domingo, 26 de fevereiro de 2012

A Oitava Arte

Dividir apartamento com dois músicos é, mais ou menos, como trabalhar na bilheteria da Broadway! Diariamente ter contato com grandes instrumentistas, cantores, compositores, musicólogos, plateias de astros, consonâncias, dissonâncias, Steinways, Stradivarius, Stratocasters... E comparecer aos grandes espetáculos de música da atualidade! Ter a honra de estar o tempo todo lado a lado, envolvido, enlaçado por ela, a Música, o elo mais precioso que possuímos com as divindades supremas.
É... mas, como “o inferno é a repetição”, chega uma hora em que você não quer nem assistir a “Cats” outra vez, nem repetir que aquele concerto de Rachmaninoff é a prova mais viva da existência de um deus.
No começo é tudo muito bonito. Contar para os amigos que você tem dois pianos em casa, convidá-los para conhecê-los e explicar para que servem aqueles três pedais ali. Depois pedir para Músico I dar uma breve demonstração de seu virtuosismo. Após os aplausos, explicar, com ares de grande entendedor, que aquela é uma obra composta originalmente para cravo e que, por isso, é tão repleta de staccatos e afins. Então, as pessoas se despedem sorridentes, dizendo que é muita sorte viver com dois músicos, que é o sonho de qualquer um e que deve dar muito orgulho aplaudi-los quando sobem ao palco, estonteantes, espetaculares, e sentir que você esteve presente, acompanhou, passo a passo, a preparação daquela maravilha.
Ninguém pensa que, além das sete ovacionadas artes, existe uma oitava, não reconhecida, que é de conviver com artistas! Iludidas pela beleza das cadências perfeitas, esquecem-se as pessoas de que, nesse caso, estar presente significa ouvir cerca de sete horas do estudo de um repertório que permanecerá nos dedos de Músico I por mais ou menos um ano. Esquecem-se de que espetáculo é diferente de estudo. De que o processo de composição de uma obra pode não ser tão belo quanto o seu resultado. De que, vez por outra, Músico I e Músico II podem travar verdadeiros duelos de períodos e estilos, ligando, cada um em seu quarto, no máximo volume, o Réquiem de Mozart e uma ópera tecno. E você, no quarto do meio, encolhido como uma tartaruga, tentando estudar Francês...
Isso sem falar, é claro, na pressão musical. Você se sente num verdadeiro Big Brother auditivo: centenas de gravadores espalhados pela casa, 24 horas, vigiando seus desafinos, sua inabilidade rítmica, sua desarmonia... Eu, definitivamente, não canto mais. Se ameaço a entoar, como trilha sonora de faxina, um daqueles refrões tristonhos da Legião Urbana, logo ouço Músico II alertar:
___ Você modulou.
___ Eu... o quê?
___ Modulou. Estava em Sol Maior e foi para Lá Maior. Tente manter o tom.
___ Assim? – eu repito o trecho da canção, num esforço por encontrar a nota certa.
___ Não. Agora está muito grave.
E ele corre para o piano e pressiona insistentemente a tecla Sol, com aquele brilho esperançoso no olhar, na torcida para que eu acerte a tonalidade. Eu tento, tento, tento adequar minha desnorteada voz ao famoso Sol Maior – porque, sabe, questão de vida ou morte... pensa bem, cantar no tom errado! Imagine, que perigo! – e, quando, enfim, acerto a tonalidade, Músico I interrompe seus estudos de regência para me avisar que estou cantando muito na garganta, que é isso que acaba com a voz das pessoas, que devo impostar mais, assim, abrindo o diafragma, dilatando isso, espremendo aquilo e. Até que eu desisto e vou para o meu quarto ouvir o que eles costumam chamar de “banda de heavy metal com harmonia previsível.”
Ah, dividir o apartamento com dois músicos... Você nunca mais vai a um recital sem passar o tempo todo tenso, tentando descobrir se a tuba desafinou, se o regente deu a entrada certa para os violinos, se o spala alterou o andamento do Allegro...
E há também os amigos dos Músicos, também músicos, e toda a sua musicalidade 100% Red Bull! Gente que, em plena noite de sexta-feira em fim de semestre, com dúzias de trabalhos e provas por fazer, tem energia para fazer melodia com almofada, controle remoto, cobertor, pente fino. Gente que não sabe dar dois passos sem entoar uma melodiazinha, ao que o outro responde com uma segunda voz e um terceiro começa a batucar no assoalho e outro pega o violão e... Pronto, está feita a Jam Session!
E pensar que um dia eu sonhei em ser musicista! Cheguei mesmo a me aventurar pelo mundo das escalas e Hanons... sorte que não funcionou. Imagine, três músicos... seria ego demais no mesmo apartamento. Não duraríamos um mês juntos...
Pelo contrário, depois de dois anos de convívio em tempo integral com grandes representantes dessa arte divina, desapego-me a cada dia mais dos aplausos. Quero mesmo é escrever versinhos embaixo de um jequitibá, à beira do Rio Amazonas. A vaga para acompanhante está aberta. Pré-requisito: não saber distinguir um Bach de um Bártok. Pode ser o Brat Pitt... se tocar campainha em quiáltera, está desclassificado!
Ah, dividir o apartamento com dois músicos: um excelente exercício para se descobrir o valor do silêncio.
(09 de abril de 2004)

2 comentários:

  1. Eu não sei distinguir Bach de um Bártok... rs

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  2. Muito saborosa esta crônica, com seu humor bem colocado - a gente sorri o tempo todo. E a linguagem bem elaborada, como sempre. Mas numa coisa eu concordo com o Músico I: não cante com a garganta, rs.

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