segunda-feira, 1 de abril de 2013

Almodóvar - I, II e III

O que eu sempre gostei nos filmes do Almodóvar foi a sensação de que, como para o Lucas Silva e Silva, do “Mundo da Lua”, tudo pode acontecer. E quando eu digo “tudo”, I mean “everything” mesmo. Claro, depois de um tempo, você entende que a receita tem sempre um travesti, dois homossexuais (um deles, enrustido, talvez), uma lésbica, um bissexual, um filho traumatizado, uma canção brasileira, muita cor e muito sexo - as maneiras mais inusitadas de sexo, aliás. Mas, ainda assim, a primeira cena abre sempre um oco de deliciosa curiosidade dentro de mim: o que será que ele vai inventar desta vez? Em seguida, vem a fase do reconhecimento: a mulher do “A flor do meu segredo!”, “la consejala antropófoga!”, o cara do “De salto alto!”, aquela freira do “Maus hábitos!”... e tudo isso com a infantil alegria de quem vê o mesmo filme muitas vezes e sabe, inclusive, repetir alguns diálogos. Aos poucos, minha mente vai listando as circunstâncias dos meus encontros com Almodóvar: “Fale com ela” eu vi no cinema, com o Petrus; “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, na biblioteca da Escola de Belas Artes; “Kika”, foi no curso de Autores e Estilos; “O eu fiz para merecer isso”, eu vi com o meu irmão, num domingo à noite, “Má educação”, foi num sábado à tarde, com a Fernanda, que trabalhava comigo na Reitoria... E, na última quinta, com a Íris e a Natascha, duas novas amigas-vizinhas (e olha que nunca gostei de conjugar essas duas palavras!), fui ao cinema assistir à estreia de “Os Amantes Passageiros”: uma experiência de profundo déjà vu e muito humor escrachado, como se o diretor fizesse questão unicamente de se ater – atar? – a duas palavras: amantes + passageiros. A partir daí, os personagens poderiam ter vida própria e seguir livremente a trilha do nonsense, a seu bel, e intenso, prazer. Deixei o cinema com vontade de dançar, e intrigada com a possibilidade de fazer, a partir da filmografia de Pedro Almodóvar, uma colcha de retalhos de dez anos da minha vida. ALMODÓVAR - II Fui ao Hôtel de Ville, com uma polonesa supersimpática que conheci nos complicados ensaios do Réquiem, assistir à exposição de Haute Couture. Nada entendo de moda, mas os grandes nomes dos estilistas ressoam facilmente na nossa memória, e não é tão difícil achar bonito um vestido bonito. Fora que tantos episódios ao lado de Carry Bradshaw, além do incrível aumento de publicações e sérios estudos a respeito do tema, tenham me feito entender que a moda merece respeito. Não me provoca, porém, suspiro comparável ao do museu de Arts et Métiers, ao dar de cara com os instrumentos precursores da fotografia e do cinema, o daguerreotipo, a lanterna mágica, as primeiras câmeras. Foi um dia depois de conhecer a Biblioteca Nacional da França, numa conferência em homenagem a Julia Kristeva; dois dias depois de visitar a Cinemateca ou de ver um concerto de música argentina na Maison da Bélgica, na Cité Universitaire; um dia antes de assistir à “Antígona”, num teatro em Saint- Michel... Talvez isso explique por que eu esteja dormindo tão pouco e tomando tantas canecas carregadas de café extraforte desde que cheguei aqui. ALMODÓVAR - III Esse sentimento de “tudo pode acontecer”, que me assoma no início dos filmes de Pedro Almodóvar, é semelhante ao que experimentamos no princípio dos relacionamentos: ninguém nunca me disse isso, ou tocou ali, ou contou aquilo, ou fez assim, ou. A nova pessoa é sempre uma fortuna de possibilidades, que nos fazem pensar em casamento, filhos, viagens pelo mundo, temendo, apenas com descrente discrição, desfechos dolorosos, insultos, feridas que demoram a cicatrizar. Não é por acaso que outro filme, o “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, dirigido por Michel Gondry, com roteiro de Charlie Kaufman, figure na lista de preferidos de tanta gente: porque nada se compara aos princípios. Apagando-se a memória de trás para frente, teríamos sempre material bonito o suficiente para querer tentar de novo, se nos sobrassem só os começos. (01 de abril de 2013.)

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