quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Ruínas de Antônio Carlos

No ônibus, de volta para a casa, Antônio Carlos não poderia imaginar que eu, por trás dos fones de ouvido, escutava Antimatter e desvendava seus pensamentos. Estava tão cansado que tudo o que pôde fazer foi escolher um assento perto da janela e pender a cabeça contra o vidro, entregue. Os solavancos, a curva e a grande velocidade na metade da madrugada não pareciam incomodá-lo, nem afugentavam o sono que pesava sobre suas sobrancelhas. Entretanto, outro peso o impedia de dormir: o dos dias. Sabia que dobrar turno como garçom de uma churrascaria não era vida para ninguém. Dia após dia, entre as mesas dos glutões, que esperavam dele sempre outro corte, mais bem passado ou mais sangrento, mas suculento sempre. O som do teclado, as crianças que interrompiam seu percurso apressado, o barulho dos talheres, dos copos que se quebravam, as risadas, os dedos erguidos que o solicitavam, que se queixavam, que rabiscavam no ar o cheque que ninguém mais assina. E o mais patético era que, apesar de tudo isso, a esposa se queixava: não da demora, não da falta de tempo para a família, mas da hierarquia. Porque o que pouca gente sabe é que, entre os garçons dos rodízios, há uma organização muito clara das funções. Ninguém queria servir coração de galinha, aquele amargor miserável, nem trazer as guarnições. O sonho de todo garçom de churrascaria é chegar à picanha, à gordurinha tentadora por que param de bater tantos corações. E já fazia quase dez anos que Antônio Carlos trabalhava naquele restaurante. Passara pela asa de frango, a linguiça, o lombo, a maminha e agora chegara ao cupim. Mas faltava à sua vida o glamour da picanha, que representava também um acréscimo percentual no salário. Antônio Carlos sabia, entretanto, que a picanha era metafórica. Talvez não usasse essa palavra, mas conhecia bem o seu sentido. Enquanto atravessava a Avenida em obras, pouco se importando com os pedreiros em seus natalinos uniformes, as casas demolidas, os novos viadutos já pichados, e toda aquela terra, os tratores e grandes caminhões trabalhando, barulhentos, entre a Abrahão Caram e a Noraldino Lima, Antônio Carlos sabia muito bem que a vida não é um rodízio democrático, em que se escolhem os cortes de carne mais apetitosos. São as carnes que escolhem os dentes, os garçons e os estômagos.

(31 de agosto de 2011.)

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