domingo, 5 de agosto de 2012

A democracia do transporte público

Sentou-se ao meu lado, pedindo licença. Era um senhor magro, de aparência distinta. Dali a pouco, algumas moedas lhe caíram do bolso. Ajudei-o a recolhê-las, ao que ele agradeceu pronta e timidamente. Eu lia um livro de crônicas. Foi então que o odor atingiu-me em toda a sua indiscrição. Alguém, que cogitei ser o meu colega de banco de ônibus, estava com dificuldades para conter seus gases. Uma pessoa do banco de trás levantou-se e foi sentar-se adiante. Tive vontade de fazer o mesmo, mas não quis constranger ainda mais o pobre senhor. Tenho esse tipo de escrúpulo, o que muitas vezes resulta em prejuízo para mim mesma. O cheiro fétido dessa que é uma reação fisiológica, embaraçosa, comum a todos os mortais, repetiu-se. Daqui a pouco ele desce, pensei, enganada. Ele acompanhou-me até o bairro, poucas ruas antes da minha casa. E, por mais desagradável tenha sido essa experiência, não sei até onde culpar o indivíduo. Porque a culpa, na realidade, é da democracia do transporte público. A invenção do ônibus – como do bondinho, do trem, do avião – merece louros e ovações, já que é econômica, ecologicamente preferível e, em certas circunstâncias, até mesmo cômoda. No entanto, colocar um grupo de seres humanos que, em sua maioria, não se conhecem, no mesmo espaço conciso, é pôr em choque culturas, vontades e a velha virtude do respeito. A história de que o direito de um termina onde começa o direito do outro, tão difícil de se determinar. O mesmo direito que a adolescente tem de brigar com o namorado ao telefone, aquela senhora ali, que vai trabalhar o dia inteiro, tem de tirar um cochilo até chegar ao serviço. O grupo de torcedores pode falar alto, celebrando a vitória do time, mesmo que atrapalhe a moça que quer ler um livro de crônicas. Outro dia, uma jovem cantava música gospel no banco de trás. Era um trajeto longo e a afinação da menina não ajudava em nada. Senti-me tão irritada que, na volta do centro para a casa, fui incrivelmente punida: a mesma garota sentou-se justamente ao meu lado, apertando-me contra a janela e povoando de dissonâncias o meu ouvido esquerdo. Outra vez, já de madrugada, assisti a uma briga de socos e pontapés, inenarrável, porque um par de garotos alcoolizados não queria abaixar o volume do celular – ignorando a existência dos fones de ouvido, essa sim uma invenção maravilhosa. Isso sem contar as conversas que acabamos escutando, sem entender muito bem o que é legalmente ou moralmente aceitável. Pensando nessas situações, começo a compreender por que tanta gente passa anos da própria vida pagando por um automóvel, esse sonho de consumo em tantos aspectos questionável: desejo ilusório de isolar-se de tudo e, fundamentalmente, de todos. (05 de agosto de 2012)

2 comentários:

  1. É interessante quando uma questão tão dicutida em jornais e conversas preocupadas é olhada por um microscópio, enxergando o lado mais humano, as humanas relações, mesmo entre estranhos. E quando a observação é relatada de maneira tão expressiva e inteligente.

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  2. Você conseguiu narrar de forma estupenda uma situação cotidiana, com a qual tão comumente nos deparamos. De forma delicada, esmiuçando os mais ínfimos detalhes! Parabéns!

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