. O motivo foi justo: poder acordar depois do sol, caminhar sob ele nas manhãs suaves de outono e, sobretudo, estudar. Eu sou uma nerd disfarçada de metaleira; não dá mais para esconder esse fato. E eu sabia que seria difícil dizer adeus aos meus meninos. Passei os dias anteriores admirando-os em silêncio, levando-os gratuitamente para passear no pátio, vendo-os correr e se orgulhar das próprias produções de texto, achando bonito o jeito deles de apagar com paciência os erros gramaticais no caderno. Eu os fui deixando aos poucos, convencendo-me de que seria o melhor, de que suportaria a falta, de que logo eles me esqueceriam. Mas jamais imaginei que não me deixariam sair assim, impune. Primeiro foi um abraço, de uma colega-amiga, choroso e longo. Então ela me pegou pelo braço e disse: “Eu te levo.” Já dava para ouvir os barulhos, como um viveiro cheio de pássaros silvestres. E ela foi me conduzindo escada abaixo. E pude vê-los aos pouquinhos, dezenas, centenas de todos aqueles meninos por tanto tempo tão meus. Sinceramente, cá entre nós: eu me senti uma popstar. Eram câmeras e gritos e aplausos e o meu nome, repetidas vezes o meu nome. Depois, claro, veio o hino do Corinthians, sagrado. Foi uma alegria tão forte que eu não soube chorar. A cada passo, era um presente, um abraço, um apelo. Uma menina ruiva, como a do Charlie Brown, disse: “Você não vê? Todas essas pessoas te adoram! E você vai trocá-las pelo quê? O que pode ser mais importante do que isso?” Sem palavras, eu só sorri. Depois comi uma fatia de um dos cinco bolos confeitados, acreditei na sorte e declarei amor. Ainda houve um vaso de flores, que está perfumando a casa até hoje, um bilhete bonito na agenda, que o aluno – oh, só! – esfregou no coração antes de me entregar, um jantar maravilhoso com os professores, tão carinhosos... e houve, claro, aquele caderno. Passei toda a tarde de terça chorando sobre ele: ali estavam bilhetes de todos os meus alunos e colegas. E eu nunca li palavras tão lindas... sobre lutas e méritos, sobre “desalgemar” os espíritos para a beleza da literatura, sobre não poder reter para sempre as pessoas que amamos. Há dias na vida que, definitivamente, fazem valer a pena todos os outros.
(07/06/2011)