domingo, 20 de junho de 2010

Para Augusto dos Anjos

Um dia acordou e havia envelhecido. Não mais trabalhava como antes, com a força necessária para empurrar carrinhos de cimento e subir paredes de tijolos. Procurou no jornal os classificados. Jamais pensara que seus braços teriam sido feitos com essa finalidade, a de enterrar os mortos. Mas não era assim mesmo? Não era assim que fazíamos todos os dias, com tudo aquilo que precisava ser esquecido, deixado para trás? Foi ser coveiro. Havia algo de romântico naquela profissão: a mise-en-scène do velório, da roupa preta, as viúvas e as condolências, as flores, a bandeira do time do coração estendida sobre o féretro. Era bom: no cotidiano, a solidão, o silêncio e o céu, que era de inverno eternamente, enquanto varria as folhas secas e as pétalas, por entre túmulos sujos de velas que se apagaram. E, pela noite, o vento gelado, os jovens de sobretudo e vinho barato, que pulavam os muros para tocar violão, violando a lei e evocando sugestivos sobrenaturais. Mas havia também a exumação. Anos depois do espetáculo melancólico do enterro, os ossos enegrecidos, a madeira carcomida, o fedor e o abandono de um corpo que nem os vermes desejam mais. Então pensava, com tristeza, que não havia parado de envelhecer, que não tinha jeito mesmo, que isso só piorava. Atravessava a rua e tomava uma cachaça ou duas no botequim da esquina.

(20/06/2010)

3 comentários:

  1. Realmente. Nada é mais inspirador do que enterrar gente morta.

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  2. Com a morte,
    essa companheira do Augusto
    Dos anjos...
    Dosadas pitadas
    de pétrea lápide
    Tépida escuridão
    no caixão
    os ossos cala
    (nem os vermes
    quiseram os ossos,
    eterna solidão dos ossos
    por todos rejeitados)
    Cruz, símbolo presente,
    Presença forte
    Epitáfio e fênix
    dos vermes que surgem entre as cinzas
    do crematório...

    (muito inspirador o seu texto
    tótem e convite ào diálogo inter-textual)
    Daniel Rocha Silveira

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  3. Bom, é divertido conversar com alguém, ter uma idéia em comum nesse diálogo, e ver o texto que o outro escreveu. Porque o resultado final é sempre uma narrativa que passa longe daquilo que eu escreveria.

    O texto ficou bom, com uma profundeza poética que eu não conceberia. Acho que eu exploraria mais o bizarro de essa ser uma profissão como qualquer outra (mesmo DEFINITIVAMENTE não sendo) - uns constroem casas, outros enterram difuntos, ambos podem tomar sua cachacinha.

    Enfim, se eu quiser meus textos, eu que os escreva. Afinal, você é a escritora "literatura feminina" da família.

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